Você tem que ser alguma coisa

"Para quem não sabe para onde vai,

qualquer caminho serve."

Alice no País das Maravilhas- Lewis Carrol

O incomodo não era apenas pela presença daquelas pessoas. Tudo naquele lugar era detestável. O filtro estava sempre funcionando bem. Então tudo iria se sair bem do jeitinho que eu havia imaginado. Tudo dentro da normalidade. Tudo ao meu controle. Até que me perguntaram:

O que você é? Falavam sobre tudo e eu apenas tomava minha cerveja e com a intenção de ouvir por mais 30 minutos aquele papo furado. O que eu estava fazendo nesse lugar com essas pessoas? Só para fazer uma média com esse bando de gente mal-amada? O ego dessas pessoas gritava: Nós sabemos das coisas! Aliás estava mais para: Nós sabemos de tudo! E o resto que se cale.

Mas, voltemos para a pergunta, queriam saber o que eu era, qual a minha religião. Eu acho que era só para me provocar mesmo ou talvez não, pode ser que estavam mesmo interessados em discutir civilizadamente algum assunto. Como sempre eu tentando entender os outros, minha sensibilidade às vezes me irrita. A Zula era a que mais causava um fuzuê, como dizia minha avó, acho que é porque ela é de escorpião. Coisa que um pisciano jamais faria: se meter numa confusão. No entanto, ali estava eu, tentando responder à pergunta enquanto todos discutiam:

- Ah deve ser uma religião exótica!

-Eu acho que é budista!

-Eh, esses jovens de hoje sempre aderem a novidades!

Por fim eu respondi estar de acordo com o cristianismo. Queriam saber mais: Qual igreja frequenta? Disse que não ia à igreja, mas que acreditava no Deus e nas pregações cristãs, mas que algumas coisas me incomodavam. Não satisfeitos começaram a citar várias religiões. Tinham uma visão estereotipada das outras religiões.

Aqueles comentários eram cruéis. Por que tanto ódio às religiões que não são convencionais ao nosso mundo ocidental? Fiquei com esse questionamento durante semanas. É nessas horas que eu queria ser de sagitário porque ia jorrar sangue por toda a parte. Os de sagitário são assim metem o dedo na ferida. Assim eu ia poder dizer para o Nortes que eu não ia a igreja todos os dias, mas eu também não ficava por aí atrás das menininhas do meu chefe. Para a Tida, eu falaria com satisfação, de que adianta você andar com essa bíblia todos os dias e sair com o melhor amigo do seu marido enquanto ele vai à cidade vizinha buscar a sogra. E para a Zula teria um sabor especial porque eu perguntaria qual era a sensação de ficar com três homens ao mesmo tempo. Não que a vida dos outros me incomode, mas poderia ser assim esse dia. É verdade que eu jamais falaria essas coisas, seria impossível de acontecer, essas palavras jamais sairiam da minha boca. Ao invés disso eu tento até entender o quão difícil é a vida de cada um e que eles não estavam me fazendo aquele interrogatório por mal. Eu prefiro seguir pensando e acreditando nisso.

Nas fotos só saiam sorrisos. Uma fotografia era incapaz de representar o que eu estava vendo. Pessoas marcadas pela dor, pelo sofrimento, pela inveja. Eram incapazes de ver algum significado na vida. O Nortes foi obrigado a casar muito jovem com a esposa sem amá-la. E ainda continuam juntos por causa dos problemas de saúde dela. A Tida teve um amor não correspondido na adolescência e desde então procura sempre uma aventura. A Zula levou uma surra de vara de goiabeira na juventude porque se apaixonou pelo primo. O pai a mandou para um retiro e dois meses depois o primo morreu. A família toda falava em segredo que foi morte de amor. Ela desde então não conseguiu se apaixonar. Busca sempre por sensações que façam lembrar a relação que teve com o primo. As outras pessoas não estavam tão atuantes no interrogatório, digo na conversa, mas creio que tenham suas mazelas, mas estão dentro de uma suposta normalidade.

O meu chefe por exemplo, é dedicado a todos e sabe estabelecer sua autoridade. Se não fosse por ele essa conversa não teria acabado nunca e se eu saísse da mesa me diriam que estava fugindo da raia. A gota d’agua foi: -Você tem que ser alguma coisa. Não pode ficar em cima do muro. Então ele se levantou e disse: Vamos servir a comida! Depois se aproximou de mim e falou: - não dê ouvidos às provocações deles. São uns velhos bobos que não entendem nada da vida. Tente se tranquilizar. Lá da outra mesa eu vi seu coração quase pular do peito. Você tem futuro na empresa porque você vê o melhor nas pessoas. Você é capaz de entendê-las ainda que estejam lhe acusando. Continue assim, mas seja parcial nas suas decisões.

Aquele foi o dia mais estranho de toda a minha vida. O que ele queria dizer com parcialidade. Não entendi nada. Só fui entender quase sete meses depois quando fui promovido a presidente da empresa e o meu chefe como maior acionista resolveu me dar a dura tarefa de demitir três funcionários. No final acabei fazendo a coisa certa depois de muita análise.

Recebi o prêmio do ano e lá estavam Nortes, Tida e Zula. Mas, o assunto agora era outro. E a minha reação também seria outra.

Alguemqueescreve
Enviado por Alguemqueescreve em 22/06/2020
Código do texto: T6984398
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