O Maquinista, O Bandoleiro e O Craque - Ponto de Vista do Craque
Eu vim de Jaguarão, no interior do Rio Grande do Sul e contarei a vocês esta história que aconteceu comigo anos atrás.
Fui contratado, quero dizer, alistado a peso de ouro pelo 9º Regimento de Infantaria para não somente cumprir o serviço militar como também o objetivo de comandar o time para a conquista do Campeonato Citadino de Pelotas, competição que o time não vence faz muito tempo.
O incidente ocorreu numa sexta-feira, depois do último treino que fiz com meus companheiros visando o amistoso de domingo contra o Rio Grande.
Fui em casa, peguei meu material para a viagem e parti rumo a Viação Férrea onde o treinador e meus companheiros já estavam me aguardando.
Antes de embarcar, Seu Joel havia pedido um autógrafo para mim e não fiz de rogado em atender o pedido.
Ele, aliás, trabalhava há 30 anos ali e é mais do que um simples maquinista, é um grande amigo e sempre nos ajudou quando precisamos.
A viagem corria bem. Eu e Osório estávamos jogando cartas numa mesa próxima enquanto outros jogadores liam os jornais do dia e alguns estavam já dormindo.
O jogo estava animado quando ouvi um forte solavanco como se o trem estivesse prestes a capotar.
Pensei que ia morrer, mas logo em seguida, ouvi barulho de passos e gritos vindos do vagão vizinho.
Eram bandoleiros que haviam parado o trem com o objetivo de assaltar todos os passageiros.
Assim que chegaram em nosso vagão, notei que o rosto de um deles era bastante familiar e que estava estampado no jornal de hoje.
Era o famoso Talco Cardoso que aterrorizava as cidades da Campanha e em alguns lugares, era idolatrado pelos mais pobres por suas façanhas e pelas constantes lutas com a polícia.
Eu não sei como consegui manter a calma nessa situação de vida ou morte.
Mas aprendi isso com o futebol. Geralmente sou eu que cobro os pênaltis da equipe e nessas horas é preciso ser mais frio do que uma geleira.
Notei que Seu Joel estava muito nervoso quando foi falar comigo:
- Cardeal, preciso de sua ajuda. O Talco só aceita falar com o senhor.
Era o fim, pensei eu, mas não queria deixar o maquinista em maus lençóis nem tampouco os outros passageiros.
Fui então falar com o homem. E impressionei-me com a imponência de Talco, mesmo naquele aspecto que assustava os mais incautos.
Pra minha surpresa, no entanto, ele não apresentou seu revólver, mas sim um toco de lápis e um pequeno pedaço de papel para que eu o autografasse.
Talco me explicou que na terra dele, São Gabriel, eu era bastante famoso devido a minhas atuações nos gramados e queria esse autógrafo para dá-lo a sua mãe que era uma admiradora minha.
E as surpresas não paravam por aí. Ele mandou seus comparsas devolverem os objetos de valor para os outros passageiros e depois foi pedir desculpas ao maquinista pela interrupção da viagem.
Antes de partir, ele me pediu que o homenageasse caso marcasse um gol no amistoso.
Ali percebi o porquê de ser tão aclamado pelos humildes. Por trás daquele aspecto de bandoleiro, existia um homem gentil e educado com as pessoas chegando até mesmo ser um cavalheiro.
Jogamos no domingo contra o Rio Grande e vencemos aquela partida por 3 x 2 com dois gols meus.
Normalmente não costumo batizar meus gols, mas resolvi batizar o gol da vitória de gol “Talco Cardoso”.
Apesar de viver essa vida de fora-da-lei, ele era um grande fã de futebol.
Alguns dias depois, fiquei sabendo pelos jornais que Talco havia sido assassinado em uma emboscada feita por policiais.
Desde aquele dia, tinha feito a promessa de ajudar o 9º Regimento a vencer o Campeonato Citadino que se aproximava.
Depois de três turnos muito disputados e de um jogo complicadíssimo contra o Bancário onde vencemos por 1 x 0 no fim do jogo com um gol feito por mim, fomos beneficiados pelo empate no clássico Bra-Pel e ganhamos o título daquela temporada.
Dediquei a conquista a Talco Cardoso que foi capaz de parar um trem apenas para pedir um autógrafo meu.
Seis anos depois daquela conquista, pendurei as chuteiras lembrando-me daquele homem tão gentil.
Que marcou minha vida para sempre.