Correnteza
Era tarde da noite quando fui pegar mais uma cerveja. Quando voltei, ele estava ali parado no meio da sala. Acenou com a cabeça, e sentou-se depois de mim. Enrolei um cigarro para cada um de nós e fumamos em silêncio. Nós dois sabíamos o motivo da sua visita, e conversamos apenas na troca de olhares. Dois pares de olhos escuros que falavam de tanta coisa a ser resolvida. Nenhuma palavra foi dita. Quando voltei com a última cerveja que tinha na geladeira, já tinha partido. Ensaiei umas notas baixinhas no piano, fumei outro cigarro e caí no sono em seguida. Acordei antes das oito da manhã um pouco desorientado. Os sonhos que tive pareciam tão reais, que cheguei a pensar que estava dentro de outro sonho. Toda vez que recebo essa visita, sonho muito, e quando acordo, sempre lembro de uma história silenciosa que me contara.
Dessa vez foi uma história sobre um jovem de vinte e poucos anos. Vivia uma vida comum, do fluxo cotidiano. O trabalho já não fazia mais sentido algum. Era algo que o tirava da cama, logo que tinha acabado de dormir, e lhe impedia de cair no sono antes das 6 da manhã. As situações de perigo que passara em inúmeros voos lhe garantiram traumas suficientes para duas vidas. Cursava uma faculdade pela qual não sentia mais nenhum interesse. Estava só repetindo padrões que foram impostos com a verdade de quem venceu. E pior, lhe fazia pensar que também precisava vencer. O dinheiro para o curso vinha se esgotando, e o pouco que sobrava custeava as sessões de terapia pelos bares da cidade. Não que de fato funcionasse, mas a tentativa já valia a pena.
Nos fins de semana, encontrava um ou outro amigo para beber. Em todas as vezes eles o sobrecarregavam com seus problemas adquiridos por péssimas escolhas, tomadas com pressa e desespero. Ele ouvia tudo, sempre tinha uma boa palavra para confortar. Mas quando falava de si mesmo, ninguém tinha paciência para ouvir. O tomavam por radical. Deve ser esse o termo que as pessoas dão àquilo que não tem coragem de enfrentar. Os encontros só valiam a pena pela companhia para beber, mas acostumar-se a beber sozinho sempre lhe pareceu mais proveitoso. Depois de um encontro desse, voltou para casa, serviu uma boa dose de um uísque barato, bebeu acompanhado de dois cigarros e dormiu.
Todas as verdades antes apresentadas se mostravam duvidáveis. Sonhou que descia um rio flutuando calmamente. Dentro de sua mente, uma voz ecoava um som parecido com um mantra. As margens pareciam distantes, mesmo o leito do rio sendo estreito. Fechou os olhos, tentou se concentrar no som que ecoava. Ao fundo, começou a entender. Saia da correnteza, dizia numa voz que misturava cantos gregorianos e guturais. Quando abriu os olhos, estava numa corredeira. O pavor tomou conta, e logo ele estava se debatendo nas pedras. Quando conseguiu estabilizar, começou a nadar em direção a margem, que cada vez ficava mais longe. Quando se cansou, a correnteza o tomou de volta. Quando deu por si, caía de uma alta cachoeira. Na queda, o mantra continuava a ecoar. Abriu os olhos novamente e viu-se aproximando de uma pedra em alta velocidade. Toda água tinha sumido. Acordou com a pancada.
Já passava das 14h quando se levantou. A julgar pela aparência do dia, devia ser domingo de tarde, como de fato era. Fez um café, tomou com dois cigarros seguidos. Um filme aparecia como sugestão no serviço de streaming, sem se ligar no título, começou a assistir. Uma distopia num futuro próximo, onde tudo era regido por conselheiros anciãos, que escolhiam as funções de cada jovem dentro da sociedade assim que ele terminasse seus estudos. Um jovem foi escolhido para receber as memórias do povo antigo. Só uma pessoa as detinha, e o resto da sociedade vivia afundada numa vida em preto e branco. Ao se deparar com as lembranças, e com todas as sensações provenientes, o jovem começa a se rebelar contra a ordem estabelecida. Conforme as lembranças tomavam conta do filme, as cores iam aparecendo. Por fim o jovem consegue escapar, com a promessa feita a si mesmo de libertar a todos.
As lágrimas jorravam de seus olhos incontrolavelmente. Desligou a tevê, passou um café, adicionou uma dose de uísque e sentou no quintal. Duas mangueiras de 10 metros de altura faziam uma sombra enorme no quintal. Sabiás-laranjeiras e bem-te-vis banqueteavam-se nas mangas caídas na grama. Galhos longos projetavam-se paralelamente ao chão, quase tocando o telhado. Sabia o quanto sabia da vida, e o quanto não sabia também. Sua mente revirava enquanto lutava com a ideia de qualquer existência não tinha sentido. Hora ficava feliz por perceber que entendia quase tudo o que queria aprender. Outrora, afundava-se por entender que nada do que tinha aprendido preenchia aquele vazio que só fazia aumentar. O sol se despedia por trás das árvores, e a escuridão veio em alta velocidade. O breu que tomou conta do quintal, deixou os ouvidos mais aguçados. Ouvia um barulho bem distante de uma correnteza de rio, e que parecia aproximar lentamente. Lembrou do sonho, da voz. Saia da correnteza. Não sabia o que fazer. Por dentro, sentia o peito queimar, um gosto amargo subia pela garganta e o estomago parecia uma fornalha. Saia da correnteza, a voz repetia. A angústia já era palpável e não parecia existir nenhum momento além daquele. Decidiu que tudo acabaria ali. Em um dos galhos mais paralelos ao chão, jogou a corda habilmente. Fez a amarração com gestos rápidos e precisos. A árvore parecia ter uns 80 anos, tinha galhos tão espessos quanto os troncos. Sofria com a broca, mas ainda se mantinha forte. Aquele galho suportou bem o baque. A banqueta jazia embaixo dos pés suspensos, girando levemente, cerca de 1 volta a cada 2 segundos. A voz cessara e a lua começava a nascer.