Percepção...

... OS NATALINOS

O pisca-pisca da árvore de natal anunciava a mesma refeição de todos os anos. A rabanada com bastante gordura, açúcar e canela; o frango bem assado junto às maçãs, a saladinha verde, a farofa-bomba empelotada; o arroz cheio de salamaleques, o manjar com com calda de ameixas; frutas cristalizadas e aquele apetrecho de sentimentos misturados. Uma verdadeira gama de gambiarras prontas para implodir no prato colorido. Um verão bem quente torneado de um tom lilás por detras das cortinas que não balançavam devido ao ar estagnado que dava as caras naquele momento. E entrava então o velho e bom ventilador. E soprava com o ar mais fresco daquele mundo. E por um triz bem trincado, ninguém morria de calor mas do próprio sentimento abafado. Ao lado do sofá havia a mesinha de canto com um presépio armado e a figura angelical de um menino loirinho, que jazia no seu bercinho na esperança de melhores dias daquele pai desempregado. À meia-noite, alguns vizinhos batiam à porta para desejar aquela tão sonhada felicidade; e ás vezes as palavras saiam de forma a amenizar toda e qualquer dor, mas sabiam que ela estava ali. O pai ficava encabulado e a mãe no seu vestido azul e chinelos de tiras, retribuia com um tom embargado. Após a refeição, a meteorologia mudara, ventou e choveu o suficiente para a queda brusca da temperatura que esfriou os cômodos daquela casa. A menina pensou no menino da manjedoura que provavelmente, enrolado numa mantinha rota, deveria estar com muito frio. Pegou um pano de prato e o cobriu com carinho Não fez orações e nem pedidos. Ela só sabia que ele precisava de um mimo.

... NADA DE NOVO

Um tanto impaciente com a passagem para ver a queima de fogos pela janela, os batimentos do coração se aceleravam. Era tão bonito ver todas as cores e todas aquelas luzes com cheiro de queimado. Um outro mundo estava pronto a adentrar, que coisa maravilhosa! Pensamentos de uma vida melhor, num mundo melhor… E veio à cabeça aquele menino tão bonito lá da escola. Lembrara do dia que ele raspara a sua mão de leve na hora de devolver o lápis, um sentimento bom ficou por ali aguardando a noite prometida. Cinco minutos para a meia-noite, com o vestido branco perfumado com a água de lavanda e o cabelo ainda molhado e solto, ela constatou que o menino ainda coberto com o pano de prato se destacava. Tadinho, ele deve estar cheio de calor, que falta de percepção a minha! Voltou à janela aflita pelo momento que acelerava , correu até ao quarto de seus pais e olhou-se no espelho da penteadeira, ajeitou o vestido, passou a mão por entre os fios do cabelo, espirrou um perfume e contou junto ao relógio-cuco da parede: 5; 4; 3; 2; … gritou para si mesma Feliz Ano Noooovoooo! Encheu-se de alegria num esperançar jamais visto. Lembrou-se novamente do menino coberto e resolveu dessa vez, não esqucer de descobrí-lo, afinal o calor estava de matar. Olhou pela janela e viu os fogos de artifício e aquele cheiro forte de coisa nova no ar; riu para si mesma e acreditou em tudo que havia pensado. Os pais voltariam no dia seguinte pela manhã. Estavam fazendo um extra naquela noite para garantir um tanto durante a semana. Sentou-se no sofá ao lado do bebezinho no presépio e o fitou durante algum tempo, pensou na sua idade numa razão com ou sem sentido, aquele bebezinho nunca crescia, e olha já era ano novo. Dormiu ali mesmo no sofá junto ao presépio, e sonhou que a vida continuaria épica.

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The Cinematic Orchestra to build a home

Kathmandu
Enviado por Kathmandu em 14/06/2020
Reeditado em 14/06/2020
Código do texto: T6976999
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