Contos da Terra
A PALANCA QUE VIVE NO MAR
Lembrei-me da doçura contida nos seus olhos brancos de grossura. Na larga cintura minha, ouvi conflituosos e empertigados os gostos que sobre sua saia minha criatividade ainda não pousou. Fez, súbita, um susto breve e, com um tom ligeiramente aprumado pela voz que só ela cria[va], a mim segredou a lua:
— Docinho, toca-me a língua com um suspiro teu, a loucura que só tua filosofia desenha em tudo que há em mim.
Entendi. Era para ter atendido à magia do fósforo, logo na primeira noite, uma luxuosa época decorada com todas flores. Estávamos só nós: de um lado, meus pensamentos cobertos de incertezas justificáveis, de outro, sua tonalidade nos lábios — um barco à deriva — parecia um lápis afiado, uma criança recém-nascida, à espera do leite.
Ansioso, pedi que negasse ela a existência da clareza que se fazia naquele quarto, mas replicou com um silêncio pintado à seriedade aparente. Quando a paz tomou conta da noite que estava para um jejum, seu rosto apagou-se de mim, estranhei, com aquela pergunta:
— Vejo teus sinuosos seios sobre o meu hemisfério esquerdo do cérebro. Como me pedes o calar das armas, Hortelã?
Já era 23 horas. Tivemos um dia embrulhado de risos e cansaços. Pintávamos ainda o nosso nome no livro do mundo com a mesma assinatura. A mim, instantes seguidos, chegava a elevação do descontentamento. Disse-me, ela, então, que na estação seguinte haveria duas subidas a cavalo numa mesma cilindragem. Medi a nossa temperatura, pedi-lhe que fizesse desaparecer aqueles holofotes. Atirei-me ao sono, após lhe ter dado um celeste beijo.
Saurimo, 13/06/2020