O Silêncio da Aroeira Cap 1 - Ventos de Agosto
O Silêncio da Aroeira
Ivo Costa
Capítulo 1 - Ventos de Agosto
Era início de setembro de 1959, o céu estava num tom azul claro, intenso e a primavera nordestina já se exibia, mas os ventos de agosto ainda sopravam como se não quisessem dar vez à estação vindoura. A família Santos vivia mais um dia de sua rotina humilde e com ares de felicidade, pois no pouco que desfrutavam havia sim alegria. O chefe da família, Geraldo, quarenta e cinco anos, sertanejo de Arcoverde e defensor dos costumes, era um homem de bem, generoso e pedreiro de mão cheia. Tinha lá suas ambições, porém nada que o desvirtuasse. Focava em subir na vida através de seu trabalho, principalmente na firma pela qual era contratado, no ramo da construção civil. Em casa, nunca deixava faltar nada e cuidava bem da esposa, Marleide, que se encontrava grávida e gozava da companhia da irmã caçula, Marluce, que veio morar com a família para ajudar a cuidar dos sobrinhos, Vicente de catorze anos, Vilma de doze e Guido de apenas cinco “E o que vem se for menino vai ser Antônio, em homenagem ao meu avô, e se for menina, Marleide quer o nome de Isabel. Com saúde é que importa”, dizia o homem radiante aos conhecidos, imaginando como seria a criança que sua senhora trazia no ventre.
A propriedade era modesta, mas caprichada. Tratava-se de um terreno de bom tamanho, cerca de 20 por 20, fruto de uma invasão mesmo, que findou formando uma rua. Então Geraldo comprou o lote e um barraco foi erguido com as economias que trouxe consigo. Tinha bom solo, quase às margens do rio Morno, braço do Beberibe, onde vez por outra os moleques da região pescavam piabas para assar na lenha e capturavam betas para servirem de gladiadores em garrafas com água.
A casa, Geraldo tinha construído com destreza própria, mas de vez em quando contava com a mão de obra de algum ajudante que conseguia aqui e ali. Geralmente jovens que procuravam trabalho por um dinheiro qualquer. O ajudante mais frequente era Lourival, um rapaz ardiloso e atrevido, de vinte e poucos anos sem eira nem beira, que viera de Igarassu e até já tinha sido preso, pois vivia arranjando briga por lá. E quando bebia, estranhava a própria mãe. Marleide sempre advertia para que o esposo tivesse cuidado com aquele jovem em casa, pois não gostava dos olhares que ele lançava para sua irmã adolescente. Não olhares singelos e honestos, mas de malícia, beirando a maldade. “Não confio nele”, dizia ela, “e Marluce já ta incomodada”. Mas o pedreiro de bom coração, achava um exagero de sua senhora e sempre tinha uma desculpa: “deixe disso mulher, o rapaz precisa de ajuda. Ele cobra pouco e tem disposição pra trabalhar”, dizia o bom homem. E mesmo contrariando a amada, acolheu Lourival como aprendiz até ensinar-lhe o suficiente para que fizesse alguns bicos por conta própria em troca de uns cruzeiros.
A construção tinha dois quartos de bom tamanho, um para o casal e outro para as crianças, além de um menor, onde Marluce dormia. A sala era espaçosa e tinha também um banheiro largo e cozinha caprichosa, que aproveitava toda a luz do Sol que pudesse passar pelos combogós. Atrás da casa, Geraldo já preparava o solo para receber em breve uma muda de aroeira, enfiada dentro de um saco de pano com terra, que ele regava todo dia. “É pra fechar talho. Pra sarar ferida não tem melhor não”, dizia ele destacando a propriedade cicatrizante da planta. Já no terreno restante da frente, permaneceu a sombra presenteada pela velha mangueira que já existia no local.
Numa manhã rotineira, quando os primeiros raios de sol se espremiam pelas brechas da janela do quarto, o cheiro do café já tomava conta de toda a casa. Na verdade, à mesa já estava posto um belo cuscuz feito no bafo ao fogo de lenha e banana cozida, comprada na banca do verdureiro que negociava na Praça da Convenção, além de pão comprado na barraca de seu Martiniano. O leite era novo e trazido na porta de casa, oriundo de uma criação em Linha do Tiro. Enquanto Geraldo se preparava para o trabalho, Vicentinho dava um pulo da rede acordando os outros, que dormiam juntos numa só cama. O caçula, Guidinho ainda resistia catando sono, mas a fome fazia a vez. Então Marleide tomava uma boa fatia do cuscuz macio, ainda quente e despejava no prato de cada um, decorando com uma boa colherada de manteiga, que derretia lentamente ensopando a massa. Vicentinho ficava olhando o pai comer. Tamanha era a admiração daquele menino, que se esquecia de olhar para o próprio prato como se esperasse autorização. Quando seu pai percebia e o encarava, o moleque sorria e Geraldo franzia a testa dizendo: “coma que vai esfriar”. Só assim o menino dava as primeiras garfadas, enquanto seus irmãos já se esbaldavam. Ele sabia o quanto era trabalhador, honesto e dedicado aquele pai e quanto era amado por ele, ainda que o mesmo não demonstrasse a todo o momento. Ele sabia, ele sentia.