Conversa de bar sobre uma história mal contada
Conversa de bar sobre uma história mal contada
Alexandre Santos(*)
Era noite de uma 5ª feira, dia 27 de janeiro. Para surpresa da turma, a aula de história fora dedicada a uma inédita comemoração do 357º aniversário da rendição dos holandeses que ocuparam o Nordeste do Brasil entre 1630 e 1654. Depois de louvar as figuras de Matias de Albuquerque, André Vidal de Negreiros, Felipe Camarão e João Fernandes Vieira, referidos como ‘grandes heróis da Restauração Pernambucana’, o professor Adilson – um cabeludo meio esquerdista – falou da batalha final, na Campina do Taborda e, como que repetindo o discurso oficial, concluiu o curto discurso dizendo que “naquele momento estavam lançadas as bases da nacionalidade brasileira”.
– Você parecia um coronel, Adilson – comentou Mariana, uma colega gostosona, que, todos percebiam, jogava charme sobre o professor. Naquela noite, ao invés de voltar para casa, como sempre fazia, Adilson convidou Mariana e ganharam a noite.
Horas mais tarde, já no Cantinho da Sé – um bar encravado no topo de uma das colinas testemunhas da presença holandesa em terras pernambucanas e vítima do incêndio ateado em 1631 a Olinda –, estimulado pelas provocações de Mariana e entorpecido pela cerveja, Adilson resolveu se exibir e, citando Shakespeare (“existem mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”), afirmou ser história oficial sempre mal contada, pois “conta a versão que interessa aos vencedores e ao sistema”. E, sem explicar, exatamente, o significado e o alcance do tal “sistema”, resolveu contar a sua própria versão da história.
Só depois de falar a “verdade” sobre a ocupação do Brasil pelos portugueses (ele evitou falar o termo “descobrimento”), destacando o papel cumprido por um certo Duarte Pacheco Pereira, “o verdadeiro descobridor das terras brasileiras”, Adilson falou sobre a invasão holandesa.
– Não se pode compreender a invasão holandesa sem estudar a sucessão de Dom Sebastião, o rei de Portugal, que, em 1578, morreu na batalha de Alcácer Quibir, sem deixar herdeiros, sendo sucedido pelo tio, o cardeal Dom Henrique, que por razões óbvias tinha filhos oficiais – o professor começou a longa exposição, olhando Mariana nos olhos, emborcando mais um gole de cerveja. Com a morte de Dom Henrique dois anos mais tarde, continuou ele, deu-se a vacância do trono de Portugal e, ao fim de uma disputa que envolveu até o Papa Gregório VIII (que se considerava herdeiro natural da coroa portuguesa pelo fato do rei morto ter sido cardeal), o rei da Espanha Dom Filipe II passou a ser, também, rei do império português. E durante sessenta anos, entre 1580 e 1640, Portugal ficou sob o jugo da Espanha.
Adilson tomou outro gole.
– Acontece, Mariana, que, naquela época, à frente das sete províncias do norte dos Países Baixos, a Holanda lutava contra a Espanha pela própria independência e, embalada pelo crescente empoderamento comercial e militar advindo, especialmente, do sucesso da Companhia das Índias Orientais, causava muito medo na corte de Filipe II. Tanto assim que, em 1609, por iniciativa da Espanha, a Holanda celebrou a famosa Trégua: um pacto estabelecendo que não haveria hostilidades entre eles nos próximos 12 anos. Pois bem, Mariana. Com a aproximação de 1621, o camareiro-mor Gaspar Felipe de Guzmán, o Conde de Olivares, fez uma grande cartada para salvar os interesses mundiais da Espanha. Tão logo Willen Usselincx – um estadista holandês que considerava a cana-de-açúcar, a quem chamava de ‘ouro branco’, mais lucrativa do que os metais preciosos – assumiu a chancelaria, o Conde de Olivares firmou um acordo segundo o qual, em troca da garantia de que os interesses hispânicos no Novo Mundo não seriam afetados, a Espanha desleixaria a defesa das colônias ultramarinas portuguesas, incluindo o Brasil, e, em caso de invasão, não esboçaria uma defesa sincera. Não deu outra. Tão logo encerrou a Trégua dos 12 anos, segura do descaso espanhol sobre as terras portuguesas n’além-mar, a Holanda organizou a Companhia das Índias Ocidentais e, três anos depois, em 1524, invadiu o nordeste do Brasil.
– Mas, Adilson, você está esquecendo de que os holandeses foram expulsos da Bahia no ano seguinte – ponderou Mariana, se referindo à Jornada dos Vassalos, que, tendo à frente Dom Fadrique de Toledo Osório, marquês de Villanueva, expulsou os holandeses da Bahia, lhes impingindo grande prejuízo.
– Aquilo foi um acidente de percurso, Mariana, pois não havia, nem poderia haver, um acordo escrito. Na realidade, com aquela ação (ocorrida à revelia do Conde de Olivares, diga-se de passagem), os holandeses se sentiram traídos e foram à forra. Três anos mais tarde, precisamente em 08 de setembro de 1628, o almirante Pieter Heyn interceptou a frota espanhola no porto cubano de Matanzas, no mar do Caribe, e saqueou o carregamento anual de prata extraída nas colônias hispânicas nas Américas, recuperando todo o dinheiro perdido pela Companhia das Índias Ocidentais com a expulsão da Bahia. A perda da prata em Matanzas avivou o medo do trono espanhol, que tratou de reconhecer o “erro estratégico” da Jornada dos Vassalos e de avisar a Usselincx que as linhas gerais do acordo estavam mantidas. Reanimado o sonho da colônia no Novo Mundo, os holandeses não pouparam despesas e prepararam uma fabulosa máquina de guerra. Nesta segunda investida, os espanhóis cumpriram sua parte do acordo e recomendaram cautela ao próprio Dom Fradique de Toledo, cuja armada composta por 40 navios guardava a costa da África. Tanto assim que, em 23 de agosto de 1629, tendo observado no largo do Cabo Verde o movimento da esquadra do almirante Hendrick Corneliszoon Loncq, que ainda com apenas 8 navios se preparava para a invasão de Olinda, com apenas uns poucos tiros de aviso, a armada comandada por Dom Fradique de Toledo deixou passar a expedição sem fazer esforço para barrar o avanço. Finalmente, em 15 de fevereiro de 1630, as tropas da Companhia das Índias Ocidentais comandadas pelo almirante Loncq invadiram Pernambuco com o objetivo de criar uma colônia holandesa no Nordeste do Brasil. Conforme a promessa feita pelo Conde Olivares a Usselincx, o Brasil não contou com defesa sincera da corte do rei Filipe, então rei de Portugal, e, sob o olhar desinteressado dos espanhóis, os holandeses invadiram Pernambuco, dando início à ocupação da colônia. Ficaram aqui por 24 anos e ainda estariam se não fosse a garra dos nossos heróis.
Adilson fez uma pausa para respirar e, ao contrário das outras vezes, afogada com tanta informação, Mariana permaneceu calada. Satisfeito com a impressão que estava causando, desta vez, talvez para molhar a garganta seca de tanta falação, Adilson emborcou quase uma garrafa inteira.
– A luta para expulsar os holandeses e retomar a terra foi dura. Fora uma ajuda ou outra, os pernambucanos ficaram sós e tiveram de enfrentar os invasores com suas próprias armas, desenvolvendo um sistema de guerrilhas que desnorteou os militares da Companhia das Índias Ocidentais. Por isso, os grandes heróis da Restauração Pernambucana são Matias de Albuquerque, André Vidal de Negreiros, Felipe Camarão e João Fernandes Vieira, que, nas batalhas das Tabocas, de Guararapes e na Campina do Taborda dobraram um inimigo muito mais forte e reconquistaram as nossas terras. Se não fosse o sangue quente dos pernambucanos, hoje o Brasil não seria dos brasileiros.
Deste ponto em diante, a conversa mudou de rumo. A mistura da descoberta histórica com o sangue quente dos pernambucanos foi suficiente para despertar o que muita gente já sabia. Adilson e Mariana amanheceram juntos, completamente apaixonados.
(*) Alexandre Santos é presidente do Clube de Engenharia de Pernambuco, ex presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural