O DIABO NUNCA SE ENTREGA

Era uma noite quente de agosto de 1907, no pequeno lugarejo Matinha de Água Branca, em Alagoas, quando vim ao mundo. Meu choro ressoou potente nas veredas do sertão, revelando a criança forte e saudável que acabara de nascer. Chamaram-me Cristino. A felicidade e a alegria invadiram a casa dos meus pais. Festejaram por três dias. Cresci na velha Matinha de Água Branca correndo, brincando e cavalgando nas zonas rurais da cidadezinha. Aos dezesseis anos de idade eu já era um homem feito, musculoso, atlético e com rosto muito apreciado pelas mulheres. Destacava-me entre meus companheiros por ser o mais forte e o mais esperto. O meu cabelo longo e loiro chamava a atenção.

Com dezessete anos, numa briga de rua, matei um homem e fui perseguido e jurado de morte. Fiquei desesperado. Sem ter para onde ir me aliei ao um bando de cangaceiros famosos. Este grupo era chefiado por Lampião que passou a ser meu amigo e mestre. Aprendi tudo de cangaço com ele, admirava-o como homem forte e valente. Em pouco tempo tornei-me chefe de um dos grupos formando assim meus próprios cangaceiros. Escolhi a dedo os mais valentes, os mais destemidos. Ganhei autonomia e junto à minha cabroeira pratiquei muitos atos violentos, matei e degolei muitos inimigos, chegaram a me apelidar de Diabo Loiro, menção a minha crueldade e a cor dos meus cabelos. Este apelido me enchia de vaidade e continuava a cometer outros atos para justificá-lo.

Em uma dessas andanças pelo sertão encontrei a Dadá, a mulher da minha vida. Apaixonei-me perdidamente por aquela bela mocinha, esguia, altiva, de corpo bonito, dengoso e cheio de curvas. A paixão me cegou e a levei comigo e antes de mesmo de chegar ao coito a amei na areia quente da caatinga. Dadá, com sua ternura e paciência, mudou muito minha vida, me tornei mais brando e menos cruel. Em troca lhe dei proteção , carinho, ensinei a ler, escrever e atirar. Foi o período mais feliz da minha. O que era paixão se transformou em amor e até pensei em mudar de vida.

Em agosto de 1938 as volantes alagoanas atacaram a Grota do Angico e mataram e degolaram Lampião, Maria Bonita e vários cangaceiros. Desesperei - me com a notícia. Não podia ser verdade a morte de meu mestre! Enlouqueci de raiva e matei e degolei os que eu julgava terem sidos os delatores dos meus companheiros. Depois disso nunca mais prestei, passei a beber demais, de noite tinha alucinações vendo a cabeça cortada de Lampião Nesses dias sempre tive o apoio de Dadá, que me acalmava e me fazia voltar à razão. Devo muito a ela não ter endoidado de vez.

Em 1940 o presidente Getúlio Vargas deu anistia aos cangaceiros que se entregaram. Não me entreguei e decidi me afastar de vez do cangaço. Estávamos repousando na Bahia, na cidade de Barra do Mendes quando fomos atacado pela volante comandada por Zé Rufino. Metralharam a mim e à minha Dadá, vi meus intestinos saindo para fora da barriga e minha mulher com a perna decepada. Agarrei as suas mão e tentei consolá-la afirmando que tudo ia sair bem. Não saiu. Sofri longas dez horas com dores horríveis e por mim passaram, naquelas horas, cenas de minha vida penosa, sacrificada, de batalhas e os dias felizes ao lado de Dadá.

Zé Rufino se acercou de mim e perguntou por que não me rendi quando ele mandou. Respondi que não era homem de se render, mesmo porque o diabo nunca se rende. De noite, quase na madrugada, na mesma hora em que nasci entreguei minha alma a Deus. Terminava ali, pra mim, aos 32 anos de idade ,os tempos de cangaço.

HAMILTON MARTINS DOS SANTOS

OBS.: história baseada e inspirada na vida dos cangaceiros Corisco e Dadá.

HAMILTON SANTOS
Enviado por HAMILTON SANTOS em 28/05/2020
Reeditado em 15/12/2021
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