Era apenas uma questão de chocolate
João - este nome imemorial, simples e imponente - estava com o bolso cheio de chocolates. Eram chocolates pequenos, no formato de moedas, com embalagens douradas e os chocolates em si cunhados na cara com um 1 todo ornamentado e, na coroa, com um busto de um rei qualquer.
João não era um rei qualquer naquele momento. João estava com o bolso repleto de chocolates é bom que se repita, porque o chocolate faz aparecer pedintes inclusive num deserto onde no horizonte, onde num olhar de 360°, nada se avista: ploft! É mágica! Aparece alguém: "Me dá um pedacinho?".
João não estava num deserto, contudo, estava convicto: ele não queria dividir o chocolate com seus amigos. Porque ele já tinha em mente um plano de deleite após sair da venda: chegar em casa, trancar-se no quarto e comer as moedas doces sem limites. Não haveria impeditivos. Sua mãe não estava. Seu pai, hipnotizado pela TV, computador e celular, tudo ao mesmo tempo, para João não ligava. O pai de João tinha se aposentado há muito e, desde o dia da aprovação de seu salário contínuo, tinha caído em profundo estado de torpeza em sua cama...
Contudo, as moedas adquiridas por João na venda começavam a pesar. A cada passo em direção à sua casa, um sentimento de insegurança assaltava. Você sabe como é!: é como naqueles dias que você sai do banco após o saque de todo o salário do mês. Há felicidade e temor; há gozo e dissabor; há coragem e medo, porque existe um negócio chamado "saidinha de banco": uma malandragem sem limites para sonhar que fica num canto do qual não se faz ideia. Você foi observado antes de entrar no banco, no momento do saque e na saída... e aí... ploft!
Era esse ploft que o João não queria para si. O João não sabia o que era um salário de mil e poucos reais. O João era criança. Mas o João sabia o que o chocolate representava. Sabia da índole de seus amigos. Sabia de sua própria voracidade. Sabia de sua mãe dizendo da importância de não ser egoísta. Sabia de seu pai não ligando a mínima para os demais e comendo toda a pouca carne no almoço e não deixando nada para ninguém. Nada.
O Nada. Era isso que João vislumbrava proporcionar em um ponto do trajeto no qual, inevitavelmente, seus colegas concentrados estariam. O nada, através de um olhar vazio, de uma cara dissimulada, de uma aproximação chamando a atenção para um assunto que distraísse a todos eles ou, esconder-se.
João se escondeu por detrás das árvores do parque, observando, apreensivo, seus colegas que brincavam. Um plano? Sim. Eles brincavam de qualquer coisa que solicitava a todos eles que corressem para lá e para cá. As árvores estavam no cá. João estava no cá e eles também. Contudo, João se ocultava no cá: João entrou em simbiose com as árvores. Um João planta, com raízes, denso tronco, copa espessa com flores, pássaros e frutos. João: o menino árvore.
E bando de pardais eram seus amigos, que em conjunto, ondulavam ora para cá, orá para o lá. O lá era o que interessa a João. "Quando eles forem para lá, eu saio em disparada. Eles não vão me ver. Sou mais ligeiro".
A moral absoluta não pode ser um bom critério para o julgamento de casos particulares. Não se pretende uma moral. É que João conseguiu o que queria. João, trancafiado em seu quarto foi feliz. Um quarto escuro de menino com estrelas douradas de alumínio caídas no chão do centro de seu quarto. Entre os dentes, os resquícios de um doce cujo sabor, neste idade, pela pouca profundidade de seu espírito, não se descreve. Descrever para quê? É chocolate! Tudo ali, era apenas uma questão de chocolate.
São José, 19 de maio 2020
Cleber Caetano Maranhão.