O Escolhido
Após dormir por muitos anos, devido a um coma, um homem acordou em meio a uma grande crise na saúde mundial. Uma pandemia causada por um vírus desconhecido espalhara-se por todo o mundo vitimando milhares de pessoas. As notícias eram variadas e, a maioria delas, desencontradas. Ele não imaginava o quanto o mundo havia mudado durante os anos em que esteve dormindo. Agora, era muito normal inventar-se histórias e espalhá-las sem qualquer pudor e sem qualquer verificação. Não diz o ditado que “quem conta um conto aumenta um ponto”, ele pensava. Mas não era como naquele tempo das histórias de pescador, eram histórias tão verossímeis e tão mal-intencionadas que poderiam facilmente causar uma guerra civil e até mundial.
Aos poucos ele foi recomeçando a viver, foi aprendendo as novas coisas da ultramodernidade. Porém, parecia (e era verdade mesmo!), que ele estava sempre entre a o sonho e a realidade, entre a verdade e a mentira. Não sabia em quem acreditar. E, para piorar, não conseguia lembrar-se de quem era. Então, a partir das notícias correntes, resolveu criar sua própria realidade.
Em um belo dia, acordou dizendo que era “O Escolhido”. Escolhido para quê? As pessoas próximas lhe perguntavam. Ele contava que o vírus era uma arma biológica criada pela inteligência artificial, a qual queria dominar a humanidade. E que somente ele tinha a cura para esse mal, pois os médicos e cientistas eram todos aliados da AI. Dizia que todas as pessoas contaminadas poderiam ser controladas caso não fossem curadas a tempo por ele. Dessa forma, deveriam unir-se para combatê-lo. As que morriam, segundo sua teoria, voltavam em forma de vírus de computadores a fim de continuar o trabalho da inteligência, criando notícias falsas para enganar o mundo. Os jornais, por sua vez, também estavam todos associados com a AI. Por isso, ele havia sido escolhido para salvar a humanidade. A começar pela pequena cidade onde habitava.
O homem era tão convincente em sua tese que as pessoas começaram a acreditar nela e a aderir à causa do rapaz, que montou um grupo de resistência. Eles passaram a reunir-se constantemente para bolar um plano de combate ao vírus da AI, o qual deveria ser perfeito e em um dia predeterminado, que seria o dia D.
Primeiramente, teriam que livrar-se de todos os celulares, tablets, computadores, etc, para não terem suas informações hackeadas e, tampouco, ficarem recebendo informações que pudessem desmentir sua hipótese, que pudessem causar dúvidas nos resistentes e, assim, enfraquecê-los. Depois marcariam a data da ação. E foi o que fizeram.
No dia marcado, todos foram de máscaras para não correrem o risco de serem contaminados e dominados. Haviam decidido realizar uma manifestação na rua principal da cidade para convencer as demais pessoas de que o cabeça dos revoltosos era o salvador do mundo, que toda a população estava sendo enganada pela AI e deveriam unir-se ao grupo rebelde para lutar contra o vírus e o jugo que queria impor-lhes.
Os manifestantes bradavam gritos de guerra, batiam panelas, enfim, faziam tudo para chamar a atenção. E conseguiram. Em pouco tempo, estavam o pequeno jornal da cidade, a polícia, o departamento de trânsito e os bombeiros. O grupo realmente fazia jus ao nome, era resistente. Todos acabaram detidos. Na delegacia, todos foram surpreendidos com várias informações sobre o seu líder, inclusive o próprio. Ele não era “O Escolhido”. Era apenas um cidadão como outro qualquer e até pior. Acumulava vários crimes: estelionato, sonegação impostos, falsidade ideológica, etc. E era procurado em quase todos os Estados do país. Antes de sofrer o acidente que o deixara em coma, havia acabado de chegar à pequena cidade, adotando um nome falso para esconder-se da polícia.
Ao ouvir sua extensa lista de crimes, ele começou a gritar que aquelas informações todas eram um grande engodo, que a polícia também havia sido subjugada pelo vírus da AI. Ao ser algemado, imediatamente vieram à sua memória todo o seu passado sombrio. Quem era, de onde era e, agora, para onde iria: a cadeia.
Nesse momento, os insurrectos entenderam o porquê de seu chefe ser tão persuasivo: ele era acostumado a inventar mentiras, era inerente a ele.
Sua cara foi estampada no principal (e único) jornal da cidade. E ele foi enviado para seu Estado de origem a fim de responder por seus crimes.
Anos depois, após passada toda a crise na saúde, as pessoas da cidade ainda comentavam sobre aquela manifestação que deu vida à cidade em um período tão funesto. Para a população, aquele grupo tornou-se um exemplo de luta por um ideal. E aqueles manifestantes recontavam, com orgulho, sua história a seus netos. Falavam, emocionados, daquele homem que acreditavam piamente ser “O Escolhido”.