O CAPELO
Toledo.Castela.1247.
Ao fim da tarde, perscrutava a linha do horizonte sem descortinar já coisa alguma.Sem distinguir as ameias dos merlões na fortaleza real ou imaginada do seu coração partido e desfeito.
Gostava de ouvir o vento soprar, de vislumbrar o sol afundar-se nas cercanias e a deixar que o seu desgosto enorme tomasse conta do seu corpo já doente e febril.
Sancho.Segundo de nome e quarto na sucessão dinástica de Borgonha.O primeiro grande desaire na avassaladora história de um reino com mais ou menos um século de existência.
Passava a sua vida a pente fino mal sustendo o desgosto tamanho que lhe roubava a vida.Uma maldição, um plano urdido e mal intencionado desde o início.Para o destruir e aniquilar.
- Senhor, será melhor recolher-vos.Anoitece e o frio pode agravar o vosso estado – avisava o seu fiel aio.
- Irei já.Ficarei só um pouco mais.Não tenho apetite para a ceia.
- Cobri-vos com o capelo.Protegei-vos…
Ele subira ao trono ainda um adolescente púbere, aos treze anos quando seu pai, um rei falcão, misterioso, sagaz e cheio de ardis partira deste mundo, deixando-o órfão e desamparado para governar.Teria sido gafo?Sancho pouco contato tivera com o progenitor.
Herdara o ódio do clero ressentido pela perda do poder,o desdém das tias, matronas e impiedosas, hienas em redor da presa.
O certo era que por altura da sua coroação, Portugal encontrava-se envolvido num sério conflito diplomático com a Igreja.
Logo fora obrigado a assinar um tratado de dez pontos com o Papa mas as suas atenções desde cedo viraram-se para o esforço da Reconquista dos territórios com a preciosa ajuda da Ordem Militar de Santiago.
A sua sinceridade e lealdade impunha-se aos senhores que lhe juraram fidelidade como Fernão Rodrigues Pacheco e Martim de Freitas que jamais o esqueceram e nunca o atraiçoaram.
Na cerimónia do juramento de fidelidade após o beijo que selava o pacto o seu olhar significava mais do que mil palavras.Em silêncio, uma promessa inquebrável”Até à morte”.
Várias tinham sido as vitórias na guerra contra os árabes: Elvas e Juromenha, Moura e Serpa, Aljustrel, Mértola, Cacela e Tavira e tantas outras.
Mas enquanto isso internamente proliferavam os abusos da nobreza rude e sanguinária que não respeitava a propriedade alheia nem a inviolabilidade dos conventos.Que desrespeitavam o Rei.
…Emissários amarrados às caudas dos cavalos e arrastados pelas caminhos como bárbara demonstração de rebeldia e não acatamento das ordens…
Os prelados influentes foram queixar-se ao Papa. E Inocêncio IV que nunca o conhecera nem vira, envenenado pelos bispos excomungou e depôs o rei D.Sancho II, através da bula Inter alia desiderabilia e Grandi non emmerito considerando-o rex innutilis que não sabia administrar a justiça no seu reino, dando o seu aval a uma conspiração infame em Paris para convidar o seu irmão , que vivia à sombra da Condessa de Bolonha para vir a ocupar o trono deixado vago.
Sancho ainda tentou reagir.Mas apesar de não ter perdido nenhuma das batalhas contra o irmão a excomunhão , a decepção e o desgosto levaram-no a abdicar e a exilar-se.
A biscainha com a qual tinha contraído um matrimónio ameaçado desde logo de anulação pela consanguinidade dos cônjuges também não lhe tinha sido fiel.Mécia Lopes de Haro,leviana como uma podenga não lhe deu descendência e fugiu quando sentiu o marido em apuros.E ele ainda tentou ir buscá-la de volta mas acabou apedrejado por gente vil do povo.Esse seu amor indesejável deixou a correr a fama de incapaz, inapto e impotente.
- Já não tenho honra, nem fé, nem memória.Já não tenho vida.Os físicos disseram que a minha vida terminará prestes.
Submeteu-se à tonsura, o corte de cabelo que significava a perda irremediável da honra e do poder.Pediu que os seus restos ficassem junto dos seus ancestrais na Catedral da cidade e esperou com dignidade e assombro a Morte que não tardou.
Alguns amigos fieis partiram á desfilada tentando deter o fio do destino mas chegaram já demasiado tarde.
Reza a lenda, segundo Rui de Pina, que Martim de Freitas, alcaide do castelo de Coimbra se recusou a entregar o castelo ao regente e suportou um duro e longo cerco.Munido de um salvo conduto foi até Toledo certificar-se da morte do seu rei e senhor.Só depois de aberto o caixão e de depositar as chaves sobre o cadáver
é que as retirou para as vir entregar ao aclamado e traidor novo rei, D.Afonso III.
Esse triste episódio entre irmãos , partiu de boca em boca e à desfilada na tradição e nas crónicas pelos séculos e repetiu-se tragicamente, ensombrando alguns princípes na História de Portugal.
Camões na sua epopeia e Herculano no Portugaliae Monumenta Historica dedicaram-lhe a sua atenção.Até com alguma compreensão e simpatia.
E o venerável Presidente do Conselho em pleno Estado Novo, interessou-se e tentou resgatar debalde os restos mortais do rei deposto.Mas foi infrutífera e surpreendente a impossibilidade com que se deparou.
Como se o rei cuja vida fora tragada pela crueldade e selvajaria na aparentemente distante Idade Média não quisesse regressar à terra vil em que a sua vida tinha sido aviltada e destruída.