Brigas de menino... que saudades!

A primeira briga agente nunca esquece. Ainda mais se nesta primeira briga agente apanha, aí é que não se esquece mesmo. Assim foi a minha primeira briga: apanhei. Porém, deixe-me contar os pormenores desse dia fatídico.

Tudo começou na segunda série, numa escola pública de um humilde bairro, em Ceilândia. Ao longo dos meus sete anos de idade, era a presa favorita dos predadores do colégio: débil nas ações, carente de astúcia, franzino e delicado; reunia em mim todas as características de um cara que nasceu para apanhar.

É por esse motivo que não vejo outra razão, senão dever a essas características, a surra que levei naquela bela manhã de 1993. Curtia, até então, a brisa de mais um recreio, solitário. Caminhava despreocupadamente sob a aprazível sombra de uma mangueira quando me veio do nada um garotinho, acusando, aos choros:

- Foi ele! Foi ele quem me bateu!

- Eu o que?!

Daí me surge acima dos olhos um desses brutamontes de 10 anos, sujeitinhos mal encarados, cuja própria mãe deve ter se arrependido de ter posto no mundo, a me encher de medo, dizendo:

- Então foi você quem bateu nele, né? Seu folgado! Foi você, né?

- Não... Não. Espere aí... Deixa-me entender...

- TOME na orelha pra ficar esperto!

E foi assim que aquele brutamonte, que veio de num sei de onde, me cobriu de porrada. Tudo isso após ter me servido com um bandão e um tapão bem dado na orelha. Assim, depois de ter me surrado um bocado, me deixado estatelado no chão, e sem que eu entendesse bem o que havia acontecido, deixou-me um aviso breve e ameaçador:

- Fique esperto!

Acredito não ter escutado o aviso direito, devido, talvez, pelo tapa que tomei no meio da orelha. Não é à toa que continuei débil nas ações, carente de astúcia, franzino e delicado, enfim, um prato cheio para chacotas, voadoras inexplicáveis e sacanagens de outros gêneros.

Apanhei. Não nego. Mas com isso aprendi: aprendi a chorar para mãe e, a ela, solicitar ajuda. Ainda hoje não me esqueço da cara que um dos meus agressores teve ao ver minha mãe. Foi inesquecível. Sua cara que antes me infundia medo, transfigurava-se na cara de uma indefesa criança – e, por outro lado, este só seria um motivo para eu perceber, mais tarde, que chamar a mãe nem sempre era lá tão infalível, e poderia ser até pior. O certo é que ele não engoliu a humilhação. Esperou o ano seguinte e, quando eu já estava esquecendo, veio junto a um amigo e, no recreio me cercou. É necessário saber que as brigas do meu tempo se davam, na sua maioria, nos recreios e nas saídas, e as frases de intimidação, se não me falha a memória, geralmente eram: “tu tá fudido na saída!”, e, “tu tá fudido no recreio!” – o fato é que dessa vez eu tomei uma coragem que não sei explicar de onde veio. Talvez, ignorando qualquer preceito cristão, eu tenha pensado assim: “apanhar eu vou, mas não apanho sem antes bater”. Parti pra cima dos dois, e com chutes e pontapés, fui resistindo, só na ânsia de escutar a sirene anunciar o fim do recreio. Sirene tocando: fim do recreio, fim da briga. Foi sufocante. Todavia, nunca mais ele ousou me bater. Apanhei, naturalmente, mas, em contrapartida, impus o devido respeito. Fui homem pela primeira vez, como costumava dizer a garotada.

Na terceira série eu já podia contar com a cobertura do Galego. Dois anos mais velho do que eu impunha respeito em qualquer pivete da primeira e da segunda série; em qualquer molecote da terceira e em qualquer marmanjo da quarta série, período mais elevado do ensino básico. Ele era um desses que se chamam por ai de "repetente de carteirinha", sentava-se no fundo da sala. Eu era somente uma espécie de nerd distraído, meio relapso, sentava-me na frente. Os repetentes exerciam moral na sala. Os nerd’s, por sua vez, sofriam de desprezo. Portanto eu só podia conversar com os outros nerd’s, e, ainda, com a devida cautela. E “ai” se assim não fosse! Como eu me aparentava a um saco de pancadas indefeso, um sujeito débil nas ações, carente de astúcia, franzino e delicado, qualquer vacilo podia me custar uma surra – sabendo disso me mantinha calado.

Até que um dia eu falei. Aliás, sentir a inevitável necessidade de falar.

Estava com vontade de fazer xixi e o regime interno do colégio exigia um cracházinho para se dirigir a qualquer parte. Portanto, só saía da sala quem pedisse para professora o cracházinho e, de tal modo, que fosse acompanhado por outra pessoa – no caso, outro aluno. Sabendo disso, inocentemente pedi para o colega que sentava ao lado:

- Alexandre! Vamos ao banheiro.

Assustado, ele olhou para mim e começou a resmungar, quase chorando. Não consegui entender o que estava acontecendo. Por que ele estaria chorando, meu Deus? Eu me perguntava. E pra falar a verdade, ainda hoje me pergunto: por quê? Mas antes que compreendesse qualquer coisa fui ao banheiro. Fiz xixi e me perguntando o porque. Voltei ainda me perguntando o porque. Chegando na sala, Alexandre enxugando as lágrimas profere a célebre e temida frase da época:

- Tu tá fudido! O Jorge vai te quebrar!

Mirei para o fundo da sala. E exatamente lá no fundo se encontrava o tão temido Jorge. Com uma cara de búfalo ressabiado que poderia até ser confundida com o mapa do inferno. Foi terrível. Olhei para seus gestos: espalmando a palma da mão esquerda no punho direito cerrado e rosnando, apenas confirmava o que foi dito:

- Ê moleque! Tu tá fudido na saída!

Foi à gota d’água. Engoli seco. Meu fim parecia próximo. Pouco menos de duas horas para respirar o oxigênio que circulava. Menos de duas horas para apreciar o tão injustiçado e depreciado feijão-com-arroz do refeitório. Menos que duas horas para confessar o amor que sentia por, qual era mesmo o nome dela? Menos de duas horas para rasurar os últimos desenhos na mesa. Afinal, quem me enfrentaria não era qualquer um, dessa vez seria Jorge, o mais temido da sala. A minha existência contemplava seus últimos momentos na terra - e tudo por culpa de um motivo incompreensível. Idiota. Neste momento percebi o quanto a existência era um absurdo. Não podia suportar a idéia de que tudo que vivi convergia exatamente em direção àquele trágico desfecho. O que eu poderia fazer?

Logo veio a luz, a solução. Melhor dizendo, o Galego me solicitando ajuda.

- Como não tinha pensando nisso antes!?

- Pois é cara. Pode ficar frio que eu te ajudo.

- Mas como é que agente vai fazer?

- Fica frio cara! É só fazer o seguinte. Tu chama ele pra porrada. Quando ele se aproximar pra te bater eu entro na frente e te salvo. Aí o resto é comigo.

- Sério? - perguntei incrédulo.

- Sério. O cara é um pato, bicho.

Bastaram estas palavras para que eu me sentisse o sujeito mais protegido do mundo. Afinal, alguém que diz "o cara é um pato, bicho" merece o respeito de qualquer pessoa, principalmente de mim: sujeito débil nas ações, carente de astúcia, franzino e delicado. E agora minha expectativa era outra, o destino se desenhava glorioso. Com o Galego ninguém podia comigo - pensava. Não via a hora para pôr em prática o grande plano.

Hora da saída.

Ao nosso redor todos já sabiam da briga que ali se travaria. As apostas corriam a solta; uns optavam pela vitória de Jorge, outros, não obstante, pela vitória de Jorge também – sim, Jorge era uma unanimidade. Da minha parte era como se já estivesse estampado na minha cara o slogan: "nasci para perder!" Mas o que ninguém podia imaginar é que eu e o Galego bolamos um plano mirabolante. Eu pisquei para o Galego, o Galego piscou para mim. Estava selado o pacto. Agora bastava executar. Primeiramente entreguei minha mochila para um dos colegas. E visando ostentar um ar de superioridade masculina, ergui as mangas do meu uniforme que, devido a minha extrema magreza, mal se sustentavam no ombro. Foi lamentável.

Na arena de briga a atmosfera é muito estranha, a gravidade parece pesar mais e nem sempre tudo corre conforme a expectativa. E dessa vez não foi diferente.

Comecei a chamar, conforme o planejado, Jorge para cair na porrada:

- Vem que eu te quebro a cara, vem!

Ele apenas respondia: - êita, moleque, tu tá doido pra morrer, né?

A medida em que eu ameaçava minhas pernas tremiam. Não obedecendo à minha suposta tranqüilidade simplesmente tremiam. O Sol que naquele momento apontava o meio-dia só aguçava a adrenalina no meu espírito. O Jorge vinha se aproximando, cauteloso, bufando faíscas pelas narinas. E eu não podia mais me conter de tanta espera. Corri os olhos a procura do Galego, e nada. O Jorge vinha se aproximando, cada vez mais furioso, cada vez mais indignado. E mais uma vez provoquei:

- Vem pra porrada, vem!

Ele estava a um passo de me desferir um golpe. Mais uma vez corri meus olhos em busca do Galego. Achei. Ele estava no meio da multidão, sorrindo. Chamei-lhe. E o safado simplesmente disse:

- Vai, quebra ele!

Como assim? Quer dizer que... Galego desgraçado! traíra filho de uma mãe! Judas Scariot! Pensei comigo um milhão de palavrões. Mas antes que pensasse noutros, me veio de supetão um soco na cara.

- TOMA!

E eis aqui, no instante de maior calor da briga, a minha percepção.

O Jorge também estava com medo. Foi isso que percebi no momento em que me golpeou: seu soco estava contido - senti na gravidade do soco a sua insegurança. Era possível? Sim era...

A partir daí, não o encarei mais como a um inimigo invencível, um búfalo. Sua expressão que antes me parecia o mapa do inferno, agora simplesmente refletia um marmanjo dando uma de durão. E isso é o que ele era: simplesmente um marmanjo dando uma de durão.

Se estávamos pau-a-pau significava que eu tinha chances. Não hesitei em arriscar um primeiro chute. Meio desengonçado, chutei. Ele se esquivou. O aglomerado da molecada ao redor fervilhava de emoção:

- Vai, dá um pau nele!

- Quebra ele no meio, Jorge!

Os futuros da nação estavam todos lá, sedentos por sangue, queriam ver o oco, tudo isso enquanto eu arriscava um segundo golpe. Dessa vez um soco no diafragma. Sem muito efeito físico, mas de uma importância moral sem precedentes. O Jorge que antes ostentava uma superioridade desigual estava abalado em sua condição. Intimidava-se diante das minhas ameaças. Na verdade eu não passava de um ratinho afoito.

No clímax da briga fui desferido por alguém da torcida. Não pude ver quem. Mas tinha sido atingido por um pedaço de antena de tevê. Doeu, foi na cabeça. Mas o meu sangue estava muito quente para desistir. E parti como um búfalo para cima do Jorge. Ele simplesmente recuava ante a minha súbita brutalidade. Foi aí que, alguns meninos, definitivamente, apartaram a briga.

A briga finalmente terminava. Mesmo com medo, mas tomado pela adrenalina do momento, exigi que me soltassem.

- Me soltem! Me soltem! Eu vou quebrar esse moleque.

Hoje, nos meus 20 anos de idade, dou graças a Deus por não terem me soltado, caso contrário, nem estaria aqui para contar essa estória, até porque o Jorge, do outro lado, também estava excitadíssimo:

- Me soltem! Me soltem! Eu vou estourar o estômago desse idiota – dizia, como que se sentindo ferido na sua natural superioridade.

Passado o calor da briga, me restava o medo e a vontade imensa de voltar para casa. No ônibus do colégio o motorista irritado me chamava. Tive que correr, entrei no ônibus. Quando me deslocava ainda pude ver o Jorge com uma pedra correndo inutilmente atrás do ônibus. Atirou furiosamente e com isso parecia que atirava também toda a sua fúria.

E apesar dos pesares, nunca mais brigamos.

No ônibus pensei em tudo quanto me era possível lembrar. E já não achava o Galego um herói - e nem mesmo, um traidor. Mas, passado o medo da morte tive a certeza de que ainda teria muito mais que duas horas para respirar o oxigênio que circulava, mais que duas horas para desprezar o tão injustiçado e depreciado feijão-com-arroz do refeitório, mais que duas horas para confessar o amor que eu sentia por... Qual era mesmo o nome dela? Enfim, teria muito mais tempo para desenhar o que bem quisesse.

Ainda poderia desenhar sobre as carteiras ou numa folha qualquer, quem saiba, um sol amarelo, um castelo, uma luva, um navio de partida – tal como na canção do Toquinho. Lembro-me que, nessa época, havia um coral na minha sala que cantava algumas canções – a Aquarela era a música mais cantada, uma espécie de hino. Inclusive uma das integrantes do coral era a minha paixão platônica, aquela de cujo nome não me lembro. Pensei em entrar no coral por causa dela, visando assim uma aproximação. E se tivesse sorte, poderia lhe acenar um “bom dia” acompanhado por um beijinho no rosto; mas, infelizmente, a minha timidez, quase paralisante da época, não permitiria tamanha ousadia.

Admirando-me certa vez com sua beleza a cantar Aquarela, balbuciei: “como é linda!” O Alexandre, nessa altura um amigo, estava ao lado, escutou e maldisse:

- Eca que feia!

Poderíamos ter brigado naquele dia – mas pra minha sorte, ele não chamou o Jorge.

Alex Canuto de Melo
Enviado por Alex Canuto de Melo em 15/10/2007
Reeditado em 15/06/2009
Código do texto: T694478