Roupa de sair

Não passava das dezessete horas, porém o ambiente já estava escurecido e solitário. Eu caminhava sozinha pelos corredores que costumavam aglomerar famílias inteiras, grupos de amigos, casais e crianças mal-criadas. Agora, o silêncio e a pouca luminosidade faria qualquer um se sentir em uma cena de filme de ficção científica, cujos personagens foram abduzidos misteriosamente por alienígenas.

Dezessete horas e eu estava em um renomado shopping que deveria exibir uma infinidade de sacolas desfilando em mãos desconhecidas e barulhentas, contudo poucas mãos desfilavam silenciosas e solenes e inclusive as minhas estavam vazias. Passei diante das entradas das lojas e escutei murmúrios, sussurros quase inaudíveis. As roupas, altivas e ressequidas, me olhavam da penumbra das vitrines. Vestidos longos e estampados, lingeries, biquínis florescentes ostentavam seus preços e me olhavam. Enquanto isso, as roupas que eu vestia já pediam substituição, como um cansado jogador de futebol em final de partida.

Como fico agora na maior parte do tempo usando pijama, minhas roupas de sair, já obsoletas, pouco sabem de mim e discutem entre si seus destinos, estranhando a fina poeira do tempo que gradativamente começa a cobri-las e o cheiro de passado que aos poucos enche o meu quarto. Um passado em que era possível circular, mas agora.. vocês certamente já conhecem o lockdown...

Eu daria o meu reino e meu dedo mindinho por uma blusinha! Flertava despudoradamente com uma bem a minha frente na qual estava escrita a palavra LIBERDADE. E estava em promoção. Estava. Na loja trancada, nem um funcionário que eu pudesse persuadir a passá-la pela fresta da porta em troca de um dinheiro a mais. Será que roupa não é artigo de necessidade essencial? E quando nossas companheiras resmungonas se gastarem totalmente? Acaso andaremos nus?

Pensei em sair nua do shopping para, em forma de protesto, mostrar que há muita importância em cobrir-se. E desde que o homem foi expulso do paraíso. Há a surpresa causada no outro pela roupa nova apresentada, há a competição velada entre nós mulheres, há os elogios, e a imaginação do que há por baixo. Há o vinculo estabelecido, há a doação para o parente que doará pra outro parente, e para outro, enfim.. um ciclo está sendo interrompido. As roupas mortas não darão à luz outras que perpetuem suas espécies.

Desisti então de sair nua na certeza de que meu discurso prolixo e repleto de assonâncias por mais poético que parecesse não me livraria de responder por atentado ao pudor e eu seria presa. A roupa quando usada não é nada, mas experimenta sair sem ela por aí.

Entrei no ônibus e um homem levando uma mochila surrada senta ao meu lado. Após colocá-la embaixo do banco, cochilou até o exato ponto de descida. Às pressas, saiu sem seus pertences e eu, que só não fui abduzida ainda por acaso, só percebi o ocorrido alguns minutos depois. Avisei ao motorista e decidimos, por segurança abrir a bolsa. Nela havia apenas umas peças de roupas já usadas. O motorista é meu camarada e mora em um lugar onde as pessoas são muito carentes e necessitadas de tudo. Lá, amanhã ao menos duas pessoas terão novas roupas de sair.