Após o pânico
É uma experiência interessante depois de tudo estar diante do espelho e dialogar com tantas lembranças remotas e recentes. Alguns meses em isolamento evitando um inimigo invisível, mutável e mortal. Alguns meses de liberdade retomada. Após a proteção classificada por alguns como covardia, tomo coragem de encarar a mim mesmo, coragem como a que para mim foi matéria prima para deixar os afetuosos contatos em prol do futuro.
E esse futuro chegou de presente como uma primeira nesga de ar fresco após um sufocamento intenso, capaz de quase me fazer sucumbir. Minha aparência sofreu poucas mudanças. Talvez alguns poucos quilos a mais. Meus cabelos voltam a sorrir agora bem cortados, soltos e sem nós. Inclusive lembro de quando a palavra nós só podia ser usada mesmo como substantivo, contudo agora os pronomes e os contatos pessoais voltaram a integrar nosso vocabulário recém-arejado.
As ruas estão cheias, tal como ficavam antes do medo e até durante, em algumas localidades. Hoje, fiz atividade física embora o ar nos meus pulmões não esteja mais puro. Minha energia aos poucos é recarregada como a bateria de um celular carente, cansado e apagado há muito tempo. No caminho, vi muitos tentando se recuperar financeiramente. Vi filas intermináveis de pessoas, boletos, acordos, negócios, e de sonhos estacionados.
Estou acordando. As pessoas também estão. Nos meus olhos ainda falta luz e os números já aumentaram. De pessoas nos shoppings, nas tão esperadas mesas de restaurantes, nos cafés. O número de crianças reprovadas, de concursos cancelados, de artes engavetadas por mostrar, ou ainda aprisionadas nas telas de computadores e celulares. As lives ganharam espaço fixo e os beijos e carícias de amor acostumaram-se a ser escassos.
Vi o trabalho angustiado, sendo retomado com ânsia e pressa. Vi nos hospitais um pouco de alívio e silêncio, e em mim vi cansaço. Vi emoções em frangalhos, sorrisos apáticos e o costume da distância.
As mãos ainda estão distantes. As pessoas não olham mais para o lado. A direita e a esquerda estão ricas e indiferentes dos caminhos que apontam. Há uma guerra fria, sufocadora e interminável. No espelho, vejo meu rosto pálido e o futuro replicar o passado sem nenhum constrangimento. Novamente. Ao menos estamos a salvo.