O garanhão de Ouro Preto
O garanhão de Ouro Preto
Alexandre Santos*
Dorival Snow fora um grande garanhão.
Quando olhava para trás em direção ao horizonte na memória esmaecida e complacente - mais larga ou mais estreita, mais nítida ou mais apagada, conforme as conveniências do momento -, Dorival seguia o rastro de suspiros deixado por onde passara e, sem jamais reconhecer, intimamente comemorava um monte de corações, hímenes e esfíncteres sem rostos e sem nomes que destroçara ao longo da movimentada e longa jornada de macho-alfa, que o fazia merecedor de referências à forma como abatia, satisfazia e, em seguida, sem dó ou remorso, abandonava presas apaixonadas.
Ainda na adolescência, depois de ter a invulgar virilidade descoberta, provada, explorada e alardeada por Niradeja - a coroa fogosa e gostosona até então, desdenhada pelo marido prematuramente enfraquecido, sempre pelos cantos a suspirar saudades das safadezas que lhe eram tão caras -, Dorival foi quase que forçado a aplacar os vulcões repentinamente despertos à beira da fúria em todas as matronas carentes do conjunto residencial no qual morava, passando a ser conhecido na crescente comunidade das iniciadas como o 'mastro de salvação'. Naquele tempo, enquanto os coleguinhas ainda corriam pelos becos, ruas e praças em brincadeiras inocentes de adolescência, Dorival experimentava e distribuía delícias, esgueirando oitões e jardins para preservar reputações e juras de segredo. Quantas vezes, depois do grito abafado de um "Oh! Meu marido chegou', precisou correr nu, pular muros ou se esconder em armários apertados depois de ter fincado o tal mastro de salvação na mãe ou na tia de algum amigo.
O tempo passou, mas a natureza e o vigor de Dorival permaneceram os mesmos.
Anos mais tarde, já nos bancos universitários, sem saber-se precedido pela fama, Dorival não conseguiu controlar-se por muito tempo e, ainda nas primeiras aulas, já enlouquecido pelos umbigos, cofrinhos e coxas que desfilavam acintosos pelos corredores da faculdade, cedeu às cantadas das colegas veteranas e caiu na gandaia. Ao que dizem, depois de provar e ser provado pelas calouras, Dorival soltou o touro indomável que carregava dentro de si pelo campus, numa caçada impiedosa da qual poucas conseguiram escapar.
Não foi à toa que, já adulto, lá em Ouro Preto, onde morou por toda a vida, fazendo a alegria da mulherada, se deixando conhecer pelas vizinhas e as conhecendo por dentro e por fora, sem que soubesse, em merecido gesto de reconhecimento, Dorival passou a ser referido como 'o garanhão de Ouro Preto' - uma alcunha cochichada pelas esquinas, padarias, salões de beleza, pontos de ônibus e filas de supermercados por mulheres saudosas de amassos e mergulhos inesquecíveis e que, como um previsível rastilho de pólvora, logo chegou às filhas e sobrinhas, despertando-lhes a curiosidade e a vontade de também conhecer os encantos irresistíveis do garanhão (um sonho que, diga-se de passagem, mais cedo ou mais tarde, foi concretizado pelo incansável garanhão, sempre aceso e disposto a fazer a caridade dele esperada).
Não era sem razão que Dorival era cobiçado pelas fêmeas e temido pelos machos. Poucas admitiam, mas, até as mulheres proibidas de insinuar-se ou aceitar a corte costumavam molhar as calcinhas só em pensar no 'Garanhão de Ouro Preto'. Um estudo científico diria que, somado ao vigor, carinho, criatividade e apetite como se entregava ao amor, Dorival era portador de um sex-appeal natural que enlouquecia as fêmeas. Umas mulheres falavam do cheiro, outras [falavam] da voz, outras, ainda, [falavam] do toque e da temperatura. Muitas diziam que o seu corpo [de Dorival] irradiava uma aura máscula. Eram muitas as razões que faziam Dorival levar as mulheres ao delírio. Não havia registro, mas, perdidamente apaixonada, uma colega de trabalho jurava ter sido arrebatada ao ver o brilho emanado do olhar de Dorival numa fotografia.
A lista das mulheres que passara na vida de Dorival era enorme. Jovens, maduras, negras, brancas, galegas, sararás, solteiras, separadas, casadas, todo o tipo de mulher. Não importava nome, sobrenome, estado civil. Não tinha escapatória. Se entrasse na alça de mira do Casanova, se quisesse poupar tempo, era melhor ir logo baixando as calcinhas. Das muitas mulheres que passara na sua vida, Dorival lembrava apenas de algumas: Ruth, Graças, Cláudia, Renata, Letícia, Maria Lúcia, Marcela, Verônica e mais uma meia dúzia, que, embora casadas (mantendo relações insatisfatórias, mas extremamente sólidas por conta dos interesses envolvidos nos matrimônios), quando estavam com Dorival se esbaldavam sem limites, fazendo da promiscuidade extrema a normalidade do namorico. Sem jamais saberem que, um dia, compartilharam o mesmo homem, elas pareciam se esmerar para agradá-lo com mimos sexuais de todas as naturezas. Tudo era permitido. Se fosse jurado de um filme de pornografia barata, Dorival teria dificuldades para escolher entre aquelas libertinas qual mereceria o troféu Quenga do Milênio. Provavelmente, optaria pelo empate, uma decisão que, em contraponto, colocava os respectivos maridos na disputa pela medalha do 'o corno mais corno de todos os tempos' com igual chance de empate
Mas, como tudo na vida, a carreira do garanhão também chegou ao fim.
O ocaso começou quando ele conheceu Mariza. Nos termos da fofoca circundante, a tal Mariza era viúva de um homem que, inocente das acusações a ele [ao marido] imputadas, morrera na prisão, em rumoroso caso de injustiça irreparável. Na realidade, nada disso vinha ao caso para o interesse meramente carnal alimentado por Dorival, mas o fato é que, embora apaixonada (como qualquer outra das mulheres que o conheciam), Mariza jogou duro e, com os olhos umedecidos (como tudo o mais), confessou que, por razões de foro íntimo, daria e faria tudo com ele, mas "só depois de casar". Aquilo foi um choque para Dorival, que jamais enfrentara resistência nas suas investidas. O impulso natural do predador seria o de admitir o insucesso e redirecionar a caçada, mas alguma coisa conteve Dorival, que, ao invés de seguir o caminho em busca de nova presa, decidiu que Mariza seria sua.
Estava aberto caminho da debacle.
De fato, num processo que, por si só, significava a grande mudança ('um revestrés', no dizer de alguns e 'a aposentadoria' no dizer de outros), quanto mais tempo Dorival passava na corte à Marisa, menos tempo dedicava ao affair de sempre e, pior, mais se afeiçoava a ela. E, finalmente, Dorival descobriu-se apaixonado.
Esquecido da função que fazia o seu dia-dia, para tristeza das mulheres que se mantinham no seu encalço com as entranhas em brasa, Dorival recolheu o famoso 'mastro de salvação' à inatividade, guardando-o para a mulher da sua vida - Mariza, que, sem nunca negar-lhe um cafuné carinhoso, deixar de aparar-lhe as madeixas e os pelos que teimavam em crescer nas orelhas ou levar-lhe frutas no trabalho, manteve firme a decisão de dar-lhe de tudo e muito mais "depois de casar".
E, assim, vivendo uma vida monástica, driblando o assédio das mulheres que insistem em se dar a ele sem qualquer cobrança ou compromisso, convivendo com chacotas e insinuações de que, como tantos antigos garanhões, teria amolecido ou, mesmo, virado a casaca, Dorival mantém-se firme na espera por Mariza. Ele sabe que, um dia, o mastro da salvação voltará a funcionar, mas será apenas para Mariza, a mulher da sua vida.
Como de tantas outras vezes, o amor venceu a gandaia!
(*) Alexandre Santos é ex-presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural