A DAMA DE VIDRO

O rosto é de porcelana. Forjado e manipulado por apenas um par de mãos. O senhor dessas mãos deve ter colocado muita água sob os olhos, pois lágrimas lúgubres escorrem delicadamente. Os olhos verde-oliva refletem a cor do horizonte laranja-cenoura, do início da manhã.
O vestido azul esvoaça ao vento, como se quisesse ir embora, ou como se antecedesse o que viria a acontecer e não quisesse participar. Os pés descalços estão pálidos com o frio que são obrigados a suportar.
Os últimos lírios do campo são consumidos pelo vento mordaz do início do outono. As folhas desprendidas chocam-se com as pétalas, fazendo a moça no alto do penhasco pensar em como a morte é bela. Pois, se há uma verdade, é esta: a morte é bela, pois, se assim não fosse, por que outro motivo iriam todos correr para os seus braços, no final? Com certeza, não iriam em busca da feiura, pois esta já se encontra na vida, a qual é como uma mistura de cores luminosas que, quando bem dissolvidas, viram uma massa branca e nessa cor não há emoção, ela é monótona, é simples e é óbvia. Já a morte, é uma ausência total de cores, um preto total, por assim dizer, onde se encontra, então, a total beleza, formada pelo mesmo mistério que uma noite sem Lua detém.
A garota de olhos verdes encara agora a beleza inegável da morte, que procura tragá-la, conforme os primeiros raios do Sol nascem no horizonte. As cores da vida, os segredos da morte.
O cansaço de tudo aquilo se abate sobre a menina. Levando-a a sentir-se dissolúvel e frágil, como se sua pele de porcelana estivesse a desmanchar-se em fogo brando. A inutilidade de tudo a faz questionar a vida. Sim, porque a vida é infiel. Nunca diz o que se passa, nunca oferece a sua luz. Esse tempo todo, a garota esteve entre as cores, e elas nunca coloriram o mundo e os arredores como os fatos em si aconteceram. Já a morte não mente, ela promete e cumpre, como uma arma promete um tiro, ou um Sol promete nascer novamente.
Um passo. Era tudo o que lhe faltava para ir ao encontro com a cumpridora de palavras. Contudo, algo a detinha. Seria o vento a sussurrar promessas de que tudo melhoraria? Seria o Sol querendo anunciar um novo começo? Seria o rio a correr metros abaixo, como se quisesse lembrá-la de que tudo passa? Seriam os Anjos, enfim, querendo ajudá-la? Ou seriam, por ventura, os passos que chegavam apressados?
Uma voz a chamou. Não doce, nem suave. Mas urgente e desesperada.
Ela, lentamente, se vira, deixando as lágrimas voarem pelo ar. Vê um rapaz a correr em sua direção, parando lentamente, como que hesitando frente àquela moça de porcelana que parecia ter se quebrado e sido juntada por mãos descuidadas. Ali estava o seu forjador, que colocou um pequeno defeito sob seus olhos.
“Não façais isso, eu vos rogo. Juro que arrepender-me-ei!”
“Arrependimento não basta!”
“Ó, meu amor! Não se jogueis do penhasco! Não me deixeis sozinho!”
“Vós que escolhestes isso quando o matara!”
“Meu amor, fiz isso por amar a vós!”
A garota de cabelos negros esvoaçantes, e anelados, vira novamente para o penhasco e observa as águas translúcidas e movimentadas abaixo, convidando-a para um último limpar de corpo, prometendo lavar sua alma poluída pela vida.
“Pois isso não é desculpa para matar um inocente!”
“Não poderia deixá-lo casar-se com vós!”
“Pois sabei vós, que eu o amava. Pensei que fostes meu amigo, todavia mateis meu amor e, consequentemente, minha vida!”
“Não!” – um grito, nada mais.
O ar contra seu peito vem firme e a carrega, enquanto o Sol nasce no horizonte, até no último momento de sua vida ele cumpre a promessa de esperança.
A partir de então, a vida a abandona, como quem se desfaz do lixo.
A morte a agarra, faminta e necessitada, como os mendigos que varem a cidade em busca de alimento.
Assim que a morte a envolve, a garota percebe que ela não é um preto total e, sim, muito diferente disso, sendo uma mistura dos primeiros raios de Sol. Então, a moça entende o porquê disso. A morte é como o vidro, deixa transparecer tudo através dela. Torna-se imensa a surpresa da menina ao ver que havia muitas cores esquecidas, muitos nomes misturados, muitas histórias acumuladas pelo tempo. Percebe, então, aonde vem parar todas as Histórias verdadeiras, sendo que a Vida retém apenas cópias ilegais.
Ao fundo, num canto remoto, vê onde sua própria História fora armazenada, onde toda a sua vida fora aprisionada, com acontecimentos que até já lhe fugiam da memória. E o que era a Morte, senão uma prisão de vidas?
Aos poucos, sua consciência é consumida por si mesma, como quem consome o último gole do vinho antes de cair no sono. Contudo, aquele é o sono eterno, de onde não se acorda.
Está, ela, Morta.
A Dama de vidro continua a sua dança, numa harmonia cerimoniosa. Com uma serenidade em seu semblante imponente. Os pés tocando, delicadamente, um pedaço do grande tabuleiro de xadrez da existência.
No alto da montanha, enquanto as peças continuam sua dança eterna, um jovem olha para baixo, onde o corpo da amada sumira tragado pelo rio, ou melhor, pela Dama de vidro.
Danieli Mützenberg – 20 anos
Enviado por Ilda Maria Costa Brasil em 29/04/2020
Código do texto: T6932270
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