O terrorista
O terrorista
Alexandre Santos*
Carlos tinha pouco mais de vinte anos quando, em salas e salões dos quais jamais ouvira falar, o golpe estava sendo preparado.
Naquela época, sem perceber o que acontecia em volta, desiludido com o amor e mergulhado na cachaça, Carlos tentava esquecer a vaporosa Joana Gordinou - primogênita de uma tradicional família de usineiros, cujos ancestrais tinham incorporado o apelido da principal engenho do clã, logo alçado à condição de sobrenome pelo charme francês que trazia sem sabê-lo associado ao fato de os tataravós avarentos oferecerem apenas farinha de mandioca aos filhos dos trabalhadores (que, de tão pobres, não tinham roupas e andavam nus até a infância avançada), inchando barrigas vazias como se fossem gordos, daí o nome 'engenho dos gordos e nus', posteriormente sincopado para 'engenho dos gordinús'. Foram seis meses perdidos, longe dos estudos, zanzando de bar em bar, sem a menor esperança de recuperação. Nada conseguia despertar o interesse do jovem. Um dia, já descrente da ajuda de médicos, amigos, orações e outros benfazejos, a mãe resolveu entregar o caso à Deus, pois "só Ele conseguirá resgatar Carlos da sarjeta".
E aconteceu o milagre.
Poucos dias mais tarde, no começo da manhã, quando ainda sóbrio se dirigia ao botequim para as primeiras doses do dia, Carlos esbarrou em Débora, que, extremamente furiosa, circundava o carro mal estacionado, chutando impiedosamente os pneus estourados. A empatia foi imediata, harmonizando o humor de ambos. Um caso, diriam alguns, de amor a primeira vista. Repentinamente esquecido de Joana, dos Gordinous e da cachaça, encantado por Débora, Carlos passou parte da manhã, inicialmente, esperando o borracheiro e, depois, simplesmente jogando conversa fora com ela. Estudante de medicina, sem a arrogância e boçalidade dos Gordinous, ela parecia de outro mundo. Seu único defeito era a aliança que usava na mão direita. Horas mais tarde, quando Débora brilhou um sorriso e, depois de um olhar comprido, sumiu no trânsito, ao invés de seguir para o botequim, como vinha fazendo nos últimos meses, Carlos voltou para casa.
Com a moça na cabeça, ficou longe do álcool e voltou a frequentar o curso de economia.
Alguns meses mais tarde, com a chegada das férias, julgando-se recuperado e pronto para enfrentar os encantos e os percalços da vida, Carlos resolveu fazer uma viagem pelo interior. Já acostumada com as invenções do filho, a mãe custou a acreditar na tal viagem. Afinal de contas, sendo um 'dia da mentira', a mochila que Carlos carregava ao sair bem podia ser uma brincadeira. Mas, não era. A aflição da mãe aumentou quando ouviu o noticiário e viu a cidade se encher de soldados, tanques e medo. De qualquer forma, dessa vez, Carlos estava longe da bebida e, se Deus quisesse, ficaria longe dos malvados.
Ao contrário do que a mídia amordaçada deixava transparecer, havia grande resistência ao governo recém instalado. Diversos tipos de oposição, em diversos níveis de organização e com diversas formas de ação atuavam por todo o País, minando a lengalenga oficial nos meios artísticos, operários, populares e acadêmicos. De sua parte, em contraponto à ebulição que começava a ferver, o regime reprimia insatisfeitos com força desproporcional, fazendo crescer galos e aparecer hematomas, criando mártires e, desmoralizando os ideólogos da violência, dando o combustível que a revolta precisava para crescer mais ainda.
Pois bem. No dia seguinte à chegada de Carlos na distante Carnaíba, sob a alegação surrealista de que maconheiros vinculados ao temido Movimento Revolucionário do Povo Livre se preparavam para iniciar uma onda subversiva na região, os militares tomaram a pequena cidade e, tornando o comprimento de cabelos, uso de jeans e camisetas, gestos e gírias e preferências musicais indícios suficientes para julgamentos apressados, prenderam muita gente. Foram tantas as detenções que, sem lugar para confinar todo mundo, até o ginásio do colégio foi usado como prisão. Não era sem razão que, quando militares chegavam, a debandada era geral.
Num daqueles dias, escapando de sucessivos arrastões policiais, esbaforido pelas correrias, Carlos entrou na primeira porta aberta e se escondeu no buraco mais escuro que encontrou. Fez muito bem, pois, vestido como se vestia, falando como falava, gesticulando como gesticulava e cantarolando as músicas que cantarolava, dificilmente escaparia do cassetete e, certamente, incluso no rol dos 'cabeludos suspeitos', seria recolhido a alguma prisão com grande probabilidade de ver o céu quadrado por muitos meses. Só depois de muito tempo, decantada a adrenalina que tomara-lhe as veias, Carlos procurou saber onde estava. Como se fosse coisa feita, descobriu-se cercado por queijos, defumados, barris e muitas garrafas e botijões. Estava na adega do melhor restaurante da cidade. Ali tinha de tudo. Além de todo tipo de queijos e de salames, havia vinhos, whiskies, cervejas, cachaças.
Se aquilo tivesse acontecido alguns meses antes, aquele esconderijo seria um paraíso, mas, na ocasião, vivendo a fase final de desintoxicação, a proximidade com tanto álcool funcionou como uma espécie de provação. Não foi fácil. Por três dias e três noites, até os militares levantaram acampamento para encher o saco de outra cidade, Carlos ficou ali, enfurnado à pão e água, resistindo a vontade de entonar um gole que fosse de vinho ou de qualquer outra bebida. Mas, Carlos fez valer a força de vontade e superou a provação. Quando saiu do buraco, estava imundo e sóbrio.
Revoltado e cheio de ímpetos contra o regime, Carlos voltou para o Recife.
Alguns anos se passaram. Nesse período, mais vivido e curado da cachaça, Carlos teve tempo de recuperar disciplinas perdidas, entrar e sair da resistência ativa ao regime, de conhecer lugares e pessoas e, por uma dessas reviravoltas da vida, de reatar com Joana, num namoro logo convertido em noivado e, poucos meses depois, em casamento.
Aqueles eram tempos de grande turbulência pelo País.
Em casa não era diferente.
Na realidade, abalado por constantes discussões, o casamento de Carlos e Joana começou a capengar desde o altar, pois, mesmo reprimido, o DNA Gordinou que animava a noiva era forte o suficiente para jamais deixar de se mostrar. Já na lua de mel, emergira com frequência exagerada, cobrando muita paciência - um artigo que, segundo dizem os antigos, tem limite. E, logo, aconteceu a famosa gota d'água que, mesmo parecendo pequena, na sequência de muitas outras, faz o pote transbordar. Depois de uma das brigas diárias, mais uma entre tantas outras, por obra do acaso, Carlos voltou a encontrar Débora, que, como da vez anterior, rodeava o carro chutando pneus estourados. Ao ver Carlos, imediatamente, ela esqueceu a raiva e iluminou um sorriso. O sorriso de sempre. Parecia até não ter passado tanto tempo desde a única vez que, em situação semelhante, tinham se visto há tempos.
Esquecidos dos contratempos, sem esconder alegria com o reencontro, Carlos e Débora conversaram como se conversassem todos os dias. Já no primeiro minuto, enquanto Débora, cujo casamento tinha soçobrado, notava e não gostava da aliança que Carlos usava na mão esquerda, Carlos, cujo casamento estava soçobrando, notava e gostava de não ver a aliança que Débora usava na vez anterior (e que poderia ter mudado de mão desde então). De qualquer forma, talvez procurando compensar o tempão que não se viam, despreocupados com o relógio, conversaram até o final da manhã, quando precisaram voltar ao mundo real. Dessa vez, mais precavidos, trocaram os telefones. Quando chegou em casa, meia hora mais tarde, alegre como um passarinho, um grito de Joana fez Carlos lembrar com quem estava casado.
Pelos próximos dias, Carlos e Débora se falaram faláramos muitas vezes pelo telefone. No começo, como se fossem adolescentes, procuravam casualidade inventando motivos para as ligações. Dez chamadas depois, no entanto, perderam a compostura e ligavam-se com motivo, sem motivo, de qualquer forma, apenas para ouvir a voz do outro. Como de esperar, em pouco tempo, chegou um momento em que falar por telefone já não resolvia a ansiedade e eles queriam se ver e se tocar. Mas, aquele não era um passo fácil como podia parecer. Afinal de contas, além de não buscar mera aventura, ambos sabiam que, dado o primeiro passo, não havia caminho de volta. Por outro lado, a aliança que luzia o anular esquerdo de Carlos perturbava Débora e, de sua parte, conhecendo como conhecia o sangue Gordinou, Carlos não se julgava pronto para enfrentar o terremoto que sabia vir pela frente. Na realidade, eles estavam numa sinuca-de-bico, pois, embora não suportassem a distância que os separava, não tinham ainda como ficar juntos.
Um dia, no entanto, talvez sem suportar a vontade ou, quem sabe, querendo a apressar uma decisão, depois de dizer que, no final do mês, passaria uma semana em Salvador num congresso qualquer, Débora perguntou se ele não queria ir com ela. Claro que queria. Repentinamente aceso e disposto a enfrentar os Gordinous, Carlos disse o 'sim' desejado.
Sabendo que aquela semana poderia ser decisiva para o futuro de ambos, eles viveram os dias mais longos das suas vidas. Carlos chegou a sonhar em esganar o patriarca Gordinou. Enquanto isso, parecendo uma noiva que se prepara para o altar, Débora comprou novas roupas, se depilou, fez o cabelo, se maquiou. No dia do embarque, dizendo seguir em longa viagem pelo interior do Estado para visitar clientes, Carlos preparou uma pequena maleta e saiu logo cedo. Assim que pode, surpreendendo o taxista, meteu a cabeça num chapéu de feltro preto, fez grande malabarismo para envelopar o corpo num sobretudo igualmente preto e escondeu os olhos por trás das lentes pretas de um óculos Ray-ban. Sentindo-se preparado para as coisas que vinha pela frente, Carlos redirecionou a corrida originalmente contratada para a Estação Rodoviária, no Cais de Santa Rita, no centro da cidade, para o aeroporto dos Guararapes, na zona sul.
Ia começar a grande aventura.
No saguão do aeroporto, muitos o estranharam, mas, como naqueles tempos de chumbo, as forças de segurança estavam por toda a parte e, além disso, naquele dia específico, um figurão era esperado no aeroporto, o homem com a indumentária esquisita bem podia ser do Serviço Nacional de Informações (SNI) ou coisa que o valha. De sua parte, estranhando o grande número de pessoas no aeroponto e, obviamente, nervoso, Carlos se sentia inseguro e, mesmo com a identidade protegida pelo disfarce espalhafatoso, com medo de encontrar alguma amiga de Joana ou, quem sabe, alguém da corte submissa aos Gordinous, a cada segundo, olhava para ambos os lados. Ele, no entanto, estava irreconhecível. Aliás, até Débora, que ficou a poucos metros dele no check-in, só o reconheceu depois de algum tempo (quando, depois do susto inicial, não conteve a gargalhada). De qualquer forma, em meia hora, após as inspeções de praxe, estavam juntos na cabine do avião que os levaria para Salvador para aquela que seria a semana decisiva das suas vidas.
Arrulhando como pombinhos apaixonados, Carlos e Débora não podiam saber, mas, no instante em que alçaram os céus rumo à Bahia, o serviço de som do aeroporto anunciou que, ao contrário do noticiado pela imprensa, o general-candidato esperado não chegaria ao Recife por via aérea e, sim pela BR-101. A informação caiu como uma ducha fria em muitos projetos, alguns dos quais planejados cuidadosamente por muito tempo e por muita gente. Na realidade, embora tenha mudado muita coisa, o aviso tardio impedia a suspenção ou reversão de algumas providências tomadas no âmbito de alguns dos planos associados à chegada do general-candidato. E, aí, sem ter como interromper o inevitável, alguns aproveitaram a debandada dos xeleléus e curiosos para, sem olhar para trás, ganhar a Praça Salgado Filho, em frente ao aeroporto, antes de que o pior acontecesse.
E o pior aconteceu.
O dispositivo de recepção ainda não tinha sido integralmente desfeito, quando, no meio do corre-corre, um segurança achou uma maleta escura e, cheio de boa vontade, tentou entregá-la no balcão de achados e perdidos. Acontece que a maleta continha uma bomba-relógio de temporizador curto e a explosão veio de pronto, matando, mutilando, ferindo e destruindo. A confusão foi grande. Imediatamente, o aeroporto foi cercado e ocupado pelos militares. Ninguém entrava, ninguém saía. Uma guarnição da polícia do exército vasculhou o aeroporto em busca de indícios. Testemunhas foram interrogadas. Em menos de uma hora, os investigadores tinham um suspeito - um homem de chapéu de feltro preto, vestindo um sobretudo preto e óculos Ray-ban de lentes escuras. Animados, os oficiais esperavam ter um retrato falado do provável autor do atentado ainda naquela manhã.
Imediatamente avisado, o estado maior das forças armadas se mexeu e, refletindo a lufada soprada desde o Recife, esqueceu a brandura que os mais otimistas viam nas entrelinhas das entrevistas e comunicados à nação e convocou oficiais da chamada linha dura do Planalto Central. A peristalse começara. Dali em diante, tudo seria pouco. Preocupados com o efeito do zum-zum-zum que, inevitavelmente, se alastraria pelas ruas, os comandantes militares decretaram a imediata censura ao noticiário e delegaram ao SNI a gestão das informações: nada que dissesse respeito ao atentado dos Guararapes chegaria à imprensa sem a chancela dos arapongas de Brasília. E, então, a combinação do medo de quem sabia coisas com a discrição de quem só então começava a tentar descobri-las calou a versão oficial e abriu espaço para a boca miúda, que, ao sabor do momento, dizia o queria.
O cuidado com a informação foi tanto que só duas horas após o atentado, quando Carlos e Débora davam o endereço do hotel ao taxista, a sala de segurança do aeroporto Dois de Julho, em Salvador, recebeu informações oficiais sobre o atentado no Recife. Foi um momento de muita tensão, pois, além de o assunto ser naturalmente grave, a descrição do provável terrorista correspondia ao passageiro de aparência 'excêntrica' que chegara no último voo vindo da capital pernambucana. Um alerta foi acionado. E, antes de Carlos e Débora se apresentarem na recepção do hotel Monte Pascoal, no Farol da Barra, as forças de segurança baianas já sabiam que o principal suspeito do atentado nos Guararapes estava em Salvador. De imediato, a cidade foi colocada sob lupa e um pente-fino começou a ser montado para varrer ruas, avenidas, praças, hotéis, pousadas e hospedarias em busca do terrorista vindo de Pernambuco.
Enquanto, numa confortável suíte, sem saber da confusão que abalava o País ou do perigo que corriam, Carlos e Débora curtiam as delícias da intimidade, comemorando o amor da melhor maneira que sabiam, na ruas de Salvador, carros e ônibus eram vistoriados pelas forças de segurança na busca do perigoso terrorista.
Passava das quatro quando, exaustos de tanto amar, Carlos e Débora lembraram dos estômagos. Era hora de comer alguma coisa. Ainda molhados do banho, decidiam se comeriam alguma coisa no hotel ou arriscariam uma moqueca no Rio Vermelho quando foram assustados pela vinheta nervosa da edição extraordinária. À exemplo de todo mundo, eles interromperam o que faziam para se ligar na televisão. Sem ideia das expressões de medo e de espanto provocadas pelo noticiário, o locutor dizia que, "segundo autoridades do IV Exército, o principal suspeito do atentado que, naquela manhã, matara duas pessoas no aeroporto dos Guararapes, no Recife, está em Salvador" e, antes de pedir a colaboração da população para denunciar suspeitos, a notícia descrevia a indumentária do provável terrorista. Com olhos progressivamente esbugalhados, Carlos e Débora voltaram a cabeça e..., como já sabiam, a prova estava lá. Em cima da poltrona, largados como se servissem apenas para fugas estratégicas, estavam o casaco, o chapéu e o óculos Ray-ban descritos na notícia. Repentinamente, se deram conta de que, no afã de se esconder dos Gordinous, Carlos viajara vestido como o terrorista dos Guararapes e, como tal, ingressara no rol dos inimigos do Estado. E agora? Um friozinho na barriga alertou que alguma coisa não estava certa. O que fariam? O tal friozinho na barriga teria aumentado se eles soubessem que - a partir de denúncia feita pelo motorista que levara Carlos ao aeroporto, lembrando dele vestir as 'roupas do terrorista' e mudar o destino da corrida no meio da viagem - a polícia chegara à mansão dos Gordinous e já tinha os seus dados completos: nome, idade, fotografia, profissão e tudo o mais. O interessante é que, depois da sogra afirmar "esse Carlos nunca me enganou", a própria Joana começou a falar mal do marido, informando à polícia estar no início de um processo de separação.
Esquecidos da fome (e, era preciso reconhecer, com repentino medo de sair do apartamento), mesmo sem qualquer informação a não ser aquelas noticiadas pela televisão, eles - provavelmente, se imaginando num filme de espionagem - Carlos e Débora decidiram se livrar das roupas criminosas, apagar os rastros da hospedagem e mudar de hotel. Afinal de contas, Carlos fora visto vestido como o tal terrorista pelo taxista que os conduzira deste o aeroporto e pelo pessoal do hotel. Não havia tempo a perder. Ao invés de vestirem-se para um passeio romântico em Salvador como sonharia um casal quase em lua-de-mel, Carlos e Débora socaram o sobretudo, o chapéu e o óculos num saco para roupa suja, refizeram as malas e desceram à portaria. Viveram, então, mais um pequeno episódio da grande aventura que os entrelaçava, pois, precisando deixar o hotel sem deixar rastros, não podiam cumprir o ritual de um check-out normal. Pelo contrário, precisavam sair do hotel como se nele nunca tivessem entrado. A armação foi elaborada. Inicialmente, fingindo passar mal com um grito estridente na área dos elevadores, Débora atraiu o pessoal da portaria, criando o tempo que Carlos precisava para, antes de correr do hotel com as bagagens, entrar na recepção e, sem qualquer método, subtrair a maçaroca de fichas cadastrais preenchidas na entrada pelos hóspedes.
Pronto! Terminada a encenação, estavam fora do hotel.
Saíram na hora certa. Ainda na Avenida Oceânica, a poucos metros do Farol da Barra, o taxi que os levava para o Hotel São Bento, nas proximidades da Praça Castro Alves, na Rua Chile - que se enquadrava na referência geral de "qualquer hotel, no centro da cidade" solicitada ao motorista - cruzou com o comboio policial guiado pelo taxista que os apanhara no aeroporto. Em poucos segundos, o hotel Monte Pascoal estava cercado e passava por rigorosa vistoria. Nada escapou ao baculejo. A localização do saco plástico recheado com o disfarce do provável terrorista foi uma questão de tempo. O hotel seria um aparelho terrorista? Não, não era. Mesmo pressionados pelos federais, os funcionários do hotel não acrescentaram muito ao que tinham dito nos primeiros minutos de interrogatório. Após apurar a recentíssima fuga do suspeito e de sua companheira (uma jovem que, pelo sotaque, também deveria ser pernambucana) e, ainda, o desaparecimento das fichas cadastrais de todos os hóspedes, o agente-chefe registrou a localização da indumentária suspeita no Relatório de Busca, acrescentando que, pela forma e presteza como deixara o hotel, além de experiente, certamente o terrorista contava com o suporte de uma vasta rede de apoio, provavelmente já infiltrada na mais elevada hierarquia da polícia.
Enquanto isso, profundamente arrependido de ter tentado esconder a viagem à Salvador com disfarce tão perigoso e sem saber que, àquela altura, prestes a receber a sua fotografia da velha Gordinou, a polícia concluíra ser ele um "terrorista experiente com o suporte de uma vasta rede de apoio", Carlos burlava o cadastro do Hotel São Bento afirmando chamar-se Virgulino da Silva e estar em viagem de negócios vindo do Crato. Movida por um misto de medo e de excitação, Débora embarcou na onda e, assumindo a condição de esposa de Virgolino, disse chamar-se Maria Gomes. O pagamento de duas diárias antecipadas e uma boa gorjeta ao concierge sustou o usual pedido de identificação e, também, calou qualquer pergunta embaraçosa. Na realidade, tendo percebido a ausência de alianças e um certo nervosismo no casal, o concierge inferiu ser testemunha de um caso extraconjugal e, lembrando as próprias estripulias, com uma piscadela cúmplice para Carlos, embolsou o dinheiro em espécie e sequer deu entrada nos documentos do check-in. Assim, graças à famosa solidariedade masculina, tinham, pelo menos aparentemente, conseguido um lugar seguro para ficar. Que alívio. E, imaginando que a loucura tinha passado, tão logo se acomodaram no novo hotel (que, comparado ao outro, era uma espelunca), Carlos e Débora foram às ruas sem alvoroço. Rindo da aventura e, cada vez mais apaixonados, decidiram conhecer o Pelourinho. Era hora de comer e beber alguma coisa. Talvez uma cerveja, um acarajé, quem sabe, um vatapá. Os planos eram muitos. Acontece que, ao contrário do que pensavam, o perigo não tinha acabado.
De fato, convencido de que estava diante de uma grande chance profissional, o agente-chefe estava decidido a caçar o terrorista que aventurara-se em seus domínios até os confins do inferno. Aliás, a retomada da pista do terrorista foi mais fácil do que o agente esperava, pois, em horário imediatamente anterior à batida no Monte Pascoal, demonstrando nervosismo, quase correndo, um casal apanhara um carro no ponto de taxi da esquina, pedindo para ser levado "para qualquer hotel do centro". Ora, que casal é este que sai de um hotel de luxo instantes antes de uma batida policial e pede para ser levado às pressas para outro hotel qualquer?, matutou o agente-chefe. Estava na cara que o casal procurado era exatamente aquele. Dispensando qualquer aperto, o taxista apressou-se em contar que conduzira o casal suspeito ao Hotel São Bento.
Nova correria. dessa vez, rumo ao centro.
No hotel da Rua Chile, novo cerco, novo baculejo. Dessa vez, nada apareceu. O fichário do check-in não indicava qualquer movimento nas últimas horas. Onde estaria o casal trazido pelo taxista? Alguém estava mentindo, claro. Sem poder confessar a admissão do casal "por fora" do cadastro - uma fraude que trazia implícito o pequeno desfalque, pecados graves o suficiente para privá-lo do emprego e, lógico, das boas gorjetas que dele advinham -, o concierge usou o talento desenvolvido nos anos e anos na arte de mentir e dissimular para enfrentar o pequeno interrogatório, jurando jamais ter visto o casal suspeito.
Horas mais tarde, ao voltar da noitada, ao invés do sorriso cúmplice de antes, Carlos e Débora foram recebidos rudemente pelo concierge. Enfezado, berrando aos cochichos, o recepcionista falou da busca policial e, depois de dizer-se traído na boa fé como os tratara, comunicou que não se arriscaria a mantê-los às escondidas no hotel. Em resumo, disse com a voz de quem não admite contestação que eles teriam de deixar o São Bento no dia seguinte logo cedo, "antes do café da manhã", frisou. O baque foi grande. Mais uma vez, estavam como diria o baiano que em breve despontaria nas paradas "sem lenço e sem documento". No quarto, já refazendo as malas com novo friozinho na barriga, ligaram a televisão e, mesmo na loucura daqueles dias, precisaram fazer força para acreditar naquilo que estavam vendo. Na tela, ninguém menos, ninguém mais do que Joana Gordinou dizia cobras e lagartos de Carlos, referido como 'ex-marido'. "Embora sempre, desde os tempos de estudante, ele tivesse sido meio esquerdista, eu não esperava jamais que Carlos fosse pegar em armas...". E, como se não o conhecesse, Joana pintava um Carlos que não existia, fazendo a imagem esperada pelas forças de segurança, nas quais os Gordinous tinham muitos amigos.
Nem tudo, no entanto, era ruim. Afinal de contas, se de um lado, o depoimento de Joana criava sério problema para Carlos - além de expor publicamente a sua identidade, a entrevista criava imagem irreal da sua personalidade -, de outro, resolvia muitos outros, especialmente a questão da separação. De fato, dispensado de prestar contas aos Gordinous, embora mergulhado até o pescoço numa culpa que não lhe pertencia, Carlos agora poderia (desde que não tivesse as forças de segurança no seu encalço) andar abraçado ou de mãos dadas com Débora. Naquela hora não havia muito o que fazer. As malas estavam feitas e só precisariam deixar o hotel às 06h00. Até lá tinham tempo mais que suficiente para planejar o que fazer, dormir e, sobretudo, amar. E, assim, fizeram.
No dia seguinte, pouco depois de os primeiros raios de sol avisarem à Bahia de Todos os Santos que nem todos os santos são tão santos como todos esperam que os santos sejam, o concierge os acordou. Era hora de deixarem o hotel. Talvez como compensação do bota-fora tão rude, junto com um mapa turístico e a recomendação de deixarem a cidade o quanto antes e evitarem a estação rodoviária ("que, segundo a televisão, está apinhada de policiais", disse), o concierge entregou-lhes um pequeno alforje com sanduíches, garrafinhas de iogurte e suco. E, assim, sem ter para onde ir, sentindo-se observados e com medo de todos os olhos, sabendo inevitável o retorno da fome, da sede e do cansaço, sem saber até quando duraria o pouco dinheiro que levavam, sem ter a quem recorrer e quase sem esperanças, Carlos e Débora singraram a cidade a esmo, evitando sirenes e, pouco a pouco, progressivamente tomados pela angústia, se viram engolidos por ela.
Vendo um demônio a cada segundo, em cada esquina, em cada homem de farda, o inferno perdurou até o meio da tarde, quando, acabrunhados na mesa de fundo-de-salão de um bar de terceira qualidade na Baixa do Sapateiro, Carlos e Débora tentaram esconder os rostos ao ouvir mais uma vinheta de edição extraordinária. Sem ligar para os bêbados que só se mantinham de pé graças ao suporte dado pelo balcão, o locutor entrou no ar e, voz grave, anunciou uma reviravolta na investigação da explosão no aeroporto dos Guararapes. A partir de informações colhidas por agentes secretos infiltrados numa ordem religiosa não revelada, disse ele, as forças de segurança baseadas em Pernambuco teriam descoberto a autoria do atentado no Recife. A notícia prosseguia, dizendo ter sido comprovado que a bomba assassina fora plantada por um comando terrorista vinculado ao Movimento Revolucionário do Povo Livre, cujos membros, inclusive o líder, um engenheiro chamado João Cláudio, teriam se evadido para o Uruguai, de onde estariam tramando novas ações contra autoridades brasileiras. A notícia terminava sem dizer uma única palavra sobre Carlos.
Débora brilhou um dos seus sorrisos.
- Estamos livres, meu amor - disse Débora.
- Estamos? - retrucou Carlos.
Só havia um jeito de ele saber.
(*) Alexandre Santos é ex presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural