AS EXISTÊNCIAS COMOVIDAS = 4º CAPÍTULO = REGISTRADO

= AS EXISTÊNCIAS COMOVIDAS =

ADOÇÃO

==== CAPÍTULO IV ====

A chegada ao aeroporto foi extraordinária. Evelim nunca fora naquele lugar. Ficou assustada, com a presença de tantos carros e pior pareciam que todos estavam atrasados, passavam uns pelos outros como se estivessem disputando lugar, as buzinas não cessavam, demonstravam que queriam chegar primeiro ao outro que trafegava.

Quando o táxi parou e o motorista desceu para abrir a mala, logo apareceu uma pessoa com um carrinho, vestimenta acinzentada, apanhou todas as bagagens, inclusive sua mala. Preocupou-se, quem era e para onde a levaria, dentro dela estavam todas as suas relíquias, ganhas dos filhos, adquiridas com sacrifícios. Não se conteve e perguntou a Pedro, vocês conhecem esse homem que apanhou a minha mala, para onde a levará? Ele pacientemente respondeu à mãe é o carregador do aeroporto, levará para o balcão de embarque e despacho das passagens, não há qualquer perigo, tenho é que pagá-lo pelo serviço prestado.

A inquietude não cessara, quando viu a mala sumir na esteira rolante de bagagens, aumentou. E agora Pedro, a mala como as outras sumiram, o que faremos para achá-la? O filho voltou a explicar, agora colocarão dentro do avião que nos levará a São Paulo. Tem tanto avião parado, porque não escolhemos logo o nosso e essa gente toda caberá no veículo voador? Voltou a comentar, nem todos irão para o mesmo lugar, embarcam em diferentes aeronaves, que seguem destinos diversos.

Artur conversou com Pedro, será que ela está tranqüila para entrar no avião? Resolveram perguntar-lhe, como estava se sentindo, sentia-se apreensiva, gostaria de beber água com um tranqüilizante que compraram. Evelim deu a resposta mais inesperada, estão pensando que estou com medo? Logo eu, que já enfrentei tudo na vida, até Lampião, brabo como era, não deixei que me atacasse com seus chifres ameaçadores, consegui superar e vencer, não posso ter medo de viajar de avião, fiquem calmos e sossegados.

As pessoas, especialmente moças e senhoras, não tiravam os olhos daquela esbelta mulher, com altivez e beleza natural, fora do comum, de braços dados, um de cada lado, com dois elegantes e bonitos rapazes, chamava atenção geral.

Antes de entrarem no avião, perguntaram à mãe, qual o assento que desejaria ocupar, entre os dois ou na poltrona próxima à janela? Creio que nesse lugar poderei apreciar mais a viagem, deixo, entretanto, a critério de vocês. Não notou quando o avião já estava no ar, foi preciso Pedro avisá-la, aí viu a terra ir sumindo e as nuvens aparecendo, envolvendo toda a aeronave. Quis perguntar a Pedro, mas achou que estava se tornando inconveniente, enfim, falou: essas nuvens todas não acabam entrando aqui dentro e subindo como está subindo dentro de pouco não estaremos no céu? Pedro explicou-lhe com serenidade, a cabine é pressurizada, nada de fora nela penetra, o ar mantido aqui é o mesmo que respiramos e o céu está no infinito, é um espaço ilimitado pelo horizonte, onde giram todos os astros e estrelas, inalcançáveis!

A aeromoça aproximou-se e entregou primeiro a Artur, depois a Pedro, e finalmente a ela um guardanapo de papel úmido com ligeiro perfume. Espreitou o que os dois fariam, quando viu que passavam nas mãos seguiu o exemplo, mas não deixou perguntar para que aquilo. Vão servir um pequeno lanche, o tempo de vôo é de pouco mais de 40 minutos, na etapa de São Paulo ao Rio então almoçaremos dentro do avião. Considerou um tanto esquisito, diminutas guloseimas e um copo de refrigerante, não deixou de apreciar.

A descida em São Paulo, tal como a subida em Curitiba, foi quase imperceptível para Evelim. Sua principal preocupação era a mala, por mais que os filhos a informassem, custava a crer que a própria companhia se encarregaria de conduzi-la para o outro avião que os levaria ao Rio de Janeiro, mas teve que se conformar, para si seria uma questão de sorte.

Assombrou-se mais ainda com a quantidade de pessoas no aeroporto de São Paulo, muitíssimo superior a que se encontrava no Afonso Pena, não quis perguntar aos filhos, tornar-se-ia enfadonha, No entanto, o número de aviões estacionados e a diversidade das empresas, a impressionaram. Será que poderiam embarcar em qualquer um, pensou, mas nada falou?

Semelhante ao que acontecera no aeroporto anterior, as atenções estavam voltadas para ela, sua imagem era alvo de todas as observações, a formosura natural, de braços dados com os filhos, perfeitamente iguais um ao outro, até na altura, pareciam esculpidos para ali desfilarem. Os comentários trocados entre as pessoas residiam se eram filhos dela ou irmãos. Só faltavam interpelá-los. Anunciado o embarque, Evelim parecia mais natural, sem demonstrar nenhum constrangimento entrou no avião, ajudou a procurar os assentos, dirigiu-se logo para o que ficava junto à janela, acomodou-se calmamente. Estranhou a aeronave, achou-a menor e as acomodações mais simples, sem aquele toque sofisticado, não eram tão amplas.

Diferente da outra foi também o comportamento, mau o avião decolara, as aeromoças distribuíram o guardanapo de papel, com ligeiro perfume, junto uma caixinha e outras acompanhavam com um carrinho cheio de bebidas, pensou em Santa Felicidade, pediu um copo de vinho, foi preciso Pedro mostrá-la onde colocaria o copo servido. Demonstrou surpresa caber naquela caixinha alimentação variada, acompanhada de garfo, colher e faca, tudo de plástico. Almoçou e os filhos comentaram está senhora de si, dominando como se fosse habitué.

A aeronave ao se aproximar do aeroporto do Galeão, já voando a baixa altura, observou aquele mundéu de água, não se conteve, primeiro perguntou de onde viera tanta água e depois se o avião ia posar sobre ela. Pedro, como sempre, suavemente lhe explicou, isso é o mar, que é formado pelas águas oriundas dos rios e também provenientes das chuvas, que são ocasionadas das nuvens que tanto chamaram sua atenção. Não, o avião não descerá na água, está apenas tomando posição para a pista de aterrissagem, como de outras duas vezes acontecera, a senhora verá. É porque aqui o aeroporto fica situado numa ilha na baia de Guanabara, sendo cercado por todos os lados pelo mar.

Ao descerem do avião, Evelim logo perguntou pelas malas, naturalmente em especial a dela. Artur lhe disse: “mamãe agora vamos para o salão de bagagens”, ela como todas as outras estarão correndo na esteira que as conduzem. - Temos que apanhar dois carrinhos para colocá-las, eles só entregam com esses bilhetinhos numerados, idênticos aos que se encontram em cada bagagem.

Na porta se via o número de pessoas amigas que aguardavam as chegadas dos três, vieram quase todos, exceto Zeca, marido de Joana, que estava trabalhando, os primos Carlos Alberto, Aracy, Salvador e Manoela, as namoradas Simone e Mônica com seus pais, dois diretores da industria de que Pedro e Artur eram sócios comanditários, o padre e uma beata da igreja que freqüentava Elizabeth, dois colegas da faculdade em que eles estudavam e outras pessoas. A primeira a se dirigir aos três foi à tia Joana, lhes entregando um telegrama dos primos de Brasília, Francis e Diva, que cumprimentavam e desculpavam pela ausência. Os abraços se sucederam e as admirações à pessoa de Evelim foram mais acentuadas, que recebeu quatro buquês de flores, especialmente rosas. As duas namoradas ficaram encantadas pela elegância e altura da mãe dos gêmeos, e mais empolgadas pela linda frasqueira por ela usada, essencial quando retocou a maquilagem.

Seguiram direto à rua Bambina em Botafogo, exceto Salvador e Manoela. Todos desejosos de saberem como Evelim se sentiu na viagem, o que mais lhe chamara atenção e o pouco que viu do Rio de Janeiro qual a impressão que teve? Os filhos a conduziram para o quarto que eles ocupavam, tia Joana avisada com antecedência preparara-o condignamente. Artur sempre mais expedito mostrou o banheiro e perguntou à mãe se desejava se banhar, enquanto Joana ajudou a abrir a mala e separar as roupas, avisando onde encontraria toalhas e um roupão. Pedro, ponderado, julgou necessário que a mãe repousasse por algumas horas, mais tarde quando despertasse fariam um ligeiro passeio por Copacabana, proposta das duas namoradas.

Os filhos aproveitaram a ausência da mãe para contar algumas façanhas em Curitiba, a principal foi que a encontrou casualmente, sem conhecê-la, na subida da rua em que ela morava, desconfiaram ser a senhora que descia e Artur a chamou pelo nome dela: D. Evelim ? Ela respondeu sou eu, vocês me conhecem, quem são? Aí foi um grito só: MAMÃE! Ela dormiu cerca de quatro horas, já anoitecera, apenas Carlos Alberto e tia Joana se retiraram, Simone e Solange aguardaram tranqüilamente que a futura sogra despertasse. Voltaram a insistir no passeio, seria no entender delas, o primeiro impacto que a novel “turista” sentisse o pulsar de Copacabana e aproveitariam para deliciarem as famosas pizzas do bairro. Houve um assentimento geral e Evelim se mostrou desejosa em fazer o passeio. Foram no B.W.M.conversível de Simone, o luar favorecia o esplendor reinante da noite, as estrelas estavam mais brilhantes e a brisa suave tornava o clima ameno, tão raro nas noites carioca.

Evelim inquietou-se com o trânsito de automóveis e ônibus, principalmente conduzindo turistas. Não deixou de perguntar, se havia alguma festa, tal a quantidade de transeuntes. Nunca vira tanta gente junta, à vontade, sem roupas ostentosas, indo e vindo, sem destino certo. E o aroma da maresia, exalado do mar, cujas ondas batiam na areia com intensidade, num ruído diferente, pouco ou nada comum para ela. Mesmo sem ver com nitidez, observou banhistas dentro da água, com minutas vestimentas, homens e mulheres, não se conteve e voltou a perguntar se eles pertenciam a alguma tribo indígena do local, ou próximo dele. Acharam muita graça, até os filhos que acompanhavam. A comparação por ela feita surpreendeu a todos no carro.

Os edifícios na orla marítima também foi motivo de admiração, Como podiam morar ali, tantas pessoas diferentes umas das outras? Simone estacionou seu carro, próximo a uma grande pizzaria e se dirigiu a D. Evelim, aqui nos seremos bem servidos e a senhora por certo gostará. Ao aproximar-se o eterno “guardador” de carros, D. Evelim não gostou do tipo esquisito, maltrapilho, total intimidade com a motorista e seus próprios filhos, assustou-se, dizendo não é melhor irmos para outro lugar ? Explicaram, era assim mesmo, até que aquele “tomador de conta de veículo” eles já conheciam, não havia perigo.

Por ser do sul, Paraná, Evelim apreciava mais churrascos do que propriamente pizza, embora houvesse grande colônia italiana na região. Esse posicionamento fez com que não elogiasse tanto a pizza que consumiram, deu mais apreço ao chope, considerando melhor que o servido em Curitiba.

Gostou mesmo de ver as cariocas usando roupas simples, bermudas, que não conhecia, blusinhas decotadas e sandálias. Ela mesma estava de saia e blusa e uma das sandálias compradas insistentemente pelos filhos, trajes ditados pelas duas namoradas dos rapazes, maravilhou-se pelo comodismo.

Voltaram do passeio para casa, ela, Evelim, orgulhosa e pensativa por tudo que viu, como mãe, que nunca chegara a dar uma simples palmada em qualquer um dos filhos, os convidou para uma simples conversa, a eterna “persuasão de mãe”, asseverando: Gostei imensamente das duas moças, Simone e Solange, observei, entretanto, que elas são criadas com plena liberdade, próprias das moças daqui da cidade, por isso mesmo recomendo que vocês as respeitem, “NÃO FAÇAM COM ELAS O QUE ACONTECEU COMIGO, EVITEM TEREM FILHOS NAS CONDIÇÕES QUE NASCERAM”.

Os irmãos gêmeos que firmaram compromisso de honra de nunca perguntarem à mãe sobre o pai natural, ficaram atônitos de sua preocupação, do elevado conceito da maternidade e o amor-próprio que mantinha. A beijaram e prometeram que, independente do respeito às namoradas, nunca a causariam aquele desgosto.

O COMEÇO DAS PROMESSAS.

Pela manhã Evelim lembrou ao filho Pedro que gostaria de ir ao túmulo de Elizabeth desincumbir-se da obrigação de agradecer o que ela fizera pelos seus filhos, especialmente, a esmerada educação proporcionada. Pedro explicou que Artur estaria impossibilitado de ir porque teria de estar na faculdade e Simone talvez não se recordasse da manifestação de sua vontade. Evelim lhe disse que poderia ir só, bastava que o filho informasse o local, conseguiria chegar ao cemitério. Pretendia comprar 19 camélias ou lírios brancos, e 3 rosas vermelhas e acenderia também algumas velas. Pedro lhe disse: vou lhe dar os recursos necessários, no que a mãe retrucou, pagarei tudo com o meu dinheiro, aquele que recebi da rescisão do contrato com o hotel em Curitiba. O filho esclareceu, eu é que levarei a senhora, podemos esperar um pouco mais, até ver se Simone chega?

Artur recebera um telefonema de um dos Diretores da fábrica de sabão e derivados, da qual os dois eram sócios, bens deixados por seu avô e sua mãe adotiva Elizabeth. A Diretoria estava ansiosa de marcar uma reunião com eles, se possível no máximo dentro de 48 horas, pela parte da manhã, o que ficou firmado desde logo.

Pedro mesmo resolveu levar a mãe ao cemitério para visitar o túmulo de Elizabeth. Evelim perguntou onde poderia comprar as flores e as velas, o filho lhe informou que à frente do campo santo havia inúmeros floricultores, mas telefonaria primeiro para um a fim de ver se tinha camélias ou lírios, não tão fáceis de serem encontrados. Enfim, achou o que a mãe desejava e pediu para que fossem reservadas.

Como sempre a tudo estranhava, achou o cemitério muito grande e as sepulturas e mausoléu diversificados, com riquezas de mármores e imagens. Chegou ao de Elizabeth, ajoelhou-se, distribuiu as flores, dispondo as três rosas vermelhas, próximas ao retrato dela, em prantos, chorando copiosamente e sempre murmurando, agradeço o que fez pelos meus dois filhos e por mim mesma. Naquele instante prometeu todos os meses reiterar os agradecimentos. Pedro se comoveu muitíssimo com o reconhecimento da verdadeira mãe, lembrando-se tristemente dos momentos vividos por quem os criou, ele e o irmão gêmeo Artur. Saíram do cemitério calados, sem um simples comentário, apenas Evelim lamentou a ausência do outro filho.

Esperaram a chegada de Artur e ela queria fazer compras para preparar o almoço, Pedro lhe disse que até conseguirem uma cozinheira, tia Joana se prontificou a fazer a comida e tudo ela já comprara.

Artur chegou com uma novidade, comprara todos os livros, cadernos, lápis e canetas, para que iniciassem as aulas, de que falaram à mãe. Ela ficou radiante, porque teria dali para frente maiores conhecimentos e outras condições de conversar com as pessoas que visitavam a casa. Viu um pouco a televisão, que pouco assistia, geralmente quando estava trabalhando no hotel. Comparando aos programas passados em Curitiba, percebeu que havia muita diferença, não só pela variedade apresentada, como o número de artistas, que somente os conhecia através das revistas. Achou, entretanto, cansativa a permanência frente à tela. Como diversão não lhe agradara, achava repetitiva, sem muita novidade, apenas apreciava mais os jornais, passando de canal em canal para ver alguma notícia de Castro, o que não ocorria, pouquíssimo de Curitiba; perguntando aos filhos como conseguiam informações de tantos lugares, principalmente fora do Brasil. Eles foram explicando paulatinamente, porque achavam que, muitos conhecimentos de uma só vez, pudessem propiciar confusão à sua cabeça.

No dia seguinte logo às 10 horas da manhã os dois irmãos foram à fábrica, conduzidos à sala de reuniões, onde já se encontravam os principais diretores. Conversaram inicialmente sobre a viagem e a felicidade que tiveram em encontrarem a mãe ingênita, resolveram trazê-la para perto deles, o que ensejou serem muito cumprimentados pela grandeza do gesto. Iam começar a falar sobre a possibilidade de conseguirem um adiantamento sobre as retiradas, a fim de adquirirem um carro, indispensável para se dirigirem às faculdades e aos afazeres propriamente do lar. Não chegaram a tanto, pois o Presidente da empresa lhes disse que a conversa que teriam seria altamente desagradável e que eles esperassem por más notícias, que os afetaria muito a cada um. Não sabíamos que vocês iriam à Curitiba, à procura da mãe natural, acreditamos que estivessem passeando mais para o sul do País, no Rio Grande do Sul. Isso nos levou a um logro, simulado, próprio da audácia de estelionatário. Recebemos aqui seu pai de criação, o Salvador Miranda, abatido e preocupado com os dois, pois teriam sofrido sério acidente na estrada, próximo a Caxias do Sul, estando ambos hospitalizados nessa cidade em estado gravíssimos. Que o veículo alugado, conduzido por Artur, além de se espatifar, danificara outro carro repleto de passageiros, especialmente duas crianças.

Estavam precisando de recursos para pagar indenizações e atender despesas de médicos e hospital. Possivelmente seriam removidos para Porto Alegre, que dispunha de maiores recursos médicos. Solicitou-nos um adiantamento de cem mil cruzeiros, a serem deduzidos em parcelas, dos direitos mensais que recebem, deixados pelo Sr. Martins, avô de vocês. No momento não conseguimos localizar o Dr. Azevedo, nosso advogado, para recebermos instruções como procederíamos. Tentamos persuadi-lo que enviaríamos pelo Banco, de que a firma é correntista. O Sr. Miranda afastou a hipótese, dada a urgência, o numerário seguiria nas mãos dele, que estaria embarcando às 16 horas de avião pela Varig. Aqui está o documento que assinou.

Ao ficarmos cientes da trapaça, entregamos cópias dos documentos ao Dr. Azevedo para adotar as providências cabíveis. Deveríamos ter pensado nos conceitos que nosso principal acionista, Sr, Martins, fazia desse tal Salvador Miranda, que nunca lhe inspirara confiança, porém a descrição dos acontecimentos do pseudo-acidente, nos deixou sem ação, completamente desolados.

Pedro adiantou-se com outros acontecimentos. Quando demonstramos vontade de realizar a viagem, sem dizermos nosso destino, Curitiba, nosso pai, primeiro sugeriu que adquiríssemos um carro, que rejeitamos, depois solicitou que o auxiliasse com 50 mil cruzeiros para ampliar seus negócios, quantia que nos desfalcaria para a viagem a ser empreendida, emprestamos 30 mil cruzeiros, valor que seria pago até o mês de junho. Estávamos em Curitiba quando tomamos conhecimento de que ele Salvador havia trazido de Portugal uma rapariga de nome Manoela, que ambos estavam morando em nossa casa em Botafogo. Há três dias estivemos no Banco, onde são depositados os alugueres das cinco casas deixadas em inventário por nossa mãe de criação, e não encontramos saldo nenhum, o gerente nos informou que o Sr. Salvador estava recebendo diretamente dos locatários, sob o pretexto de realizar obras urgentes em outros imóveis.

O Diretor da fábrica orientou os dois a procurarem imediatamente o Dr. Azevedo, que naturalmente tomaria as medidas judiciais indispensáveis.

Pedro e Artur ao deixarem a fábrica, estavam cabisbaixos e aniquilados, em face de tão absurdos e inopinados fatos. Quando chegaram em casa, a mãe notou que havia alguma coisa de grave, pois nem a beijaram, o que sempre faziam, e seguiram diretamente para o quarto. Evelim foi ao encontro dos filhos, pensante que a tristeza de ambos estava relacionada às duas namoradas, comentando: aqui no Rio de Janeiro há uma infinidade de moças, vocês são lindos rapazes, estudantes, bem situados na vida, facilmente encontrarão outras, quem sabe serão tão boas ou melhores que as atuais.

Eles lhes responderam: Simone e Solange não estão relacionadas às nossas consternações, o assunto é muito mais grave, preferíamos não falar nada agora à senhora, no momento oportuno contaremos. Tal comentário deixou a mãe mais incitada e preocupada, passou a imaginar que pudesse ser a presença dela, resolveu exteriorizar-se, o abatimento está ligado à minha permanência aqui ?

Não tem nada a haver com a senhora, ao contrário não fosse estar conosco jamais descobriríamos as ocorrências. Amanhã prometemos colocá-la a par de todos os acontecimentos, bem como as providências que tomarmos.

Telefonaram para o Dr.Azevedo, consultando a hora que ele poderia atendê-los. Às 10 horas da manhã já estavam no escritório do advogado, contaram a conversa que tiveram com os diretores da fábrica e as informações por eles prestadas. O nobre causídico ouviu em silêncio, sem aludir nenhum comentário. Em certo momento preferiu interrompê-los e dizer, eu já sabia de todos os detalhes, existem, porém, outros aspectos que vocês desconhecem, porque esses ocorreram quando estavam viajando. Elogiou a atitude de Artur, obrigando que em 48 horas Salvador Miranda deixasse a casa, juntamente com a companheira, Manoela. Essa providência positiva evitou um mal maior, que seria a entrada na justiça pedindo a reintegração de posse, medida judicial que demoraria ser executada. Poderia ser alegado que Salvador era detentor da posse do imóvel, embora não tivesse direito real sobre o mesmo, mas mesmo dispondo da posse, com o falecimento de D. Elizabeth cessou, retirando-lhe a condições de poder proporcionar a co-habitação de D. Manoela.

Há uma outra relação que desconhecem, o Sr. Salvador Miranda, fez distribuir, paralelamente ao inventário, uma ação que o tornasse habilitado no arrolamento dos bens deixados por D. Elizabeth, sob o fundamento que, embora casado com separação patrimonial, ele contribuiu para valorizá-los, aumentando a fortuna da falecida. Argumentando ainda mais que a compra de outros imóveis só ocorreu porque conseguiu economizar valores, amealhando recursos que possibilitaram as aquisições. Tudo isso foi feito com falsas provas documentais e justificação prévia de depoimento de testemunhas.

Dr.Azevedo a seguir deu conhecimento e justificou-se aos dois irmãos: “como eu não dispunha de vocês, nem poderes ad judicia e especiais”, e não sabendo onde encontrá-los, ingressei em juízo, dada a urgência das medidas, valendo-me de uma “caução de rato”, adotando as seguintes providências: 1°) notifiquei todos os inquilinos que não pagassem mais os alugueis ao Sr.Salvador Miranda, sob pena de não serem considerados quitados e continuassem a depositar no Banco mencionado no contrato de locação;

2º) contestei em seus nomes os documentos apresentados na ação ordinária que o habilitasse no inventário, requerendo, de plano, uma perícia nos documentos trazidos à colação;

3º) ofereci queixa-crime contra o mesmo por apropriação indébita dos valores usurpados;

4º) impugnei a entrada dele nos autos de inventário, porque não era parte legítima ao feito;

5º) apresentei queixa-crime, em nome da fábrica, pela prática de estelionato, o que possibilitou levantar a importância de 100 mil cruzeiros em nome de vocês, para falsos socorros de urgências em Porto Alegre.

Se vocês concordarem com essas proposições, como são emancipados, passem no Cartório de Notas uma procuração de acordo com a minuta que lhes entrego. Devo esclarecer, que tudo isso foi feito em homenagem ao seu avô, pai de D. Elizabeth, pessoa que eu queria muito bem e éramos grandes amigos.

Saíram do escritório do Dr. Azevedo mais tranqüilos, passaram primeiro no banco em que mantinham transações e o gerente confirmou as referências do advogado, inclusive que todos os locatários já estavam cientes.

Seguiram para casa, onde a mãe já os esperava e procuraram acalmá-la, detalhando os acontecimentos. Evelim ficou surpresa, amargurada em ver seus filhos com a pouca idade que tinham passarem por momentos tão difíceis. Os alentou, asseverando que venceriam aqueles momentos, sem reflexos para o futuro de cada um. Aquilo, nada mais foi que, um fio de ternura que se desprendera do coração humilde daquela mulher. Apenas, lembrou, as pessoas mais velhas têm experiências e conseguem antever a índole de conhecidos fortuitos. Seu avô, Martins, se disse que o Salvador não era pessoa que pudesse merecer confiança, a filha, D. Elizabeth, deveria tê-lo ouvido ou ao menos analisá-lo antes de se casar.

Tia Joana, embora na cozinha, ouviu alguns pormenores e interveio na conversa, relembrando que advertira sua irmã de criação sobre o prenúncio de seu padrinho. Chamou de lado Pedro e com ele conversou, que não estava gostando do procedimento da tal de Manoela, além de exigente, queria sempre comprar objetos que normalmente não poderia ter, independente de extorquir dinheiro de Salvador, que vez por outra a ela comentava. Outro comportamento comprometedor à sua conduta é que não escondia a desconfiança que nutria de estar o Mirando encantado com Evelim, querendo inclusive conquistá-la. A verdade é que não passava de bisbilhotice, originada de pessoa de má formação e sem princípio educacional.

Zeca apareceu, primeiro para conhecer Evelim e levar sua mulher Joana para casa. Evelim admirou a simplicidade de Zeca, que, rapidamente, historiou onde trabalhava, depois falou sobre o sindicato, de que agora ele já era diretor de assistência social, serviço que gostava de fazer, passara a conhecer a situação de cada operário, carecedor de auxílio, financeiro, de saúde e problemas no trabalho. A recém chegada ao Rio de Janeiro nada conhecia do que ele falava, mas achou relevantes os serviços prestados pelo sindicalista, antes carpinteiro naval. Absteve-se de comentar política adulta, ela jamais compreenderia e nem sabia se, de onde ela provinha, havia movimento daquela ordem.

Elogiou as atitudes dos filhos, Pedro e Artur, trazendo-a para junto deles, unindo-se à mãe. Não era sabedor das trapaças de Salvador, de quem não gostava, daí perdera a oportunidade de comentar o assunto.

Os gêmeos anunciaram à mãe que a partir de 2ª feira começariam os estudos com ela, em dois períodos, pela manhã e à tarde, de acordo com a disponibilidade dos compromissos que tinham nas faculdades onde cursavam medicina e engenharia Evelim folheou os livros e cadernos que Artur comprara, principalmente um livro grosso, que pouca figura tinha e uma quantidade louca de palavras; passando a saber que se chamava “dicionário”. Achou tudo muito interessante, porém poderiam ter adquirido material mais modesto, desnecessário aquela suntuosidade.

Após alguns dias o Dr.Azevedo deu as primeiras notícias, quase todas auspiciosas, os locatários dos cinco imóveis acataram a notificações e começaram a pagar no Banco o valor locatício de cada um; o juiz do inventário mandou desentranhar dos autos a petição pela qual Salvador Miranda se habilitara no inventario da mãe de criação, Elizabeth, assinalando no despacho que só poderia admitir quando fosse julgada favorável a ação ordinária por ele proposta; foi deferida a perícia requerida sobre os documentos apresentados por Miranda, que pretendia provar sua contribuição na formação dos bens da inventariada; o delegado mandou intimar o mesmo para prestar depoimento e defesa quando da apropriação de valores dos irmãos. O mesmo aconteceu com a notícia crime formalizada pela indústria de sabão.

Como haviam programado na 2ª feira, às 8,30 horas Pedro começou as aulas de português e ciências, nesta num computo geral, dando ênfase inicialmente ao ser humano. Ministrou alguns exercícios das duas matérias sobre o que fora objeto do ensino. Evelim acompanhou atentamente, séria e compenetrada, sem vacilar um instante sequer. Quando foi às 14 horas, Artur iniciou as aulas de aritmética e geometria plana, mais tarde, depois de um ligeiro descanso começo a ensinar geografia, principiando pela composição do mundo. Os exercícios que deixou foram objetivos, relacionados a frações e localização dos países no globo terrestre.

O encargo que Evelim recebeu era tão grande que ela não assistiu o jornal da televisão, de que tanto se interessava. Compulsou sim alguns livros que o filho trouxera para conseguir desempenhar as obrigações doutrinadas. Mostrava-se alegre e curiosa daquilo que aprendera, tomando como uma lição de vida, que nunca pensara em conhecer. Ela se dedicava de forma prazerosa e não por obrigação. Foi surpreendente sua evolução, em pouco tempo já dominava vários assuntos relacionados ao ensino propiciado pelos filhos. Artur alternou as aulas de geografia com as de história, preferiu ensiná-la da civilização em geral, antes da derivada do Brasil, acreditava que desse modo sua mãe conjeturava a evolução passada no nosso país. Evelim lia tudo que chegava às suas mãos, mesmo não alcançando muitas vezes o assunto, quando tinha dificuldades recorria ao dicionário. Esse hábito fez adquirir rapidamente elevado conhecimento geral, e riqueza de vocabulário. Não discutia com ninguém o que lia, preferia ouvir voluntariamente comentários, daí assimilar melhor, conhecer o que às vezes não entendia. As futuras noras, sem tomarem conhecimento que seus namorados estavam ensinando à mãe, diuturnamente, passaram a se aprofundar nas conversações e ficaram maravilhadas com sua evolução e profundeza de saber e informações. Não deixaram de comentar, nós nunca podíamos imaginar que a senhora fosse tão capacitada. Evelim recorreu logo ao dicionário para saber o que era capacitada.Vez por outra eram surpreendidas em assuntos, causas e notícias que desconheciam e a mãe dos namorados os dominava completamente.

Os filhos passaram a observar melhor e mais profundamente a mãe e anteviram um alvissareiro futuro para ela. Lembraram-lhe que já era chegado o momento de escrever uma carta, conforme fora prometido, para tia Helen, seu cunhado Chicão e os sobrinhos, pois havia passados seis meses. Meses antes Artur escrevera dando notícias da mãe, de retorno receberam uma missiva redigida pela professoras dos sobrinhos.

Evelim rabiscou na folha do caderno de português uma carta para Helen, inicialmente falando da aventurosa viagem, depois sobre a beleza natural do Rio de Janeiro, os lugares que conhecera, dando ênfase ao Pão de Açúcar, o Corcovado, a maravilhosa praia de Copacabana e o que era o mar, inenarrável; que quem não conhecia, deixaria de acreditar. Aproveitou para se dirigir a Dona Eulália. Entregou primeiro a Pedro para ler e corrigir, depois pediu a Artur que visse. Este achou tão maravilhosa a narrativa, que prometeu comprar papel próprio destinado à carta. A redação era tão significativa, com rico vocabulário, narrando aspectos originários do que ela observara, que qualquer pessoa acreditaria ter sido feita por uma poetisa, tal as figuras imaginosas.

A chegada da carta na casa da costureira foi motivo de orgulho e satisfação, inacreditável o progresso e a transformação de Evinha. A carta correu toda a rua, os vizinhos passaram a ter conhecimento da evolução dela, grande parte pouco entendeu o que fora escrito, mas não pouparam elogios.

REGISTRADO NA BIBLIORECA NACIONAL

Fundação dos Direitos Autorais

Sob nº 416.191 - Livro 777 = Folha 351

smello
Enviado por smello em 13/10/2007
Reeditado em 11/06/2009
Código do texto: T692764
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.