VOANDO POR CIMA DA CIDADE ENCANTADA

VOANDO POR CIMA DA CIDADE ENCANTADA

Não.Já não aguentava ouvir mais nada.Nem o Presidente,nem o Primeiro Ministro, Nem o Ministro, o Secretário, a Ministra, a Diretora Geral, o Jornalista, o Trump, os entrevistados, as entrevistadas, a populaça assustada, descontrolada e exposta.Todos a perorarem, a discorrerem, a comentarem e a recomendarem.

O matraquear incessante da informação, das estatísticas e dos números – apanhados…liquidados…salvos…

Não.Fosse a desgraça pior que a cólera, a pneumónica, a febre amarela,a tuberculose, a sífilis, a sida ou uma peste infernal e mortífera, perigosa, criminosa e indestrutível.

Servisse para que Deus pusesse á mostra todas ou algumas de muitas atrocidades cometidas, comportamentos condenáveis, destruição dolosa, ameaças ao ambiente, guerras químicas, o homem carrasco e vítima, a mais pobre e reles criatura do planeta.

A recessão, a quebra do PIB, a pior crise desde há um século.Oh!Ah!O receio, o pânico e a fuga á realidade mais negra.

E as filas para o supermercado, as máscaras, o chega para lá não me toques, se não se importa vá beber o café para a rua, temos todos um grande nojo uns dos outros, essa é que é, o desejo de escapatória, instinto ou expressão tão feia da existência egoísta e mesquinha.Como se estivéssemos todos leprosos.

- Lembras-te das cenas lancinantes da Mãe e da irmã no Ben-Hur?A versão clássica do William Wyler.Com o Charlton Heston, a Martha Scott e a Cathy O’Donnell em interpretações de colosso?

Ele decidiu alhear-se para poder voltar a ser , viver e estar nalgum lado, num simples lugar.Esboçou um esgar ao texto do livro que relia e que com um descaramento inaudito dizia que a raça humana era um enorme lodaçal cheio de vírus.”Coelho em Paz”.Pois era provavelmente.Sim.Updike magistral e prémio Pulitzer.

Fechou os olhos e sentiu o corpo desprender-se , atravessar a janela e vogar sobre a rua e o bairro quase desertos, aparentemente desabitados com vestígios de um vendaval recente.Voou como um princípe de Wilde nas asas da andorinha serôdia pela cidade desconhecida.

Respirou profundamente e encheu os pulmões de um ar não contaminado feito de céu e de estrelas.Conseguiu voltar a ver a beleza nas árvores que se agitavam com a ventania, ainda húmidas da chuvada da véspera.E reparou que a Poesia estava recolhida e trémula, à espera de um sinal para poder libertar-se e soltar-se livre e leve e poder espalhar-se como um manto diáfono e maravilhoso por cima do horizonte infindo.Uma linha vermelha onde o dia e a noite se cruzavam num render de turno amistoso e solidário.

Ele percorreu as avenidas desertas, contemplou as estátuas altivas, assumiu a atitude condescendente e tolerante de quem aceita de que se vão os aneis mas que fiquem os dedos.

E relembrou a voz de com quem já não falava há muito, as mensagens trocadas e ansiosas com as velhas namoradas e amantes, amigos desavindos e colegas esquecidos.E o abuso do whisky , do chocolate e das iguarias…e as coisas que nunca pensara na vida vir a fazer como o sexo virtual com orgasmos partilhados com alguém noutro continente, a loucura, a ternura e o desespero mesmo sabendo muito bem que já tinha mais que idade para ter juízo e que tudo aquilo não passava de um jogo desvairado e inconsequente.Talvez uma tentativa para não enlouquecer.

Ele voou sobre a cidade encantada e entrou em naves majestosas de igrejas ancestrais, salas e auditórios vazios de espetáculos empolgantes e por acontecer, passou pela baixa,pela praça junto ao rio, voltou pelo Rossio, Restauradores, a avenida viu bandos de aves perderem-se ao longe numa migração guiada e poisou para uma breve pausa no ombro da estátua do Marquês na rotunda no centro da cidade.

Só então as lágrimas soltaram-se livres e sem qualquer reserva e ele mais uma vez encarou e sentiu o incomensurável sofrimento dos homens e mulheres, seus semelhantes nesse esgoto mísero e escondido que era a vida.

Lenta e irrevogavelmente a consciência do real apessoou-se dele e envolveu-o num abraço sufocante como uma cobra que aperta e asfixia… dor ou nostalgia insuportável.

Reconheceu a sala, o sofá ,a televisão ligada onde se encontrava e de onde nunca tinha saído nem por um instante sequer.Voltou a ser quem era.Tossiu com o terror de que não se podia tossir ou se era preso e levado para um corredor de morte.

O silêncio desprendeu-se das paredes e encheu o espaço e ele ouviu-se a falar sem ninguém a ouvi-lo:

- Não há nada a fazer.A não ser esperar.O desconhecido, o inesperado.Talvez haja uma verdade em tudo isto, uma espécie de acusação de que não passamos de criaturas desprezíveis, pobres diabos.Meros nadas.

Pegou no comando e ausente de tudo e de todos esteve durante que tempos a fazer zapping.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 17/04/2020
Código do texto: T6919856
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