Nunca mais!
Faz pouco tempo, leitor. Meu antigo alvo estava pendurado atrás da porta do pequeno quarto de dormir. Enquanto eu pensava na vida, atirei três dardos. Um a um. Errei todos eles. O sono custava a chegar e desistindo de procurá-lo como agulha no palheiro, levantei-me e fui assaltar a geladeira. Era apenas um docinho, então fui comer no quarto mesmo, rolando na cama entre restos de granulado e açúcar.
Eu precisa dormir pois tinha compromisso na manhã seguinte já cedo, mas a preguiça me impedia de pensar nos compromissos, nas resoluções dos problemas e até no pagamento dos boletos. Eu só queria me enroscar na minha confortável impossibilidade e fazer nada.
Eu pensava nos desencontros, frustrações e desafetos. Cansei de ser uma máquina de perdão e agora quero que tudo vá pra o inferno. Cansei das cobranças e dos desaforos e só não xingo um palavrão de quatorze sílabas ou mando todos tratarem com seus próprios monossílabos porque simplesmente não posso. Estou sozinho no meu quarto e todos os problemas estão lá fora, aguardando o dia amanhecer. Ainda bem.
Eu sei, leitor, eu deveria ser otimista, ter confiança e pensar que tudo iria se resolver logo. Trabalho, contas, imposições e etc, porém é tão errado assim ser pessimista e achar que nada mais tem jeito e que se dane? Naquela noite, só me permaneciam os desejos do corpo, da boca, do estômago e de algumas poucas letras. Era semana santa, e esse desânimo, essa desesperança toda não cabiam, mas... ai de mim. Só mais um no mundo. Não sou Maria Madalena e inevitavelmente pecarei de novo, você me entende. Entre carne e espírito, só eu sobrava e me afogava.
Em alguns minutos, a pouca serotonina proporcionada pelo sabor do pequeno brigadeiro me fez relaxar satisfeito, e assim fechei os olhos ensaiando um cochilo quase bem sucedido, até que ouvi um contundente ruído à minha janela. Uma ave grande e negra, que se movia com leveza acabara de pousar e me olhava nos olhos. As luzes eram apenas a acesa na sala e a que a lua despretenciosamente deixava escapar. Eu estava na penumbra, como ela estava em mim. Acendi então abajour azulado e me aproximei da janela.
A ave, vinda de alguma árvore decrépita presente nas redondezas, eriçou todas as plumas e ergueu com altivez o bico, como alguém que aponta o céu e diz: - Quer que eu desenhe? Soltou um grito único e estridente e partiu. Olhei então o céu negro e estrelado da sexta-feira santa, anunciando mais um belo amanhecer que chegaria em breve e toda minha pequenez diante dele. Ele, em sua imensidão, não estava vazio. Meu coração, já mais sossegado, sorriu e eu apenas murmurei no interior das minhas sombras: - Perdão, Senhor! Nunca mais!