O Canto
Estava frio e eu só, eu e minha solidão, como não tinha nada para fazer, andava pela casa e lia meus poemas, os declamava em voz alta, os fazia ressoar pela casa, era toda uma performance, os gestos, a altura da voz, baixo, e então alto, alto pra terminar o poema, daí os aplausos e o publico aclamando. Não precisa de tudo isso, não precisa, foi um dos meus piores poemas, nada além disso, um poeminha qualquer, qualquer um aí pode fazer igual, eu, oras, um mero qualquer, um zé ninguém. Ainda aplaudem? Ainda? E então, olhei para o canto da parede e eu vi, eu vi a minha sombra, ela me acompanhava ali, ali naquele canto, me seguia na minha loucura, só que antes eu não havia percebido o quão delirante tudo era, o quão estranho era o mundo que eu criara para mim, comecei a sentir que não mais vivia ali fora, ali na realidade, como se os dois mundos estivessem se batendo e o verdadeiro não estivesse ganhando. Quando foi, quando foi que eu parei pra observar o canto da parede? Quando? Algo tão simples, um canto, algo que nunca dei atenção, olha essas teias, quanto tempo eu não limpo esse canto, tanto que esse canto já fez parte da minha vida e eu nem ali para notar, canto, canto, canto, canto, quanto mais eu repito, mais o canto toma forma. Mais esse canto me preenche. Será que agora esse canto ainda é só um mero canto? Será que esse canto não deixou de ser a penas um canto e virou um pedaço do que eu sou? As duvidas pairam, pairam, sobrevoam os meus olhos e eu começo a delirar novamente, o canto, o canto real deixou seu estado de normalidade, agora o canto que eu falo é o canto da loucura que eu instauro, voa canto pra lá, pra cá e o canto de verdade passou a ser o canto de mentira e a mentira criou sua própria verdade. Eis que um novo canto nasce.