NUM "CERTO" DICIONÁRIO EQUIVOCADO... - FINAL

6---O anti-semitismo é definido geralmente como um tipo particular de preconceito: atitude irracionalmente contra os JUDEUS, mas o termo é tão irracional quanto a definição. Primeiro, porque não são semitas - atribui-se a vários grupos nacionais a origem dos idiomas utilizados, por exemplo franceses são latinos, mas na realidade, descendem dos gauleses, que eram celtas, e dos francos, que eram germânicos, apenas falam um idioma gerado pelo latim. Judeus, dizemos, são semitas, mas há judeus loiros e de olhos azuis (Alemanha), pretos e de cabelos pretos (Etiópia) e de pele bronzeada (Índia). Na segunda metade do século XIX, foi inventado o termo anti-semitismo, judeus espalhados pelo planeta, nem sequer falando hebraico, uma das línguas semitas, para justificar o suposto semitismo. Segundo, porque preconceito é menos irracional, as pessoas agem conscientemente - o irracional é incontrolável, escapa à responsabilidade, entenderam?

7---Bom Retiro, conjunto paulistano de ruas antigas e estreitas: centenas de fábricas/lojas de roupas, alguns restaurantes, escolas, consultórios e escritórios, sinagogas e milhares de judeus de todas as procedências, apenas 10% de fato religiosos, maioria indo à sinagoga nas grandes datas - Dia do Perdão, a maior delas. Dos religiosos, 10% são ortodoxos: não admitem os novos costumes e tentam manter os preceitos da lei mosaica, "o mundo adaptando-se à religião, não a religião ao mundo" (JACOB BEGUM, rabino brasileiro conservador, para quem só há duas fontes de sabedoria: a Torah /Pentateuco, isto é, os primeiros livros do Antigo Testamento/ e o Talmud /que ensina culinária, Direito, Moral e Filosofia/) - algumas teses dos ortodoxos dificilmente são compreendidas por um jovem, para Begum é culpa da ganância e do materialismo. A carne transmitiria ao homem o caráter do animal, bife de boi bravo, homem bravo; "barba não foi feita por Deus para ser escanhoada". Carne só de açougue religioso, reses abatidas de acordo com a tradição, sem dor ou sofrimento. Na primeira estrela de sexta-feira, já é sábado para BEGUM, que não dá mais conselhos e não atende a nenhuma consulta; telefone desligado, meditação, repouso e horas de reza na sinagoga; aos sábados, casa sem luz acesa, fogo ou música: assim é a Lei. Poucos judeus a respeitam - aos sábados, ruas cheias de gente, lojas abertas, restaurantes lotados. Cada judeu tem um tipo físico, posição política, social e econômica diferente, seja agricultor, ator/atriz, engenheiro, motorista, balconista ou aposentado, todos com a condição de judeu, consagrados na vida brasileira, mesmo porque não existe condição de manter cultura hebraica isolada. Cultura puramente judaica só em Israel. A intolerância e os preconceitos são produtos de estruturas econômicas injustas que possibilitam o excesso de indidualismo e a falta de solidariedade: judeu perseguido, negro espancado, lavrador explorado, árabe humilhado, intelectual preso, nordestino chamado com desprezo de "baiano"... Qualquer nova onda de perseguição é possível, onde miséria-injustiça-ignorância podem ser mobilizadas por um líder interessado. O casamento religioso misto ou "mestiço" é uma quebra de tabu, jamais celebrado por um rabino conservador, mesmo que um do par se converta à religião mosaica. Na época da guerra, dificuldades de embarque-desembarque sugeriam omitir a palavra judeu do passaporte.

8---Muitos historiadores procuram as raízes do anti-semitismo em Roma, por exemplo, a destruição do Templo de Jerusalém por Tito, não como anti-semita (Berenice, amante judia, e Flávio José, grande amigo judeu), mas como homem de Estado, militar que não podia admitir insurreição na Palestina, lugar importante para o Império Romano. Só perseguidos como judeus, quando se transformaram em cristãos; nem antijudaica nem anticristã, apenas Roma quis reprimir pela força uma ideia que abafava suas estruturas sócio-econômicas. Trezentos anos depois do nascimento de Cristo, um imperador pagão, Constantino, concluiu que trucidamento não extingue conceitos e o cristianismo venceu - agora um deus único, guardado pelos judeus. Estes, porém, ficaram repelidos à margem do mundo dos cristãos, numa Europa desunida, economia agrícola atrasada, o comércio era perigo de vida nas emboscadas em caminhos desguarnecidos, coube aos judeus o sistema de trocas, com estradas mais seguras; em todas as cidades do ex-Império Romano havia uma comunidade judaica que sempre abrigava um mercador em viagem, povos guerreando pela conquista e posse de Roma, só os judeus unidos, bom convívio com as populações locais, não ameaçando ninguém militarmente e sem ambições políticas. Na cidade medieval, ruas habitadas por cristãos e judeus, cada qual com sua corporação profissional: sapateiros, carpinteiros, mercadores judeus. A Igreja proibiu a cristãos e judeus compartilharem cama e mesa e depois confinou suas ruas em guetos, não anti-semita, apenas afastando o convívio entre hipotéticos concorrentes no terreno religioso. No Concílio de Elvira, pequena cidade da Espanha, início do século IV, Constantino, o Grande, confirmando judeus sendo cidadãos romanos, mas em Elvira afirmavam os bispos: sujeita a excomunhão o cristão em contato pessoal com judeu. Novecentos anos depois, 1215, Concílio de Latrão, um traje judaico para que ficassem ridicularizados - vestes compridas e negras, lembrando o temido diabo, por cima uma mancha de pano amarelo, símbolo de indignidade, e um chapéu triangular, alto, muticolorido, de palhaço; em alguns lugares, um sininho preso à roupa - confinado, transformou-se na imagem de infiel, cúmplice do mal, traidor, embora todos os discípulos de Jesus fossem judeus. Pôncio Pilatos, poderoso governador de Roma num país ocupado (Judeia), jamais foi mostrado como representante dos romanos. Assassino de Deus? Mais fácil e cômodo atribuir o crime aos judeus. Suposta reunião de Sinedrin, supremo tribunal religioso que condenou Jesus à morte, não podia ter se realizado, pois a lei mosaica não permitia julgamento noturno , sessão às vésperas de festas religiosas (Páscoa) e sentença no mesmo dia do processo - ninguém conhecia o judaísmo a ponto de duvidar... e o judeu-gente passou a judeu-alegoria: "Judas era judeu e os judeus mataram Cristo". No século VI, o Concílio de Toledo proibiu casamento de homem judeu com mulher cristã; surgiram sermões obrigatórios nas sinagogas e batismo forçado de comunidades judaicas inteiras, perdendo o direito de transmitir aos filhos as tradições religiosas, frequentar sinagoga, comerciar, cunhar moedas, emprestar a juros, possuir terras.

9---Perseguições eternas. 1095, o papa Urbano II prometeu perdão total dos pecados a quem eliminasse inimigos da religião cristã (...) em 1099, cristãos chegaram à Terra Santa, em Jerusalém judeus queimados vivos numa sinagoga, por ordem do líder dos cruzados (...) 1181, 1254 e 1321, judeus expulsos da França (...) 1210 e 1290, expulsos da Inglaterra - entre uma expulsão e outra, perseguições, torturas públicas, fogueiras humanas (...) 1348, massacre em cidades alemãs (...) 1391, nas cidades da Espanha reconquistada (...) expulsões em toda a Europa até 1745.

10---Em 1791, a revolucionária Assembleia Nacional francesa garantiu aos judeus todos os direitos civis, acabando para eles 18 séculos de Idade Média (na realidade, somente em 1885 cairam em Roma os muros do último gueto medieval). Procurando um lugar na sociedade, os judeus recorreram à ciência, à política, à arte e ao ensino, em poucos anos querendo anular a diferença de séculos que os separava da evolução das novas pátrias europeias. No século XIX, havia mais músicos-pintores-advogados-médicos-políticos-cientistas judeus que banqueiros ou comerciantes, e o judeu, abandonando seu estereótipo, saiu dos guetos, penetrou e tornou-se um intruso num mundo que não lhes pertencia. A alta nobreza europeia revoltada contra esta invasão e inativa a burguesia nacional de muitos países, judeus aplicando conhecimentos científicos e econômicos (por exemplo, em navegação e extração mineral, fabricação do aço e indústria química), simbolizando uma quebra de tradições que levaram os burgueses europeus a defender sua posição dominante na economia do mundo: não mais tempo de atacá-los imaginando biologicamente inferiores. --- Em 1889, numa pequena cidade da Áustria, nasceu Adolf Schickelgruber, que passaria à História como Adolf Hitler, que disse, radical: "Vocês não podem viver"... e a Idade Média recomeçou. Anti-semita na medida em que era paranoico e o judeu justificou o fracasso de uma nação derrotada e quase toda a Europa se dedicou ao massacre: 500 mil alemães contra milhões de judeus... Império do ódio. Entre o Concílio de Elvira (ano 305) e a instituição de extermínio em massa de Auschwitz, em 1941, muitos hitlers, não necessariamente alemães, porém séculos de perseguições, o "outro" imaginado como um anti-semita em potencial.

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FONTE:

"Esta gente tem direito a paz? Não, são judeus!" - reportagem de EURICO ANDRADE, fotos de SALOMÃO SCLIAR - "Dois mil anos de perseguição", de MARCOS AMARGULIES - SP, revista REALIDADE, n.25, abril/68.

F I M

Rubemar Alves
Enviado por Rubemar Alves em 12/04/2020
Código do texto: T6915182
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