UMA HISTÓRIA PARA MARILDA

Parágrafo I
Landro Oviedo
     
Marilda nunca pensou que algo diferente lhe pudesse ocorrer naquele dia que começava com uma manhã insossa, de nuvens espessas e com uma sensação de abafamento. Mas precisava sair de casa por dever de ofício e assim se levantou naquela rotina que se repete sempre tão igual que nenhum calendário a levaria a sério se não fosse a tal da luta pela sobrevivência. Como num filme que vemos várias vezes, fez tudo como ontem e anteontem, bem como nas vésperas das antevésperas, e, depois de contrariar Heráclito, pegou suas coisas e saiu para a rua.

Parágrafo II
Valéria Surreaux
Não gostava de contrariar o marido. Durante todos os anos do morno casamento, ele foi habilidoso em lhe colocar, com estranha doçura, no desconfortável lugar de eterna devedora de seus parcos proventos, ignorando o tanto que ela contribuía com o trabalho que lhe subtraía a beleza e roubava-lhe a juventude.
     Desceu a rua, carregando a pesada sacola. Conhecia cada lajota do caminho, sabia da rotina das casas todas, as janelas abertas, as roupas estendidas nos varais, o bom dia desdentado do padre Hélio, as avencas nos pátios.
Ao dobrar a esquina, o latido furioso dos cuscos foi o primeiro sinal do que viria. Largou a sacola no chão para recuperar o fôlego e um arrepio gelado lhe percorreu a coluna.

Parágrafo III
Jair Portela
     Marilda escorou-se em um poste, relaxada, e fez uma pequena regressão. Deixou estacionar em sua mente o que tivera como quase um dogma de fé durante todos aqueles anos de coadjuvância matrimonial, em especial quando era colocada “no seu lugar”, ainda que sutilmente: ruim com ele, pior sem ele. Mas... Como se permitira anular-se tanto? Em que ponto do seu sono deixara dormindo aquela menina voluntariosa que tanto trabalho dera a Heráclito até ser conquistada, sob a promessa de que o paraíso era logo ali? Não, não. Não mais. Mesmo que o espelho, dias atrás cruelmente, tenha lhe apontado os primeiros pés-de-galinha, era jovem, tinha força e pela primeira vez, desde aquele ponto do sono em que se esquecera de acordar, sentiu-se novamente Marilda.
     Então retomou o caminho, pisando decididamente a calçada com passos de mulher. Olhava lá adiante, o nada. Mas não o mesmo nada de ontem e de anteontem, que era repleto de recomeços vazios e deprimentes. Havia sim um horizonte de incertezas, e momentaneamente também vazio, porém, pelo menos uma certeza se sacramentava. Dos seus passos, que retumbavam na cabeça como um hino, saia uma nova sentença: ruim sem ele, pior com ele.

Parágrafo IV
Athos Ronaldo Miralha da Cunha
     Marilda caminhou, decidida, ao ponto de táxi. Ela conhecia o motorista e ficou um pouco encabulada por não ter a companhia do marido e solicitar uma corrida até a cidade de Paso de Los Libres.
     Ao chegar na ponte Internacional ela pediu que a levasse até a margem do rio antes de cruzar a fronteira. Saiu do carro e, pensativa, seguiu em direção às águas. Molhou seus pés no Uruguai por alguns minutos, sentiu um frescor que lhe penetrou na alma. Voltou à terra firme e outra vez molhou seus pés nas águas correntes do rio. Sentiu um misto de alívio e calmaria. E um distraído dourado se aproximou de Marilda. Naquele instante lembrou de uma história que seu marido contava seguidamente. Não poderia se banhar duas vezes no mesmo rio. Pois nem ela e nem o rio seriam mais os mesmos. Então, tomou a mais corajosa decisão dos últimos anos. Iria encarar o futuro na Argentina. O Heráclito que fosse às favas e deu adeus as suas mágoas.
     Mas ao voltar-se para o táxi ouviu um grito lá de longe.
– Marilda!

Parágrafo V
Ana Mottin 
     Era Cecília, sua colega de Escola Normal. Meu Deus, quanto tempo não a via! Sempre fora a mais bonita da aula, mas aos 16 anos ficara grávida e se perdera .
O pai da criança, todos sabiam, era doutor Eleutério, dono da Estância Santo Antônio, marido de dona Santinha e pai de oito filhos legítimos, fora os outros.
     O guri - que nem mais guri era, devia estar com uns vinte e três anos - tinha uma ou duas mortes no lombo e, segundo se dizia, andava foragido.
     O tempo desce em cima da gente mais rápido do que carancho em cordeiro, Marilda pensou, subindo depressa o barranco para se encontrar com a amiga.

Parágrafo VI
Marga Cendón 
     Cecília sorria de braços abertos e, apesar dos anos de afastamento, sua presença inesperada soava feito um alívio. Era como se adivinhasse a urgência de um abraço que resgatasse Marilda daquele emaranhado. Cecília havia mudado sim, mas Marilda ainda sentia nela o mesmo lugar de acolhimento. Houve uma época em que trocaram confidências e promessas de serem comadres e felizes com seus maridos e filhos perfeitos. Depois se perderam de vista. Agora estavam ali, frente a frente, com suas histórias distintas e a mesma memória de sonhos distantes. Marilda dispensou o táxi e andou com a outra pela margem do rio. Tinha muito para contar.

Parágrafo VII
Maria Da Graça Rodrigues 
     Marilda poderia caminhar horas perdidas pela beira do rio Uruguai de braços dados com Cecília. Assuntos represados de tantos anos, as brincadeiras do tempo de escola, os primeiros amores, a espera desesperada para que o sino batesse anunciando a hora da saída. A corrida até o portão do Horto para ver os guris dos outros colégios sentados no muro da hidráulica. Lembranças havia, e muitas. Marilda gostava daquele clima quente e sem sol, bom para passear sem preocupações. Conversariam até de noite sobre suas alegrias e dores não fosse o temporal que viram se armar para o lado do Sul. A chuva logo cairia sem piedade e ela não queria perder o amparo daquele encontro. Num repente puxou a amiga pela manga do vestido, correram juntas em direção a sua casa. E quando o marido chegasse teria que aceitar, teria que ceder a sua vontade dali em diante. Receberia visitas sim, não importa o quanto aquilo o contrariasse. Ouviu o barulho no portão, os passos duros no cimento do pátio da frente. A porta se abrindo. Serviu mais um mate e mais uma fatia de bolo para Cecília que gargalhava lembrando do dia em que mataram aula para ir a uma cartomante que descortinaria os segredos do futuro de cada uma.

Parágrafo VIII
Débora Mutter
     Desde menina, Cecília era considera meio precoce, cética. A própria ida à cartomante não fora iniciativa dela. Resistiu um pouco, mas se deixou levar por Marilda, sabendo que aquilo não teria efeito na vida real. Ambas lembravam-se da fala metafórica e ambígua da cartomante que deixou as amigas intrigadas, meio incrédulas, temerosas sobre o futuro daquela sólida amizade. Acreditavam que nada poderia separá-las.
     Os passos seguiram se aproximando da cozinha onde estavam, já no assoalho do pequeno corredor que unia a sala à cozinha. Marilda tinha ainda um sorriso maroto e desafiador, enquanto Cecília, de repente, séria largou a cuia sobre a mesa. O leve tremor nas mãos e a palidez do rosto fizeram com que Marilda dissesse: — Calma, é apenas o Heráclito. Esse marido com nome de filósofo grego que há muito deixou de ser o príncipe encantado para se tornar um ogro.
     Não houve tempo para Cecília, já em pé, tensa e lívida, dizer nada.
     Heráclito entrou na cozinha, com a sacola que Marilda esquecera no táxi Exasperado, aos berros: — O que você foi fazer na beira do rio ao invés de ir trabalh... Interrompeu a fala abruptamente ao ver Cecília. Ambos olharam-se como petrificados. Os intermináveis segundos transcorridos nesse visível embaraço exigiram a intervenção de Marilda: — Como você pegou a sacola? Heráclito nem chegou a explicar que o motorista, conhecido da família, entregou-a quando ele passava no ponto. Seguia fulminando Cecília com os olhos. Até que, com dentes semicerrados, interroga: — O que você faz aqui?

Parágrafo IX
Lucio Carvalho
— O que eu faço aqui? Não seja hipócrita, Heráclito! Eu vi que você não conseguiria se livrar dela sozinho e vim lhe ajudar com isso...—, disse-lhe a antiga amiga. A essa altura, ex-amiga, pensava Marilda. Pensava também que a sua vida seria muito mais simples dali em diante se a tivessem permitido simplesmente fugir à Argentina, mas é claro que, sem lhe passar os bens de herança, ele não permitiria. O Heráclito sempre fora calculista e toda aquela armação sórdida da qual era vítima exigia que raciocinasse rápido. A sacola de encomendas nas mãos do marido confirmava a impressão de que, mesmo planejando matá-la, não lhe poupava nem o dia derradeiro de serviço, o animal. Até mesmo a risada de Cecília à lembrança da cartomante agora lhe causava repulsa. Repulsa pelos dois, seu segredo e sua trama. Com os olhos, Heráclito apontou para o quadro na parede da sala sob o qual havia o cofre de documentos e suas poucas joias do qual só ela conhecia o segredo. Só que nem ele e muito menos Cecília imaginava que ao fundo daqueles papéis ela alcançava o cabo frio da arma sempre carregada que o seu pai lhe presenteara antes de morrer.

Parágrafo X
Claudio Noronha
     Ao dirigir-se ao cofre, Marilda, tomada por uma rapidez de raciocínio que não era dela, que nunca experimentara, que só poderia ser coisa de Deus, ou até do Diabo, voltou a cabeça e disse: - está mesmo na hora de por um ponto final nesta palhaçada, só tu mesmo, Heráclito, pretensioso e pateta como sempre foste, não sabe que seu Cleber, do táxi, come essa vagabunda desta tua amante há muitos anos. Ela pega o dinheiro de vocês dois faz tempo. O quadro do cofre também foi testemunha do sonoro tapa que Heráclito desferiu no rosto de Cecília. Marilda pegou sua sacola e saiu a passo rua afora. Os vizinhos abriam suas janelas, aos pares, para melhor bisbilhotarem os ruídos do bate boca e dos  tapas que se sucediam. Todos estranharam a origem dos sons e os passos serenos e a expressão altaneira que Marilda carregava no rosto.



 
Landro Oviedo e Valéria Surreaux; Jair Portela; Athos Ronaldo Miralha da Cunha; Ana Mottin; Marga Cendón; Maria Da Graça Rodrigues; Débora Mutter; Lucio Carvalho; Claudio Noronha.
Enviado por Landro Oviedo em 10/04/2020
Reeditado em 10/04/2020
Código do texto: T6912815
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