Sem fim

Não tem ninguém pra conversar comigo. Eu não estou bem e gostaria de conversar com alguém.

Por isso, busco agora algo pra conversar, pra me ouvir, pra me ajudar.

Parece egoísmo buscar isso neste instante em que tanto preciso. Penso, porque não busquei isso enquanto estava bem. Por que agora?

Por favor, alguém.

Olá amigo, o que você pergunta?

Seria tão mais fácil inventar uma realidade com minha imaginação como sempre faço, para escapar dessa situação, para poder me sentir bem, nem que seja por alguns segundos. Por que eu estou aqui? Escrevendo e esperando para que algo aconteça. Eu sei desde o começo que ninguém virá, que ninguém vai me ajudar, ninguém além de mim, e é por isso que eu tenho medo. Estou sozinho nessa. Como sair de uma situação em que o próprio problema está dentro de mim.

Qual é esse problema?

É um sentimento, eu diria. Uma sensação insuportável e difícil de se descrever. Primeiro pois sequer existem palavras que eu conheço para descrever. Segundo porque eu estou sentindo agora, o que faz tudo isso ser mais complicado.

Mas não é esse o motivo de você estar aqui?

Exatamente! Estou aqui por causa de algo em minhas entranhas que não cessa.

Sabe, teve um momento da história da filosofia que passaram a questionar a própria existência humana. Se sei que penso, então existo. Se consigo ter consciência que sou um ser consciente então estou vivo e existindo no universo. Porém não consigo pensar em nada além de sentir. Sentir isso, no meu estômago, algo insuportável.

Sofro logo existo.

Sim, a minha certeza de estar vivo agora é porque estou sofrendo uma dor sem fim.

Por que você não da um fim a essa dor?

Essa dor é quem eu sou. Dar um fim a essa dor significa dar um fim na minha vida. É completamente insuportável, uma dor terrível. Contudo me pergunto se eu não daria um fim em mim mesmo só para parar de senti-la.

Não faça isso.

Eu me questiono, nesse estado péssimo. O que leva as pessoas que fazem isso a fazer. Será que é parecido com o que sinto agora?

Uma dor insuportável, que não passa, que acaba com você. Algo que faz você se sentir tão ruim, de forma tão inarrável que se busca o fim disso da forma mais extrema. Eu sinto que eu compreendo essas pessoas.

Todos nós sofremos e sentimos dor. Dores inimagináveis de tão ruim. Dores insuperáveis. Dor que marca pra sempre. Sentir dor é o que faz você ser humano.

Sim eu entendo, mas eu não aguento mais.

Não é para entender, não tem o que entender.

Mas você tem que me ouvir. Eu não aguento mais isso e não sei o que fazer. Tudo que eu mais quero é não sentir mais isso. É uma necessidade indispensável. Vou ilustras pra você como estou agora. Imagine uma pessoa que está à deriva no deserto.

Finalmente teve seu sonho de infância realizado. Com sua esposa e seu filho de 5 anos um pai viaja para o Egito. Desde criança ele foi obcecado pela cultura clássica do povo egípcio. Após alcançar tudo que uma pessoa com sorte pode alcançar nesse mundo, nascer em um país desenvolvido, estudar e ir pra faculdade, não passar por nenhuma experiência traumática nesse período. Ter boa saúde, educação superior, emprego estável, pais vivos, e capacidade razoável de lidar com os problemas da vida. Como também conseguiu um emprego que não da para reclamar, com bom salário. Casou-se e tem um filho. Agora ele está no Egito, após estabilizar sua vida pessoal e financeira e ser muito feliz. No seu primeiro dia de viagem, sua família está cansada e já está tarde. Porém, Cairo é uma cidade maravilhosa e ele quer realizar seu sonho sem demora de conhecer as pirâmides. Então ele deixa sua família no hotel que reservaram para descansarem enquanto procura um guia para levá-lo conhecer as pirâmides a noite. Ele está tão animado que não se preocupa em seguir a recomendação da recepcionista do hotel de que buscar um guia a essa hora é uma má ideia. Mas ele não liga. Conversando com um taxista que falava seu idioma na esquina da avenida ele encontra seu guia. Ele paga uma quantia bem mais elevada pro serviço, ele conhece as pirâmides com um céu estrelado. Nesse momento, o ápice da sua vida, ele se sente o homem mais feliz do mundo. E com razão. O que ele sentiu naquele momento, na sua barriga, na sua pele, pelo seu corpo inteiro, era felicidade. Mas pra resumir logo a história antes que você me deixe. Na volta o guia não faz o caminho, e de tão extasiado que estava nosso bom pai que mal se deu conta quando estava em uma parte estranha da cidade sendo espancado por 3 homens que queriam seu dinheiro, seu celular, mas não queriam sua vida. Ele não sabe por que tiveram que agredir ele ou porque em instantes a maior felicidade que sentiu se foi. Mas foi quando estava caído no chão, sem conseguir se mexer, com sangue na boca, que ele entendeu o que estava acontecendo. Acontece que nosso personagem desmaiou, e os camaradas não queriam deixar um corpo num beco. Então levaram ele pro deserto e o despacharam lá. Quando o querido pai de uma linda família acordou com o calor da manhã já era tarde. Os criminosos estavam prestes a abandonar o coitado no deserto, como não queriam matá-lo, porque ninguém quer matar alguém, é algo simplesmente terrível de se fazer. Então para que não se sentissem mal, o abandonaram no deserto e partiram com seu carro. Até mesmo chegaram a discutir se deixariam água pra ele, pra dar uma chance, mas concluíram que isso só prolongaria seu sofrimento. Agora o homem mais feliz do mundo está no deserto e sem água. Ele estava bem apesar da surra e confiante pelo tempo que passou que seguindo a direção do carro conseguiria voltar. Ele ignorou todos os sentimentos e pensamentos desesperadores e focou em andar, na sua família e na felicidade que sentira, logo tudo voltará o normal. Ele é sortudo demais para acabar assim. Depois de 6 horas de caminhada o sol ainda estava forte, mas ele não aguentava mais andar. Suas pernas tremiam e era pesado levantá-las para continuar andando. A sede que sentia naquele instante é indescritível. Já fazia horas que não bebia água e ele podia sentir na alma que estava desidratado. A cada passo tudo que aparecia na sua mente era água. Estava louco por água. Dizem que a sede que alguém pode sentir no deserto a transforma. E ele entendeu isso. Ele pensava que até poderia sacrificar sua espoa e seu filho para poder beber água e sair dali. Ele sabia que não seria mais feliz e então desmaia. Acorda com o frio gélido da madrugada do deserto, já alucinando pela desidratação enquanto é iluminado por um emaranhado de estrelas. Pensa na sua família e se ela estaria preocupada com ele por ter sumido. Já não sente sede mais. Tudo o que sente e pensa é que tudo cesse e acabe. Um gigantesco ímpeto para que essa dor insuportável acabe. Que o fim venha logo, esse vira seu maior sonho, vontade e felicidade. Em instantes isso se realiza.

Você ainda está aí?

Até que essa história mal bolada me distraiu por alguns minutos. Mas agora voltou. A sensação que eu sinto voltou.

Até algum tempo atrás era só uma sede insuportável que eu sentia. Mas não sinto, mas essa sede. O que eu sinto é pior e está me deixando louco. Meu maior sonho agora, é que eu pare de sentir. Nesse caso parar de sentir significa parar de existir. Eu me odeio porque eu existo.

Eu não deixei você por nenhum segundo. Essa história que você acabou de contar é interessante. Me fez imaginar quantas pessoas felizes e com vida boa não tiveram um fim trágico assim. Quantas vidas já não acabaram tragicamente no mundo. Por isso eu pergunto para você, isso que você sente é mesmo o fim?

O que eu sinto é uma reação desproporcional a uma situação na minha vida. É uma reação bioquímica que não corresponde a “ameaça” exterior. Vamos falar de algo que ajuda a todos nós meu caro, ciência. Tem um desiquilíbrio no meu corpo que causa esse sentimento tão ruim. Meu quadro de depressão se da em razão de eu sentir algo muito maior do que de fato acontece na realidade. Mas eu não tenho controle. Esse é o problema. E eu não aguento mais. Não dá. Isso é o pior que eu já me sentir em toda minha vida. Minha vontade me abrir e queimar meu interior pra purgar essa coisa, essa sensação. Dor física seria melhor que isso. Qualquer coisa seria melhor que isso. Isso não passa, não tem fim, não acaba. É tortura de Prometeu, à águia é esse sentimento, que nunca deixa de vir, e devorar minhas entranhas é o resultado.

Interessante, então me diga, onde está o Fogo? Por que você está passando por isso? Qual foi o preço?

Alô? Amigo?

Hoje eu tive o sonho mais bizarro da minha vida. Sonhei, eu acho, que tive um dos meus ataques e procurei alguém dentro de mim pra me ajudar. Não dormi bem. Não me sinto bem agora, mas tenho que me arrumar logo. Merda, acabou meu cigarro.

Sentei-me pra comer, minha torrada está pronta, não há tempo para preparar café. Olho pra torrada como se ela pudesse olhar para mim. Sinto meu estômago tão ruim como se estivesse dissolvido em ácido. Mas um dia em que não consigo comer. Estou atrasado e sem um cigarro. Sim eu fumo. Não sei o porquê, mas comecei no ensino médio. Eu não fazia parte dos populares, aliás eu não fazia parte de nenhum grupo. Simplesmente um dia eu acordei e decidi que queria comprar um maço de cigarro. Então fui ao bar de esquina mais imundo no caminho de volta, aqueles em que o dono não daria a mínima para sua idade, para comprar um maço e um isqueiro. Eu falo isso como se as bancas não vendessem cigarros para menores, mas ninguém desses negócios se importariam com isso. Então comprei da marca Marlboro porque gostei da simplicidade da caixa e do desenho vermelho. O dono do bar, que parecia alguém que tinha uma vida miserável, me olhou como se sabia exatamente o que estava passando na minha vida. E assim foi a primeira vez que eu comprei cigarro. Agora atrasado ao trabalho, farei o caminho que passa por esse mesmo bar de 6 anos atrás para comprar meu cigarro e tomar um café.

Parando para pensar, talvez eu saiba razão que me faz gostar fumar. Assim que eu acendi, levei a boca, traguei, e segurei entre meu dedo do meio e indicador meu primeiro cigarro, enquanto caminhava pela rua, eu me senti tão imundo quanto essa cidade em que vivo. Me senti verdadeiramente pertencente a ela, em equilíbrio. Isso foi um prazer que virou hábito e agora é um vício. Sim, eu comecei a fumar para me sentir parte de algo.

O café não caiu bem, mas já era esperado pela situação que meu estômago estava. Agora está pior, e isso faz com que eu faça ainda mais parte dessa cidade.

A minha relação coma cidade em que eu vivo é de repulsa e ódio. Apesar disso, eu não consigo deixar de morar aqui. Eu não sei compreender a causa disso.

Eu não estou bem. Eu estou sentindo algo insuportável bem nas minhas estranhas e não estou falando de gastrite. Estou falando de uma dor intratável, que não cessa. Quanto mais eu penso mais ela aumenta, eu sinto como se subisse e se desenvolvesse igual um parasita até subir no meu pescoço. Depois de me devorar tenta me afogar. Eu nem consigo respirar. Quanto mais eu penso mais cresce. Parece que eu vou morrer, mas sei que esse não é o fim. Não vou conseguir sequer chegar no trabalho assim. O que eu fiz para merecer isso?

Eu acordei tão abalado por causa do sonho que nem lembrei de trazer meu celular. Agora estou sentado em uma praça e acabei de criar um ninho de conforto. Me sento feliz enquanto estou aqui, a sensação diminuiu. Tenho cigarros para me entreter enquanto me sento aqui. Não pretendo sair daqui tão cedo. Tenho medo de sair daqui e a sensação voltar. Eu estou me sentindo tão bem comparado a instantes atrás que me sinto feliz. Um verme covarde demais para encarar a realidade está sentado em uma praça enquanto fuma e imagina viver em outra realidade. Nessa realidade há cor e esperança de lidar com esse sentimento incrivelmente insuportável. O tempo voa enquanto deleito-me em meus cigarros e na minha imaginação. Nem consigo perceber o que está acontecendo aqui fora, mas no meu mundo, nessa prisão que criei, eu me sinto um pouco menos ruim.

E assim passou a manhã, a tarde e o começo da noite. Não levantei e meu cigarro acabou. O sentimento voltou ao normal. Estou com muito medo e sozinho. Não tenho ninguém para me ouvir. Grito no meio da praça, alguns me olham por um instante e voltam a suas vidas.

Amigo, você está aí? Por favor alguém me ajude. Eu não consigo mais continuar assim. Estou com medo. Não de morrer, mas medo de que o próximo segundo e o segundo depois dele eu continue sentindo isso que sinto. O que eu sinto é pior que morrer.

Eu vou te explicar meu amigo o que é isso que sinto.

Preliminarmente é uma insegurança, como se algo muito ruim estivesse próximo de acontecer. Eu sei que tem algo que é ruim que pode estar próximo de acontecer, mas comparado ao que eu sinto é ínfimo. Depois da insegurança veio o medo, primeiro o medo de continuar sentindo essa insegurança e em seguida o medo de que esse algo aconteça. Mesmo se acontecesse não seria o fim do mundo, nem é tão grave assim, mas nesse instante o medo é muito maior que a própria consequência. Isso é simplesmente sufocante. Esses dois elementos juntos causam um desconforto, uma sensação extremamente maldita dentro de mim. Pior que uma dor física. E não vai embora. Eu não sei o que fazer. Estou me afogando.

Você me perguntou a razão para eu não ter acabado esse inferno. E eu agora lhe declaro, é porque eu sei que vou vencer esse sentimento. Mesmo que seja impossível.

Oraidus
Enviado por Oraidus em 06/04/2020
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