O ESPÍRITO DE 1991
Davi mexia em sua caixinha de remédios enquanto o espírito de 1991 o observava, parado perto de um pequeno sofá cinza de dois lugares.
- “Não adianta você tomar ansiolíticos e antidepressivos Davi... muito menos doses extras de remédios pra dor nas costas”.
- Você não sabe o que eu sinto, você... você é só uma assombração! Só mais uma! - Gritou Davi enquanto remexia os remédios sem olhar pra trás...
Então continuou separando as pílulas, seus olhos não estavam tristes. Davi não era do tipo que fazia drama, e na verdade são esses os piores... os que choram por dentro e que choram sozinhos.
- “Depressão e ansiedades são casos clínicos. São doenças mentais... e você não têm nada disso... Apenas um punhado de más decisões e mais um punhado de solidão autoinduzida. E você esteve apaixonado esse ano... depois de anos sem se apaixonar você esteve apaixonado umas TRÊS vezes seguidas! É um recorde. Parabéns. Ieeei.”
- Em 1991 eu não me lembro de você falar tanto... – Resmungou Davi enquanto engolia todas as pílulas (para “doenças” diferentes) de uma só vez com uma garrafinha de água. – Na verdade não entendo porque... Porque exatamente 1991??? E os outros anos, também não morreram? Não se importam comigo? - Davi se virou um pouco dando uma risadinha cheia de sarcasmo.
O espírito suspirou... e nesse momento ele já estava bem à vontade, sentado no sofá de pernas cruzadas. Sua aparência era à imagem do próprio Davi. Um irmão gêmeo espectral um pouco mais pálido, vestindo um manto negro... e no lugar dos olhos castanhos, haviam apenas buracos negros e fundos como o fundo do poço… o qual Davi acreditava se encontrar.
- Foi algo conversado e combinado lá do “outro lado”. Todo mundo lá se importa – e muito – com você, Davi. Mas, chegamos a um consenso de que 1991 foi o ano mais pleno e mais feliz em toda a sua vida.
- Eu não era feliz em 1991! Eu estava na ESCOOOLA! Eu odiava a escola!!
- Eu sei, eu sei...você vive dizendo isso... E nós até cogitamos trazer o espírito de 1988 ou 1989. Mas acreditamos que a felicidade advinda da “ignorância”, ou você pode chamar de “inocência” das criancinhas, não é exatamente uma felicidade consciente... portanto escolhemos 1991. Você era criança, mas tinha uma certa consciência quase formada.
Davi sentia uma dor enorme nas costas, no pescoço, mas principalmente sentia o peso da madrugada e das lembranças invadindo seu corpo.
- Muito sofrimento...? – Perguntou o espírito.
Davi deu um longo suspiro… Parou um pouco diante da vitrola e pôs um disco de Elvis Presley. Era um disco gospel chamado “How Great Thou Art” (Quão Grande Tu És). Em seguida se sentou ao lado do espírito do ano de 1991.
- O que me deixa pensativo... não é só o sofrimento…
- E o que é meu amigo? – Perguntou o espírito.
- É saber que muita coisa podia ter sido EVITADA… facilmente, sabe? Muita dor… tanta dor...
- É eu sei...
- Hoje eu tenho esses momentos... hoje é assim que funciona… Eu fico triste e pensativo. Aí do nada a felicidade vem… e volta… e vem… e volta. Mas... eu me sinto em débito, o tempo todo. Cada risada, cada amigo que faço, cada boa atitude... carrega certa “hipocrisia”.
- Um interesse egocêntrico por redenção… - Completou o espírito.
Eles se deram as mãos. Alguns minutos depois Davi riu sozinho... Seu sorriso era lindo e quase infantil.
- O que foi? Também quero rir... – Incentivou o espírito, com animação.
- Lembra quando eu descia pra brincar de baleado com AS MENINAS? Eu ficava dizendo que não queria, que só jogava porque não tinham meninos no prédio, mas eu queria... Eu gostava do jogo.
- Você sempre curtiu mais a companhia das mulheres, Davi... – Concluiu o espírito, num tom zombeteiro.
- Nunca entendi a disputa… Homens são feios, mulheres são lindas… e cheirosas, quero ficar perto delas. - O espírito riu assentindo com a cabeça.
Davi se levantou e apagou todas as luzes. Seu cachorro, um poodle velho de onze anos, levantou a cabeça e rosnou por alguns segundos e depois voltou a dormir. Davi pegou três ovos cozidos que deixara na geladeira, pôs numa vasilha e voltou ao sofá.
- Servido?! – Perguntou em tom de deboche.
- Pfff... eca! E GELADO ainda por cima…!
Davi mais uma vez adquiriu aquele olhar perdido.
- Teve a primeira vez que dei um selinho... também em 1991.
- Foi ridículo... – Concluiu o espírito. – Os dois gargalharam.
- Ela nem queria, fiquei insistindo, acho que me beijou pra se livrar de mim… hahaha! – Davi soltou uma sonora gargalhada, daquelas que a gente se vira pra trás e os ombros se sacodem…
- E tinham os Guns’n’Roses, Michael Jackson, tinha a casa dos meus avós… e dormir entre minhã mãe e meu pai… e conseguir ESCALAR ÁRVORES, sem correr risco de vida! - As risadas ecoavam pelo quarto.
Enquanto isso a música “Crying in the Chapel” cantada pelo rei do rock, soava como um carinho... uma mão que acariciava toda a casa. Davi olhou pro lado, já estava pronto pra contar mais uma lembrança. Mas o espírito tinha ido embora...
- Filho da mãe… - Sussurrou Davi, ainda meio risonho.
Mas Davi sabia que ele não era mais necessário... Davi estava extremamente feliz, e mais do que isso… ele estava grato. Olhou em volta… a escuridão reinava quase absoluta, se não fosse por Elvis.