A UNS TEMPOS DAQUI
Não sei a data ao certo. Não sei sequer se se conta ainda o tempo. Mas sei que foi a muito daqui.
Era um homem pardo, como todos a sua época. Adentrou a loja. Carregava com dificuldade uma criança no braço esquerdo. A mão do outro empunhava uma arma. Sofisticadíssima ela era. A criança, como todas assim o eram, percebeu a tensão. Desatinou a chorar. E os cães a latir, lá fora. O homem berrava:
— O dedo! O dedo!
A vítima, ao balcão, não entendeu em princípio, mas num rompante de pensamento, comuns a essas tais horas de extremos, compreendeu o significado daqueles gritos. Nesse futuro, quando papel-moeda era artefato arqueológico e cartões de crédito utensílios superados, todas as informações resumiam-se nas impressões digitais do polegar direito. Mas não se tinha notícia de que assaltantes mutilavam pessoas por isso.
Haveria uma amanhã então.
E ficou lá, estático, diante daquela tão nova situação. Em seguida, o assaltante arremessa uma navalha de charuto. E a vítima soube aí o que deveria fazer.
A criança chorava ainda. Os cães a seguiam com seu desesperado alarido.
O homem armado ameaçava matar o outro, que, atrás do balcão, não podia conceber o estrago que aquela arma poderia causar. Pediu que o assaltante se acalmasse. Este:
— A puta que o pariu! O dedo, cara, corta essa porra e me dá.
O facínora era magricelo. Estava transtornado. Tinha fome. E o choro do bebê era um misto de susto e nada para digerir.
Naqueles tempos era difícil conseguir com o que se alimentar. As plantações não vingavam. Os solos, depois da última guerra, poluíram-se de tal maneira que era impraticável cultivar o que quer que se quisesse. A população diminuíra, dizimada pelo novo vírus, que se espalhou durante a fase biológica da guerra, quando os exércitos foram esfacelados e os equipamentos inutilizados pelos ataques nucleares. A grande questão era que os continentes estavam cada vez menores, devido ao avanço inclemente dos oceanos. A América agora eram duas. A do centro desaparecera. Japão, Islândia, Madagascar, todos esses lugares eram agora histórias que se contavam sobre uns tempos passados. Mas a população não diminuía proporcionalmente, e os que não tinham dinheiro para se refugiar em terras altas, onde a especulação imobiliária atingira seu cúmulo, ficavam à mercê da sorte. Da morte.
Morte.
“Pelo que decidir: morrer ou viver sem o dedo e o crédito?”, pensava o homem atrás do balcão. Em tempos assim, era difícil escolher. E esperança era piada há algum tempo já. Seu pensamento foi interrompido por um estrondo. Olhou em derredor.
Um dos cães invadira a loja, avançara no assaltante, que, desesperado, eliminou o animal, transformando-o em fumaça com um tiro apenas. Então era isso, ele não podia atingi-lo. A arma desintegrava o alvo. O homem partiu pra cima do algoz de outrora, que jogara a criança a fim de livrar a mão.
Lutaram.
O assaltante mordia o homem, mas só conseguiu feri-lo no braço, superficialmente. As digitais estavam intactas. O crédito permanecia, a identidade também. O dono do estabelecimento conseguiu se apoderar da arma, e de vítima se fez carrasco. Atirou, insensível, no homem faminto e na criança, cessando-lhe o pranto.
Livrar-se dos corpos era coisa do passado.