Acertando contas com o passado - Partes 5 a 8 (final)

Parte 5 – Maria e sua religiosidade

Após firmar-se no emprego, alugar uma casinha, aprumar-se na vida, Maria começou a sentir falta de sua religião. O som dos atabaques, as palmas, enfim as giras de trabalho lhe faziam enorme falta. Em outros tempos, antes de se meter com as coisas erradas, antes de perder o marido e ser abandonada pelos filhos, Maria era médium trabalhadora de um terreiro de Umbanda. Sua conduta, da qual já temos noção, fez com que seus guias, sem abandoná-la, a deixassem à própria sorte a fim de aprender com os próprios erros. Com ela, cumpriu-se muito bem o ditado “se não aprende pelo amor, aprende pela dor”. Ela estava ainda aprendendo pela dor.

Foi então que Maria resolveu perguntar à Neusa se ela sabia onde havia um terreiro ali por perto. Neusa era evangélica, mas respeitava as demais religiões, não se extremava a ponto de achar que para chegar até Deus há apenas um caminho. Sendo assim, disse à Maria que na rua em que ela mesma morava havia um. Como estava “reclusa” em si mesmo há algum tempo, Maria mal andava pela rua em que morava, mal saía de casa para qualquer coisa que fosse; portanto, não havia notado que na rua de sua casa havia um terreiro.

Na manhã seguinte, uma quarta-feira, ela saiu mais cedo de casa e foi caminhando calmamente pela calçada em sentido oposto ao que costumava fazer. Desta forma, passou em frente ao terreiro e viu uma placa que informava os dias e horários de atendimento. Às quartas-feiras, a partir das dezenove horas havia o que eles chamavam de “Trabalho de cura e desobsessão” e aos sábados, também a partir das dezenove, as giras de Umbanda propriamente ditas. Resolveu que iria no próximo sábado.

Passou os dias seguintes numa ansiedade terrível. Chegou o sábado. Maria chegou antes das dezenove horas, pegou senha, sentou-se, fechou os olhos e pôs-se em silenciosa prece. Soaram os atabaques para a defumação e Maria já sentiu seu corpo todo se arrepiar. Havia anos que ela não dava passagem às entidades que a amparavam. Naquela noite era um trabalho sob o comando dos pretos e pretas velhas. O tempo foi passando. Os minutos pareciam horas para Maria, até que sua vez chegou.

Entrou, fez o sinal da cruz na entrada para o atendimento, postou-se diante da entidade – uma preta velha, Vó Cambinda – fez o sinal da cruz aos pés da entidade e sentou-se no banquinho que lhe estava reservado. A preta-velha, antes de qualquer coisa, fez um benzimento e aplicou um passe energético em Maria, era para reequilibrar as energias. Depois começou a falar:

– Eita que zifia tava pesada. E ainda tá um pouquinho. O que incomoda tanto a zifia? Conte para essa nega veia pra nega vê como pode ajudá.

Maria desatou a falar e, em menos de dez minutos, contou, de toda sua vida, aquilo que havia de mais importante, sem omitir nem mesmo seus erros. Enquanto ela falava, Vó Cambinda pitava seu cachimbo, bebia seu café e estalava os dedos em volta de Maria. Quando terminou a narrativa, a doce e séria velhinha, falou:

– Tudo isso, zifia, porque em algum momento tu se desviou do teu caminho. Tu não deu atenção ao que as entidades que te acompanha falaram, não é mesmo? – Maria só meneou afirmativamente a cabeça. E Vó Cambinda continuou:

– Mas tu aprendeu, não foi mesmo? – outro gesto afirmativo. – Então se acalme, zifia. Se acalme porque nada acontece por acaso. Tu tem Xangô e Oxum nessa coroa, a Justiça e o Amor, e a moça que sempre te acompanha é da falange das Rosa Caveira. Tão me dizendo aqui pra tu não se esquecer do dia do fogo, foi ela que te ajudou a fugir de lá. Não se preocupe mais com o passado. Não deixe ele te atormentar. Tu ainda vai ter algumas surpresas nessa vida. Venha mais vezes nessa casa, inclusive na quarta-feira, vai te fazer bem e tu bem sabe. Agora vá em paz e acenda esta vela para a nega veia que te acompanha, ela tá pedindo.

Vó Cambinda disse isso e despediu-se da consulente com um abraço fraterno e reconfortante. Maria agradeceu e saiu. Chegou em casa, trocou e de roupa e acendeu a vela antes de dormir. Foi uma das noites mais tranquilas que tivera nos últimos anos.

No dia seguinte, domingo, aproveitou o intervalo do almoço no buffet e foi agradecer à Neusa pela indicação. Esta lhe respondeu:

– Maria, eu não professo a tua fé, mas estou vendo em teu semblante uma alegria linda e radiante. Me sinto lisonjeada, porém, agradeça a Deus, pois foi Ele que nos colocou no caminho uma da outra.

Maria sorriu, abraçou-a e pouco tempo depois voltaram aos seus afazeres. Nesse tempo todo, desde que começara a trabalhar no buffet, Maria havia tido algumas promoções. Agora era uma das responsáveis diretas pela cozinha. Claro que não faltaram obstáculos, os quais ela superou com muita fibra. Por exemplo, as tentações da bebida, que não foram fáceis. O cigarro ela nunca mais fumou mesmo. O que lhe atormentava para valer era a saudade dos filhos. Por onde andariam?

Após aquela primeira ida ao terreiro, Maria passou a frequentá-lo com certa assiduidade, inclusive às quartas-feiras, quando possível. Em uma das sessões de meio de semana descobriu que estava sendo atormentada há anos pelo espírito do marido, falecido há cerca de quinze anos e que a culpava pela morte violenta que tivera. Antônio era seu nome. Casaram-se também jovens e foram pais de três filhos. Passados uns dez anos de casamento, Maria, cansada das dificuldades financeiras e querendo dar uma vida mais confortável aos filhos, envolveu-se com o tráfico de drogas. Apesar dos alertas que ouvia do marido, ela seguiu, cegamente a sua ambição por caminhos errados. Ela não tinha noção de que aquele momento ruim era uma prova.

Passados alguns anos nessa vida torta, Maria, que já conquistara certo status junto aos grandes do tráfico daquela região, teve um carregamento perdido para a polícia e, de quebra, alguém entregou par-te do esquema. Quem está nesse meio sabe que não há perdão para traidores. Determinada noite, por sorte os filhos não estavam em casa, sua porta foi arrombada. Eram seus credores que vieram atrás de pagamento. Não havia dinheiro suficiente para o pagamento. Ela e o marido foram espancados, mais ele que ela, pois queriam que ela visse o sofrimento e a dor dele. Cansados de bater, os criminosos colocaram Antônio de frente para Maria, ajoelhado e com as mãos amarradas para trás e, sem falar nada, atiraram na testa dele. Ela desmaiou.

Quando os filhos chegaram, estavam numa festa na comunidade, o local já estava cheio de polícia e ambulância. Os três filhos formavam uma verdadeira escadinha e eram ainda muito novos, na flor da adolescência. Marcos, dezessete anos; Jéssica, dezesseis e Cleiton, quinze. Enquanto a mãe se recuperava no hospital, todos eles ficaram saltando de casa em casa, de parente em parente.

Praticamente um mês depois de tudo isso, Maria retornou para casa e reencontrou os filhos. Todos apresentavam certa revolta com ela e a culpavam pela morte do pai e pela situação em que estavam. Durante algum tempo ela arrumou uns bicos como diarista, mas o dinheiro não era suficiente. Os filhos conseguiram pequenos trabalhos, mas estava difícil conciliar a escola, o trabalho e a vida sempre no aperto. Mais uma vez, Maria sucumbiu às tentações da vida no crime; só que desta vez foi presa e os filhos decidiram abandoná-la. Foram cinco anos cumprindo pena, nenhuma visita, muita dor e sofrimento. Decidiu que quando saísse mudaria de vida. Nunca esteve tão disposta a cumprir com uma promessa. Quando saiu da cadeia não encontrou os filhos e entregou-se aos vícios até o dia daquele incêndio. Por essa época, a fé ficara abalada e chegou mesmo a maldizer aqueles que lhe amparavam do plano extrafísico. Isso lhe custou o que já sabemos.

Parte 6 – Débitos começam a ser pagos

Todos já ouviram que na vida a semeadura é livre, mas a colheita é obrigatória para todos. Cada um colhe exatamente o que planta e quem nada semeia, nada colhe. Também é de amplo conhecimento que se a vida é justa, ela não deixa de ser uma exímia cobradora, que não se deixa levar por qualquer emoção. Um dia a conta chega e, no papel de devedores, não temos por onde escapar às nossas responsabilidades perante a Existência. O que aqui se faz, aqui se paga; não importando o tempo que passe. Assim, a conta começou a chegar para os nossos personagens.

Três anos já tinham decorrido desde que Maria começara a trabalhar no buffet de Cristóvão. Certo dia, estavam todos nos preparativos para o casamento de Patrícia, que seria numa chácara. Estavam a preparar os milhares de doces e salgados. Além dos funcionários, naquele dia, estavam também Cristóvão e sua família a fiscalizar o andamento de tudo. A festa seria no dia seguinte, um sábado, e nada poderia dar errado.

De repente ouvem o interfone tocar. Havia certa distância do local de trabalho até a portaria. O porteiro disse que uma encomenda tinha chegado. O próprio Cristóvão foi verificar, pois ele mesmo não se lembrava de ter pedido algo para aquele dia.

Ao abrir a porta, foi surpreendido por três assaltantes encapuzados, que o ameaçaram com uma arma e o conduziram para a parte onde estavam as outras pessoas. Contra armas não existe argumento. Os bandidos queriam dinheiro e celulares e também o cofre. Não havia cofre. Todos foram rendidos e os ladrões levaram o que puderam levar. A violência psicológica foi terrível.

Quando estavam de saída, um dos elementos fez Patrícia como refém até o portão. Outro agarrou a primeira pessoa que viu, justamente Maria. Ao abrirem o portão, deram de cara com a polícia. O local possuía monitoramento remoto e a empresa responsável tratou de avisar as autoridades. Teve início uma negociação muito tensa. Patrícia e Maria tinham revólveres apontados para suas cabeças. O terceiro ladrão aproveitou e fugiu.

Todos estavam em desespero. Cristóvão, então, que estava próximo do bandido que segurava Patrícia, tentou dar uma de herói e pulou sobre o meliante. Este, assustou-se a acabou disparando um tiro à queima roupa na cabeça de Patrícia. Morte instantânea. Rolaram poucos segundos pelo chão e o bandido foi alvejado pela polícia. Também morreu.

Maria, à mercê do outro ladrão, começou a rogar por ajuda divina. Na hora dos disparos, ambos se encostaram no muro para se proteger. O homem que a segurava olhou a guia marrom no pescoço dela e a pulseira preta e vermelha em seu pulso esquerdo. Ainda com a arma encostada em sua cabeça, mandou que ela virasse lentamente para ele. Quando ficaram frente a frente, ele abaixou a arma, olhou-a bem nos olhos e só teve tempo de dizer “– Mãe!”. Ouviu-se uma sequência de disparos e o rapaz caiu morto no chão. Maria retirou o capuz que cobria aquele rosto e reconheceu nele o seu filho mais velho. Não houve tempo para uma reconciliação. Caiu em lágrimas profundamente dolorosas.

Esta tragédia abalou toda a estrutura familiar frágil de Cristóvão e dos seus. Maria, que estava em franca recuperação, entregou-se novamente à bebida.

Meses depois, quando tudo parecia estar voltando ao normal, nova tragédia se abate sobre Cristóvão e Sônia. Carlos, o filho que restara, já com seus dezoito anos, tinha tido uma mudança radical de comportamento. De tendência depressiva e isolacionista, passou a profunda agressividade e a envolver-se com pessoas de índole altamente duvidosa. O diagnóstico não tardou a duvidar: tornara-se um viciado e para manter-se, também traficava e praticava roubos e furtos. Não deu outra. Em uma das noites que saíra de casa para se drogar e roubar, metera-se numa briga e acabou sendo morto por espancamento, tendo o rosto completamente deformado.

Cristóvão e Sônia, totalmente abalados e sem saber o porquê de tudo aquilo, fizeram o caminho oposto ao que deveriam seguir. Ao invés de se manterem juntos para vencer mais esse obstáculo, decidiram se separar e cada um cuidar da sua vida. Dividiram os bens: Sônia ficou com o luxuoso apartamento e Cristóvão com o buffet. O dinheiro que possuíam em banco também foi igualmente dividido. Ele mergulhou fundo, e de cabeça, no trabalho, fato que o salvou de cair de vez num abismo profundo do qual, talvez, não tivesse saída. Por outro lado, tornou-se alguém que se isolou quase por completo do convívio social. Ela entregou-se aos prazeres mundanos como forma de esquecer as tragédias pelas quais passara. Ledo engano! A fuga, ainda mais por esses caminhos tortos e tortuosos, aumenta o sofrimento ao invés de diminuí-lo.

Tempos depois disso, Cristóvão ficou sabendo que ela também se fora. Estava agora literalmente só, imaginava ele. Outro engano absurdo, pois nunca estamos sós. Mesmo que não possamos ver, temos sempre a companhia de acordo com os nossos pensamentos.

Maria, após o ocorrido, quase enlouqueceu. Se não fossem seus irmãos de fé, ela teria ido embora, adiando mais uma vez a chance de recomeço. Culpava-se demais por tudo e isso a massacrava. Com muito custo, parecia levantar-se novamente. No terreiro, numa gira de Exu e Pombagira, ouviu da entidade que lhe atendeu:

– Deixe de moleza, dona. A vida é dura sim, mas tu é mais dura ainda. Não se culpe desse jeito. Cada um é responsável pelas escolhas que faz. Tu não está pagando pelas escolhas erradas que fez? Então, deixe que a parte da tua carne que partiu pague pelas escolhas dele. Ninguém é só vítima nessa terra. Perdoe-se em primeiro lugar. Tu não pode carregar a culpa que não é tua. Tá entendendo? Então vamos limpar este teu campo, que tá por demais de carregado. Mas uma coisa eu te falo, se tu cair de novo, tu vai ficar no chão. Por acaso esqueceu de quem te ampara?

O Exu baforou seu charuto em torno de Maria, molhou, com seu marafo, os pés e as mãos de-la. Por fim, mentalmente pediu permissão ao Pai da casa para que Maria pudesse dar passagem à Pombagira que a assiste e finalizar o trabalho de limpeza e descarrego. Feito todo o processo, Maria saiu de lá agradecida e muito mais leve do que entrara. As duras palavras que ouvira a fizeram querer viver. Afinal, havia mais dois filhos para ela reencontrar. Ela também precisava reencontrar-se.

Parte 7 – Entrelaçamento de histórias

O leitor desavisado e afoito deve imaginar que este é apenas mais um emaranhado de histórias, que se confundem sem se ligar. Quanta tolice. A vida é uma grande teia e cada fio se entrelaça com outros fios. Os pontos onde se encontram, são os pontos em que as diferentes vidas se tocam. Deste toque levam marcas e nesse toque deixam marcas. Não há acasos na Criação Divina.

Com a separação, Cristóvão comprou uma casa na mesma região do prédio em que morava. Não tinha o luxo do apartamento que morava com Sônia e os filhos, mas mesmo assim era bastante confortável. Quando soube da morte de Sônia, não quis saber de reaver o apartamento. Sônia era filha única e os pais já haviam falecido. Como ela não tinha mais parentes diretos ou indiretos, coube a ele decidir o que fazer. Vendeu o apartamento e doou o valor para instituições de caridade.

Nessa nova fase de sua vida, com mais dedicação ao trabalho, os cinquenta anos de idade se aproximando, decidiu contratar alguém para cuidar da cozinha de sua casa. Lembrou-se de Maria, funcionária do buffet, e resolveu chamá-la. Se ela quisesse, tinha até mesmo um quarto extra na casa que poderia ser ocupado. Ele precisava de alguém para cuidar e organizar a casa para ele. Conversaram e ela aceitou. Não sabia se daria conta de tudo, pois afinal de contas já tinha quase sessenta anos e a vida, aliás, ela mesma, já se judiara demais.

Meses depois, convivência trouxe relativa liberdade, Maria perguntou ao patrão por que ele ainda não arrumara outra pessoa, pois ele ainda trazia algum vigor. Cristóvão respondeu que se cansara da convivência a dois e que talvez não fosse tão bom assim para viver com alguém. Se o fosse, por que Deus havia permitido que ambos os filhos morressem? Por que Ele havia permitido que Sônia se desgostasse da vida que levavam? Maria retrucou:

– Sr. Cristóvão, eu também já sofri muito na vida. Hoje, aparento bem mais do que os meus quase sessenta anos. Mas sei que estou pagando pelas minhas escolhas. Naquele dia do assalto, quando o senhor perdeu sua filha, eu também perdi um filho que não via há uns 20 anos. Ele era o ladrão que estava me fazendo de refém. Nós só nos reconhecemos quando nos olhamos bem no fundo dos olhos, mas aí já era tarde. Eu aprendi, com muita dor, que cada um deve pagar pelas escolhas que faz. A gente que não entende ou não aceita, mas tudo acontece como tem de ser. Então, sr. Cristóvão, viva a vida.

Ele, que ouvia tudo calado e concentrado, não conseguiu disfarçar e deixou um fio de lágrimas rolar pelo rosto e disse:

– Nossa! Maria, você pareceu a minha filha falando agora. Ela tinha uma fé e esperança invejáveis. Lembrei-me dela.

– Não chore, não! Ou melhor, – disse rindo a agora alegre senhora – se for para lavar a alma, chore, esvazie o coração. Eu ainda tenho mais dois filhos para encontrar de novo. Não sei se os encontrarei nesta vida ou em outra. Mas decidi não me cobrar tanto. Se o senhor quiser, pode ir qualquer dia no terreiro que eu vou. Vá tomar um passe, conversar, quem sabe o senhor volta mais aliviado?

Cristóvão falou que iria pensar, pois pouco sabia dessa religião e confessou que tinha mesmo até medo. Maria deu uma estrondosa gargalhada da fala de seu patrão. Despediram-se e foram dormir.

Naquela noite, Cristóvão sonhou com Patrícia. No sonho, Patrícia estava de frente a ele e lhe dizia, cravando-lhe aquele doce e firme olhar cor da noite:

– Papai! Que bom revê-lo e abraçá-lo outra vez!

– Eu estou morto? – perguntou Cristóvão.

– Não, papai, o senhor não está morto. Está desdobrado em espírito enquanto o seu corpo físico descansa.

– Mas como isso é possível? Não acredito nisso!

– Bom, existem tantas coisas que as pessoas não entendem. Porém, não há tempo para explicá-las agora. Tive permissão para contatar o senhor para adverti-lo de que se não mudar seu padrão de pensamento, se não mudar seu padrão vibratório, o senhor poderá partir antes do tempo. Não se preocupe mais comigo, com mamãe ou com Carlos. Todos estamos bem e em recuperação dos traumas pós passagem. Somos frutos de nossas escolhas antes mesmo de nascermos. Ao invés de ficar se lamentando por nossa partida, de ficar se cobrando porque poderia ter feito algo melhor, de ficar chorando de saudade, ao invés disso, ore, reze, para que possamos evoluir e encontrar o caminho da Luz e da Paz. Nós precisamos seguir nosso caminho, mas seus pensamentos nos prendem. Lembre-se que não pode carregar a culpa que não é sua. Ah, e ouça os conselhos de Dona Maria. Adeus, papai! – disse tudo isso e esvaiu-se no ar.

Cristóvão acordou sobressaltado e suando frio. O sonho parecera tão real! Levantou, foi à cozinha, tomou um copo d’água e, nessa hora, sentiu um suave calafrio a percorrer sua coluna e eriçar os pelos de seu corpo. Por incrível que pareça, sentiu-se em paz. Voltou para a cama e dormiu pesadamente.

Acordou no dia seguinte e foi tomar café. Chegou na cozinha e a mesa já estava posta. Pediu para Maria sentar-se e tomar café junto com ele. Aproveitou e contou o sonho da noite anterior para ela, que apenas riu e disse que podia ser um sinal de que ele precisava buscar entender um pouco mais de si mesmo e de sua história. Cristóvão pegou todas as informações com Maria a respeito dos atendimentos que lá faziam. Após recebê-las, disse que no próximo sábado não poderia ir devido a compromissos pessoais e de trabalho, mas que iria no outro.

Três dias depois dessa conversa, era uma segunda-feira, Cristóvão pediu a Maria que preparas-se um jantar especial para a quarta-feira, pois ele iria trazer alguém especial para provar do seu tempero. Ela deu um sorrisinho maroto, mas ninguém sabia o que estava por vir.

Na noite do dia marcado, Maria estava finalizando o jantar, por volta das oito horas da noite, quando ouviu a campainha tocar. Decerto era seu patrão que chegara com a tal da “alguém especial”. Só não entendeu por que ele mesmo não abrira a porta.

Assim que girou a maçaneta e abriu a porta, os olhos de Maria esbugalharam-se e ela quase enfartou. Precisou ser amparada por Cristóvão e por Jéssica, a companhia que ele trouxera. Sentaram-na no sofá e quando conseguiram acalmá-la, as coisas começaram a se esclarecer.

– Jéssica? É você mesmo, minha filha? – perguntou a emocionada Maria.

– Como assim? Vocês se conhecem? – foi a vez de um estupefato Cristóvão perguntar.

Jéssica demorou, mas reconheceu sua mãe naquela senhora tão sofrida. Vinte anos não foram suficientes para apagar de uma o semblante da outra. Como sua mãe estava acabada, sofrida! Pensou Jéssica. Caiu no choro também. Um misto de alegria e arrependimento. Alegria por tê-la encontrado e arrependimento por tê-la abandonado. Abraçaram-se forte e demoradamente. Parecia que Cristóvão nem estava ali na sala.

Muitos minutos depois, calmas e recompostas, puderam falar. Jéssica começou:

– Esta é minha mãe, a quem eu, junto com meus irmãos, abandonei há vinte anos. Não tivemos força para ajudá-la a superar os problemas. Nós a abandonamos à própria sorte e fomos cada um cuidar da sua vida. Perdão, mãezinha, perdão!

– Eu também peço perdão, minha filha. Eu devia ter sido mais forte e ter pensado melhor em vocês antes de escolher os caminhos errados.

Choraram mais uma vez e Cristóvão ficou sem saber o que falar ou fazer. Conseguiu apenas pronunciar:

– Vamos jantar a três, então?

Durante o jantar, as histórias foram surgindo. Maria quis saber sobre o filho mais novo e Jéssica disse que não sabia dele. Depois que saíram de casa, ficaram um tempo na rua, um tempo em abrigos e, por último, pipocando de casa em casa dos poucos conhecidos e amigos. Quatro anos depois separaram-se em definitivo e nunca mais se viram. Ela encontrou apoio numa ONG, estudou e hoje trabalha num importante banco no centro da cidade. Tornou-se uma mulher bem decidida, independente, além de muito bonita. Como teve ajuda para mudar e melhorar de vida, hoje ela é uma das responsáveis pela ONG que um dia a ajudou. Ela estranhou a mãe não ter perguntado pelo mais velho. Foi então que Maria lhe contou a história do assalto e da forma triste que reencontrara Marcos. Fez-se um breve instante de silêncio e Jéssica continuou:

– Mãe, durante muito tempo eu senti verdadeiro ódio da senhora e guardava muito rancor. Julgava que por culpa da senhora, o pai tinha sido morto e a nossa vida estava daquela forma. Por isso decidimos ir embora de casa. Os anos e os acontecimentos foram criando uma casca muito dura em meu coração e isso me fazia sofrer. Há cinco anos conheci a Doutrina Espírita e aos poucos fui me libertando desse sentimento negativo. Hoje eu reconheço que houve erros por parte de todos e que cada um é responsável por suas escolhas. Me perdoei, te perdoei e também peço o seu perdão.

– Hoje, filha, eu consigo entender isso tudo. Estou ainda me perdoando, pois tenho consciência dos meus débitos. Mas não tenha dúvidas que te perdoo e agradeço o seu perdão. Meu caminho ficará mais leve.

Olharam para Cristóvão e ele estava com os olhos marejados. Era muita emoção. Como ele ficou relegado a segundo plano naquele jantar, só lhe coube dizer que conheceu Jéssica em um evento que o buffet organizou para o banco em que ela trabalhava. De lá para cá já são três meses que os dois se conheciam e também já haviam contado suas histórias um para o outro. O que acontecera naquele jantar foi apenas mais um capítulo, não o capítulo final desta história.

Parte 8 – Últimos débitos e bônus: reencontros e partidas

Conforme prometido por Cristóvão, no sábado após aquele jantar, ele fora ao terreiro frequentado por Maria. Jéssica também os acompanhou. Aquela noite era uma gira de caboclos.

A primeira a ser chamada foi Maria. Ela apenas agradeceu por tudo. Tinha se encontrado na vida, reencontrou a filha, entendeu que cada um colhe aquilo que planta. A vida já tinha lhe dado talvez mais do que merecesse. O caboclo que atendeu a ela sorriu, aplicou-lhe um passe para equilibrar as energias, pois emoções positivas em excesso podem nos tirar fora do prumo e disse-lhe que a vida costuma retribuir ainda mais aqueles que demonstram gratidão por aquilo que recebem.

Na sequência foi a vez de Cristóvão. Chegou frente à entidade, saudou e foi saudado com um abraço. Postou-se ereto, fechou os olhos e antes que falasse qualquer coisa, o caboclo aplicou-lhe um passe com as mãos, primeiramente, depois ao som da maraca. E começou a falar:

– Filho tá bem hoje! Diferente da última vez que esteve aqui. O semblante está alegre e muita luz emana de ti. O filho quer contar algo?

Cristóvão contou o que ocorrera com ele nos últimos dias. Só esqueceu ou omitiu o sonho que tivera com Patrícia. O caboclo olhou-o fundo nos olhos e disse:

– Filho, não está esquecendo de nada não? – e deu um trago profundo em seu charuto, baforando depois ao redor de Cristóvão, que insistiu em dizer que de nada esquecera.

A entidade, então falou:

– Tem uns dias que a filha do filho lhe falou em sonho, não foi? Quando o corpo físico adormece, o espírito se liberta e viaja pelo espaço de acordo com os pensamentos. Mas nem sempre as pessoas se lembram das viagens que fazem. O filho se recorda bem do que ouviu aquela noite, não é mesmo?

Cristóvão balançou afirmativamente a cabeça. O caboclo continuou:

– Agora, as outras coisas que o filho disse ao caboclo, tudo são contas da vida que chegaram e estão chegando para o filho pagar. E já está na hora de o filho saber o porquê para deixar de se martirizar tanto nessa vida.

O caboclo pediu a um cambone uma cadeira para Cristóvão e também pediu ajuda a um outro médium incorporado para que ficasse atrás do assistido. Cristóvão sentou-se e as entidades postaram-se na frente e atrás dele. Aquele que começou o atendimento colocou a mão na testa de Cristóvão e desceu como que a lhe fechar os olhos e deu um brado agudo muito forte. Cristóvão sentiu que saíra do corpo e pairava, sendo amparado pelo caboclo, que lhe disse:

– Está vendo aquela filha sentada ali na assistência, aquela que te trouxe até aqui? Pois bem, numa existência anterior, o filho aqui tirou dela e matou duas crianças para que não fosse revelado um segredo perigoso para o filho.

Cristóvão ficou sem entender, mas o caboclo abriu uma espécie de tela mental e ele pôde se ver numa época diferente da atual. Parecia uma fazenda antiga, tempo da escravidão. Ele, Cristóvão, era o senhor daquela fazenda e Maria era uma jovem e bela escrava. Cristóvão, à época Mauro, tinha seus instintos carnais muito aflorados e em certo dia acabou por violar a Maria, que na época se chamava Joana. Dessa violência resultou uma gravidez, da qual veio à luz um casal de gêmeos.

As crianças começaram a crescer fortes e saudáveis e Joana caiu na besteira de exigir de Mauro o reconhecimento dos filhos. Foi uma atitude tola porque era um momento em que os negros não tinham voz nem vez. Um fazendeiro rico e importante como ele não podia ter seu nome vinculado a dois mulatinhos frutos de uma relação como aquela. Mandou que o feitor tomasse as crianças, ainda bebês, de Joana e levasse para ele. Mauro mesmo encarregou-se de dar fim à vida daqueles inocentes seres.

Joana, movida pelo ódio e pelo forte desejo de vingança, fez uso de forma negativa dos conhecimentos magísticos de seu povo e conduziu Mauro à completa ruína. Primeiro a loucura de sua esposa, que se entregou libidinosamente aos prazeres da carne. Depois foi a vez de Mauro, que, atingido por estranha doença, perdeu a mão dos negócios e levou a fazenda à falência e veio a falecer sozinho e abandonado por todos. Joana foi a única que permaneceu a seu lado para jogar-lhe a última pá de cal sobre seu caixão. Estava vingada. Através de outro brado agudo, o caboclo fez com que retornassem ao tempo atual no terreiro. Cristóvão caiu em choro convulsivo. E o caboclo continuou:

– O filho entendeu agora o ditado “aqui se faz aqui se paga”? Isso se chama “lei do retorno”. Entendeu por que os teus dois filhos partiram? Por que tua mulher enlouqueceu? Entendeu por que aquela que te trouxe até aqui foi abandonada pelos filhos? O que o filho tirou no passado, o filho vai ter de cuidar agora no presente. A vida está dando ao filho uma chance de se redimir pelos erros cometidos. Uma das crianças o filho já encontrou e ela é agora uma mulher muito bonita.

Um pouco mais calmo e sem chorar, Cristóvão falou:

– Entendi, caboclo. Entendi. Tenho muito o que pedir perdão e me perdoar. Mas como vou achar o outro filho de Maria?

O caboclo sorriu, deu um abraço em Cristóvão e disse:

– Quando vocês forem embora daqui hoje, estendam a mão àquele irmão que está lá fora tomando conta do que não é dele. É só isso que caboclo pode falar hoje. Vá em paz, filho. Vá em paz!

Cristóvão tomou um copo d’água que lhe foi trazido, recuperou o fôlego e retornou para a assistência, onde Maria e Jéssica estavam preocupadas à sua espera querendo saber o motivo da demora. Ele apenas respondeu:

– Coisas do passado! Coisas do passado! – abriu um sorriso e pediu para irem embora.

Naquele sábado o céu estava extremamente límpido, a lua brilhava grande e cheia, iluminando clara e perfeitamente a rua. Assim que chegaram no carro para irem embora, Cristóvão lembrou-se do que o caboclo disse e viu o homem que estava a tomar conta dos carros. Ele estava do lado direito, próximo à Maria. Cristóvão tirou da carteira uma nota de baixo valor e pediu para que Maria entregasse ao homem.

Maria recebeu a nota e virou-se para entregar. Tomou mais um susto. Olhou bem para aquele rosto, que não opunha resistência e perguntou seu nome:

– Cleiton, senhora!

Maria teve um rápido desmaio. Não tinha mais idade para tantas emoções. Cristóvão percebeu e saiu correndo para ajudá-la. Jéssica ouviu a voz do homem dizendo como se chamava. Aquele nome e aquela voz lhe eram familiares. Foi até o homem, que estava assustado, e não pôde se conter: era seu irmão. A vida unia mais alguns fios de sua teia e lá de dentro do terreiro, os caboclos sorriam e agradeciam ao Pai Maior por mais uma missão cumprida.

Dali foram direto para a casa de Cristóvão. Mais alguns pontos precisavam ser esclarecidos. Entraram e a primeira providência foi permitir que Cleiton tomasse um banho. Cristóvão cedeu algumas roupas dele para que pudesse vestir. Apenas depois é que se reuniram para conversar. Cleiton falou abertamente sobre a raiva que sentira da mãe em virtude da morte do pai. Falou também que depois que se separou dos irmãos passou a viver na rua, pedindo esmolas e fazendo pequenos bicos para sobreviver, mas que não se entregara ao tráfico – embora tivesse provado drogas. Por algum motivo que ele desconhecia, permanecera vivo para aquele momento. Em seguida, Jéssica e Maria contaram para ele as suas histórias e sobre o irmão mais velho.

Cristóvão, que a tudo observava sem nada falar, foi até a janela, olhou para o alto, sorriu e agradeceu ao Criador por ter tido a chance de participar daquele reencontro.

A vida, no entanto, segue seu curso. Alguns meses se passaram e as coisas foram se acomodando. Cleiton começou a trabalhar com Cristóvão e logo mostrou disposição para aproveitar bem a chance que recebera. Jéssica casou-se com Cristóvão e os quatro passaram a morar todos na mesma casa.

Maria e Jéssica eram frequentadoras assíduas do terreiro de Umbanda. Jéssica, inclusive passou por um curso e começou a fazer parte da corrente mediúnica. Sua vivência no kardecismo trouxe alguma ajuda, mas o mais importante foi a sua disposição para aprender e ajudar o próximo com a sua mediunidade. Maria ia para tomar os passes e ajudar de alguma outra forma, embora fosse médium bem desenvolvida, não apresentava mais condições físicas para o trabalho com atendimentos. Cleiton não era muito ligado à religião, mas procurava manter-se num caminho reto e de vez em quando ia também tomar seus passes. Cristóvão tornou-se um estudioso e bom conhecedor da religião, frequentava assiduamente as giras, mas preferiu não trabalhar. Achava ser mais útil na parte teórica.

Jéssica e Cristóvão não tiveram filhos biológicos, mas decidiram adotar um casal de irmãos já passados dos sete anos, ato altamente louvável. Dedicaram às crianças todo o amor que podiam e viram-nas transformarem-se em pessoas de bem. Ficaram juntos até que chegou a hora para ambos, já velhinhos, de partirem de volta para casa.

Cleiton casou-se e deu prosseguimento à sua vida, que se não foi das mais luxuosas, também não passou mais por tantas dificuldades. Compreendera que cada um tem da vida aquilo que semeia.

E Maria, a Dona Maria!? Esta grande alma foi a primeira dos quatro a retornar para casa. Perdoou e foi perdoada. Reconciliou-se com a vida e consigo mesma. Em sua passagem foi assistida por sua guardiã, que a recebeu de braços e sorriso abertos. Mais uma missão tinha sido cumprida. Ainda teve o privilégio de receber Jéssica e Cristóvão para quitar de vez os débitos com o passado, ao menos com aquele passado que aqui conhecemos.

Cícero – de 03 a 06/01/2018

Cícero Carlos Lopes
Enviado por Cícero Carlos Lopes em 29/03/2020
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