A LUZ E AS SOMBRAS
Um duelo de palavras transpostas de um conflito interior sofrido na angústia e no silêncio.
- Na vida também temos que representar vários papeis.Muito diferentes.
E ele desembarcava da camioneta, rente ao Mondego para ir se encontrar com amigos e avistava ao longe e em cima a Universidade.Coimbra.Onde ele estudara ciências médicas e se formara para gáudio do Pai que se orgulhava pelo feito como centenas de outros que podiam dizer à boca cheia.
- Tenho um filho médico – ou – o meu filho é médico – informação que suscitava um misto de admiração e inveja.
António lembrava-se desse percurso que o levou de Santarém para a cidade dos estudantes onde pairavam as memórias românticas da Rainha Santa, de Inês de Castro e dos seus amores funestos com um Princípe.Do Fado.
Foi quase como subir a escada e chegar ao terraço do prédio muito alto.
- Então em que especialidade está interessado?
-Psiquiatria – respondeu sem hesitar um segundo.
E ultrapassou também essa etapa e preparou-se com afinco e destreza para desempenhar esse primeiro papel.
“Ele era um senhor contido, triste e simpático mas com uma grande capacidade de ouvir os outros e de os ajudar em todos os aspectos mesmo para além dos estritamente relacionados com a saúde mental”
Mas o seu relativo êxito como profissional naquela área não o satisfazia totalmente.Sentia em si um sopro e uma vontade adversa de liberdade, paixão e consumação.
- Não consigo estar fechado nesta país tão pequeno e tão cinzento - cogitava amiúde.
Aceitou de bom grado uma experiência a que muitos teriam fugido.A sua célebre campanha nos navios David Melgueiro, Senhora do Mar e Gil Eanes como médico de bordo.Aí nos mares do fim do mundo ele observaria e participava na experiência limite de um grupo de homens “à porta fechada” com as suas tensões e desejos frustrados, a sua violência e os seus tabus num mistério insondável de sentimentos recalcados e proibidos.
- Então Dr não se senta com a gente para provar esta aguardente?
Ele era uma espécie de Convidado.Actor numa participação especial num drama infindo.Outro papel na sua vida.
Recolheu na mente e em cadernos esparsos um material valioso que lhe serviria mais tarde para desenhar a trama de algumas das suas peças inesquecíveis como por exemplo “O Lugre”.
Mas foi mais ou menos aos trinta e quatro anos e depois com mais intensidade aos trinta e sete que a sua carreira, primeiro como poeta e depois definitivamente como dramaturgo se iniciou com uma energia invulgar.
- Não achas ligeiramente incompatível a tua carreira como psiquiatra com esta súbita metamorfose em poeta, dramaturgo e artista.Imagina o que vão pensar os teus doentes ou pacientes quando souberem.
-Não sou o único.Olha o Torga, o Fernando Namora e tantos outros.
-Acho melhor escolheres outro nome para essas tuas escapadelas para não os confundires demais.
António resolveu passar a utilizar um pseudónimo para assinar as suas obras.E tudo se desenrolou com naturalidade, apesar de muito sangue e lágrimas.Conseguiu ser representado.Editado.Foi entrando no meio.Conheceu o António Pedro, a Amélia Rey Colaço e o Vasco Morgado, encenadores e actores e produtores e realizadores de cinema.e todos se referiam a ele como “O Santareno…aquele, o dramaturgo”.
Com a sua miopia extravagante, o seu andar descompassado e a sua inquestionável simpatia conseguiu entrar na perfeição nesse papel.Criar um personagem único, intelectual e diferente.
E os anos passaram-se a escrever, a tecer os nós dramáticos, os caracteres, os actos e …os desfechos trágicos.E vieram as estreias, o reconhecimento, os prémios e a aceitação na classe dos egos inflamados.
Com 1974, ele rejubilou por ser o primeiro autor a ser representado com o seu”Escritor português, 45 anos de idade”e na estreia uma ovação imensa encheu o Maria Matos quando ele foi chamado ao palco na estreia.
Era a liberdade, as portas que eram abertas, o país em alvoroço, a reforma agrária e também a triste revelação da verdadeira essência do ser humano que lenta mas firmemente tratou de restabelecer a velha ordem encapotadamente.
Santareno viveria apenas seis anos após a queda do Estado Novo.
-Pelo menos, agora poderemos ser quem quisermos e amarmos quem nos apetecer.Ninguém vai conseguir travar essa corrida – ter-lhe iam dito.
Ilusão de muitos.Viria a Sida, a contra-revolução, as marés contrárias e Portugal continuaria por muito tempo a pátria dos marialvas brutos e de vistas curtas e dos machões vulneráveis mas tão ostensivos e obtusos.
E ele terá pensado:
- Continuarei o que sempre fui.Discreto.
Esperou. Apagou as luzes e acendeu uma vela e um cigarro.Ouviu passos efoi abrir.O convite.
- Bem, mas está tudo às escuras.O espectáculo, por acaso, vai começar?
- Schiu!!!Não digas nada!
Aproximaram-se.Mais e mais.Envolveram-se num abraço.Ele sentiu as mãoscheias da outra pessoa a tocarem nas suas nádegas e daí até o foguete do desejo recrudescer foi um segundo.
- A hora da verdade!
Beijaram-se na boca, com ardor e com vontade.
Risos.Felicidade.Prazer.Delícia.O Paraíso.
O pano desce.