Um conto para descontrair - sobre bichos em nossas vidas
Do Billy eu me lembro apenas do tersol nos olhos esbugalhados e do latido fraco. Ah e como poderia me esquecer do seu couro impregnado no asfalto da movimentada avenida? Resultado de quando aproveitou a primeira oportunidade de passar sozinho pelo portão que deixaram aberto.
A notícia me chegou estranha quando dei sua falta. Queria vê-lo logo em seguida, mas não me deixaram. Fiquei triste por alguns dias. Um dia chorando escondido fui surpreendido e motivo de risos.
Aos poucos os pêlos foram se soltando esvoaçados e com algum tempo o asfalto ali era só asfalto emborrachado.
O Sully lembro que chegou já com todos os vícios e personalidade de uma outra criação.
Seus donos se mudariam para longe e não poderiam levá-lo. Foi isso que disseram. Ficou conosco. Acho que ainda pagamos por ele.
O temperamento é que era mais marcante, ranzinza sem muita conversa, e um vigor físico e mandibular de espantar.
Conviveu um pouco mais com a gente.
Nunca vi o Sully perder uma briga sequer, e o incentivávamos nessa prática.
Um dia alguém com o dobro do seu tamanho, velhos conhecidos de lados opostos de grades com grande troca de gentis rusguentos rosnados, estava solto. 'Fodeu' - pensei, ou qualquer outra coisa parecida visto que na época ainda não tinha hábito de falar palavras desse tipo.
Que briga de gente grande! Que orgulho do Sully.
E acreditem: o gigante passa a guarda do Sully. Então, um momento estático, cara a cara, dente a dente, o gigante por cima e o Sully de costas no chão parecendo uma barata tentando se desvirar. A conversa provavelmente era algo do tipo 'não passe de novo aqui em frente o meu portão seu pequinesinho de merda'.
Mas o Sully não escondia as armas dentárias e talvez o final fosse mais trágico se a dona do gigante não tivesse interferido.
Numa certa noite foi trazido ferido, no colo. Mas como tinha deixado um estranho tocá-lo? E ainda pegar no colo?? Nem eu pegava ele no colo. Também tinha sido vítima do asfalto e uma vizinha que o conhecia trouxe-o no colo para casa todo mansinho.
Andou por um tempo com 3 pernas e muita dificuldade. Logo corria com 3 pernas, deixando às vezes a 4ª tocar o chão, primeiro de leve e depois ganhando mais confiança. Logo estava normal de novo.
Enfim, o Sully me deixou marcas, literalmente - uma cicatriz dupla na linha branca do lábio - em resposta à minha investida num beijo. E não seria um beijo de boas-vindas, mas um beijo estimulado por outro beijo que eu tinha visto numa novela, mais ou menos uma ou duas semanas da sua chegada, quando eu já pensava que estávamos íntimos. Na verdade poderia sim ser de boas-vindas, tudo se misturava naquela idade inocente.
Seu fim: sabão. (Podia pelo menos ter virado o extinto sabonete Araxá). Não vi a cena da prisão, mas me relataram.
Dois pequineses haviam passado. Alguns felinos também, numa breve intersecção de convívio. Destaque só para um caso meio irônico: queríamos de qualquer jeito nos desfazer de uma gata de quem nem lembro o nome. Ela era levada de olhos vendados para lugares até distantes, que certamente não conhecia, e ela sempre achava o caminho de volta. A gata no cio era o fim do mundo.
O Ripe, que com certeza era para ser Hippie, escrito assim porque, quando o resgatamos - já sendo parte da família há algum tempo - no centro de controle de zoonoses tínhamos que 'registrá-lo', e então pela primeira vez pensamos em como se escrevia, e então soletramos R-I-P-E. Alguns anos depois R.I.P. Mas sabão não virou.
Ripe uma vez tinha até sido levado na correnteza do rio, que recebia esgoto e era murado. Como ele tinha entrado nessa não sabíamos, e também não soubemos como ele havia escapado, apenas nos surpreendemos quando o vimos em casa todo sujo e fedido.
Nesse meio tempo pessoas também iam, pessoas vinham, pessoas iam, pessoas vinham. Ripe ficou 'órfão'.
De manhã ele me seguia e me via subindo no ônibus sem poder ir junto. Ou eu sumia no meio do tumulto ou quando eu era o último a subir ele ainda ameaçava vir comigo. Eu tinha que afugentá-lo, o que chamava atenção também das outras pessoas.
O ônibus se movimentando e nós, passageiros, o víamos se distanciando também com seu olhar fixo em nós. Ele ia ficar o dia inteiro sozinho pelas ruas ou em casa.
Nunca me atentei se a velha tupperware (ou tapawer) tinha comida ou água para ele.
Um dia a trágica fatalidade do asfalto onde passavam carros também o atigiu, ele que era bem maduro e vivido e que conhecia muito bem o local e tinha sangue vira-lata.
Lembro-me que nessa época havia um tipo de harpa barata de camelô em casa que veio com algumas cifras. Eu vinha tentando tocar "Fascinação (...os sonhos mais lindos sonhei...)". Só conseguia tocar direito um pequeníssimo trecho. Aumentei meu empenho mas fiquei por alguns dias solando aquele trechinho repetidamente por minutos, conformando a situação com minha limitação-não-vocação artística.
Mais pra frente passou rapidamente o Sultão, um cocker paraguaio preto, mas também de belo porte.
Encontraram-no assustado no quintal depois de ter atravessado o portão. Adotamos. Ele era bem bacana.
Com alguns banhos curiosamente foi desbotando.
Descobriram-se suas antigas donas, que reconheceram Sultão num dia de passeio. Soube-se que ele era tingido com tinta preta de cabelo que vivia acorrentado que era maltratado que apanhava etc. Sugeriram levá-lo de volta. Negamos. Não fizeram nenhuma questão. Ele ficou.
Aquele aspecto assustado de início transformava-se em alegria. Quando saía na rua corria, latia e também desafiava os outros cachorros trancados em seus quintais. Talvez ele estivesse vivendo uma liberdade nunca antes experimentada e sentia forças suficientes para desbravar esse novo mundo, contrastando com sua real cor sem graça cinza pálido.
Na rua virou meio badboy, encarava e também brigava muito bem. Mas também acabou tendo experiências frustrantes em suas brigas talvez covardes (dois contra ele, um monstro cruel de berço contra ele...). Sossegou um pouco.
Passou a ter problemas de respiração. Em seguida também ficou 'órfão'. Não se alimentava como antes. Sofria muito para respirar roncando mais que um porco gordo velho e bêbado. A solução era remediar em períodos temporários para o resto da vida ou submetê-lo a uma cirurgia para remoção de carne esponjosa. (Nossa, cachorro também sofre de adenóide?).
Morreu inchado cinza-musgo excretando e de nariz desbotado. Não o vi, mas também me relataram.
Mais recentemente conhecemos e convivemos por um tempo com o Guga (nome em homenagem ao tenista, com seu auge já no passado), um poodle champagne número não-sei (um pouco menor que um cocker). Veio bebê, recebeu todas as atenções, até demais talvez. Bem agitado e brincalhão adorava morder braços com seus dentes ainda finos. Foi mimado, ficou chato. Ficou órfão de mãe. Ficou perdido. Teve filhos, distribuídos logo depois de desmamarem, e ainda vive perdido com a mãe dos seus filhos, uma vira-lata magrela e estrábica igualmente agitada e que devora tudo o que gente usa. Perdemos contato. Estão no momento tentando se encontrar junto com as mesmas pessoas que vêm e que vão todos os dias em horários desregrados.
Com Guga, antes de ter filhos, vivíamos todos juntos e com o Brian – um cocker caramelo que também veio bebê.
Brian - mais novo e, pela ordem e pela postura, o dono do pedaço – sempre folgava com o Guga, muitas vezes querendo só brincar. Mas havia uma diferença de idade. Nessas horas Guga ficava na dele. Mas quando a coisa ficava feia e partiam pra briga era Guga, com todo o seu porte em desvantagem, que colocava as coisas no lugar, e se mostrava realmente impiedoso e tirava sangue. Aliás, essa mesma ira já se refletira também em pessoas da casa. Incrível, o bicho parecia o pitbull-demônio que não solta de jeito nenhum a mordida e ainda chacoalha a cabeça querendo espalhar sangue e carne estraçalhada. Guga, espero que tenha se encontrado.
E Brian hoje, enfim, é realmente o dono do pedaço. Já tivemos alguns desentendimentos também. Aliás, ele se desentende com todos. Todos nos desentendemos também com ele. Cada vez mais teimoso, folgado, imprevisível. Está ficando mais velho. Já foi pai também. Mas também é dono de uma grande doçura.
O engraçado de Guga e Brian – que eu não via no Billy, no Sully, no Ripe, no Sultão – é que eles imploram carinho. Os outros talvez só quisessem presença. Hoje você acaricia um pouco e eles pedem mais. Você pára e com as fuças eles levantam sua mão direcionando-a para as suas cabeças. Eles recebem mais atenção do que os anteriores, comem melhor, têm mais conforto. São criados dentro de casa, é verdade, e com certeza não conhecem nada da malandragem das ruas. Mas será que eles precisam mais de ‘nós’ do que ‘nós’ precisamos deles?
Veja só, os bichos que eu realmente tive, ou que me propus cuidar: preá ou porquinho-da-índia. Chegou uma época que tinha uns 80!! Brincadeira, não sei, mas tinha muitos muitos. Era fácil cuidar. A comida preferida era capim. Alface ou outras verduras até comiam, mas acabavam sobrando e estragando no chão. O capim tinha aos montes, sempre fresco e de graça nos terrenos baldios espalhados pelo bairro. Quando começamos a enfrentar aranhas nesses terrenos baldios e quando encheu o saco limpar as casinhas e o quartinho onde eles ficavam mantive apenas um casal, o primeiro que eu tinha ganhado. Mas se eu não os separasse a coisa não ia parar nunca. Fiquei só com o macho, branco, o líder, o pai o avô, bisavô, etc, ancestral incestuoso vivo de várias gerações.
Que terrível o que lembrei agora. Dando banho no bicho, com o tanque cheio, o que virava uma demorada brincadeira para mim e uma tortura infindável para ele, eu quis ver se sabia nadar. Quis ver se sabia mergulhar. Afundei-o no tanque e ele rapidamente subiu. Afundei-o segurando por uns 5 segundos e trouxe-o para cima. Parecia normal. Deixei-o tomar fôlego e afundei novamente aumentando o tempo. Ficava analisando a expressão dele, a respiração mais ofegante, a cara de pavor suplicando para eu não fazer de novo. Não sei por quanto tempo fiquei fazendo aquilo. Não o matei afogado.
(...Acho que esse conto tá muito longo...)
Bem, acabei trazendo mais um preá que vivia sozinho largado na casa do vizinho que tinha um quintal grande e muita bugiganga espalhada. Eram agora o macho branco e o macho marrom, ambos de idade parecida e grandes progenitores. A idéia era que um pudesse fazer companhia para o outro (sei lá jogando baralho numa tarde e contando histórias de família) e eu não viver aquela loucura de ter que achar espaço para meus pés que eram bem pequenos e tomar cuidado para não pisar em ninguém quando se tem uma área de 12 metros quadrados com 200 preás inquietos!
Eu nem tinha idéia que ia dar merda. Eles se estranhavam, causas territoriais e de auto-defesa. Descobri nova diversão colocando os dois para brigarem. O branco sempre ganhava. O marrom, que antes não era mas ali mostrava-se bem matuto, talvez pela solidão há mais tempo só no meio das mesmas velhas bugigangas, quase sempre saía com o nariz esfolado. No final eu tinha dó do bicho. Parei com aquilo. E, sinceramente, não me lembro como me desfiz deles dois.
E tive ainda um outro bicho que também depois que me cansei ele só vivia numa pequena gaiola: um rato branco.
Era bem legal no começo colocar ele para andar de um braço para o outro, ou dentro da camisa, ou no sofá, na cama, deixar ele solto no chão da sala. Muitas vezes também via a reação de assombro ou nojo ou outra coisa das pessoas e também me divertia com isso.
Sei que um dia, quando me lembrei que tinha um rato branco, fui olhar na gaiola. O bicho estava parado, com as quatro patas apoiadas no fundo e a cabeça meio de lado, os olhos abertos e com os dentes expostos enroscados nas grades. Prestei mais atenção. Ele não se movia. Ou tentou roer a grade para ter a liberdade de buscar o que comer e beber ou tentou simplesmente degluti-la. Enterrei-o no jardim do quintal, que só tinha uma roseira seca e uma grande e velha paineira toda perfurada por minhas picaretadas segregando qualquer coisa meio amarela meio vermelha.
Todo dia quando chego em casa o Brian me saúda com alegria, às vezes até chorando, mesmo com outras pessoas já em casa. Fico um minuto com ele revezando o local das carícias. Ele prefere no queixo e no papo pelancudo e chega a levantar o pescoço ficando com o focinho quase 180 graus. Às vezes fico um minuto e meio e então o deixo contrariando sua vontade.
E o Guga? Será que está se encontrando?
Olha, eu acho bem difícil essa vida de bicho, mas ainda preferia ser um.
Enquanto isso vou encontrando e reencontrando a mim mesmo e as pessoas, de antes ou novas, conhecidas ou estranhas. E vejo que todos estão fazendo o mesmo.
Uau! Fiquei com uma vontade de latir agora.
UAUAUAU!!!
Maio/2010