Em paz
"Naquele dia após uma noite mal dormida, ele acordou cedo, como era de costume quando criança. Lavou o rosto, escovou os dentes, preparou um café bem forte e sentou-se na porta da sala, como nunca fizera. Pondo-se a observar o tempo, reparou em um pássaro que mantinha aprisionado em uma gaiola durante toda a sua vida. Levantou-se, alimentou o bicho e depois abriu a gaiola e o libertou. Olhou para um cômodo mal acabado no terreiro e viu seu cão acorrentado, tentando chamar a sua atenção, dando pulos e rodopiando no ar em aparente estado de êxtase. Pelo simples fato de o ver, o cão pôs-se a chorar de felicidade. Ao ver tal cena, ele caminhou na direção do canil, desprendeu o gancho que atrelava o cão à corrente e o libertou.
Naquele dia, quando acordou, parecia não ter dormido um segundo sequer durante a noite. Mas sentia-se leve, sentia-se bem, mente tranquila, estava em paz consigo mesmo! Naquele dia, como nunca fizera resolveu, iria caminhar sozinho. Ele sentia em suas vísceras aquela energia, quase podia tocá-la com as próprias mãos, estava em paz consigo mesmo. Naquele dia, quando resolveu ir caminhar, ao passar em frente do hospital que nunca frequentou por gozar de ótima saúde, foi surpreendido por uma peça de azulejo que se desprendeu do reboco da parede e caiu, atingindo-lhe na parte frontal da cabeça.
Naquele instante, todo o antes, pareceu-lhe muito distante, parecia não mais se importar! Lembrou-se do pássaro cantando feliz na janela após ter sido liberto e do cão correndo feito louco pelo quintal, como se dissesse obrigado. Lembrou-se da noite de ontem e dos pesadelos que não tivera nessa noite... Lembrou-se de toda a sua vida, desde a adultice até a infância. E antes de fechar os olhos pela última vez, olhou para o céu azul ensolarado e agradeceu pela primeira vez em toda a sua miserável vida por estar vivo, por estar livre, por não se sentir mais morto".