DEIXANDO A CIDADE DAS CERTEZAS
Em uma pequena cidade interiorana brasileira, chamada Covil das Antas, morava um homem diferenciado. Seu nome era Cristiano, mais conhecido como “Sô Cris”. Sô Cris era baixo e de físico robusto. Possuía longa barba e andava sob vestes muito simples. Na juventude, diziam, teria sido policial. Atuara noutro município, e ninguém sabia direito o motivo de sua saída da polícia. Quando chegou a Covil das Antas, usou suas economias para comprar um sítio. Cultivava alguns gêneros e criava galinhas lá. Frequentava bastante a cidade, a fim de vender o que produzia, mas movido também por outro interesse.
A coisa que mais o agradava fazer era questionar tudo. Toda pessoa com quem conversava entrava no diálogo cheio de certezas e saía repleto de dúvidas. Sua satisfação estava em balançar as crenças alheias, seja nos assuntos corriqueiros ou nos temas complexos. Certa vez, diante de uma mãe que acreditava ter seu filho escolhido a melhor carreira possível, travou a discussão seguinte:
— Meu filho vai cursar Medicina, Sô Cris! É, sem dúvida, a mais valorosa e importante das profissões!
— E por quais razões, Dona Gorete?
— Ora, “por quais razões”…! Se esquece o senhor de que médicos salvam vidas?
— Certamente, não me esqueço. Mas há também outros profissionais que salvam vidas. Os bombeiros, os policiais… os salva-vidas! Hahaha!
— Médicos cuidam das pessoas.
— Decerto. Bem como enfermeiros, cuidadores…
— Pra ser médico, é necessário estudar bastante!
— Concordo. Do mesmo modo, além de profissões que já citei, pra ser engenheiro, cientista, professor…
— Pois me diga, então, Sô Cris: o que seria da sociedade sem os médicos?
— Seria enormemente prejudicada. Entretanto o que seria dos médicos sem todos os demais profissionais?
Assim essa curiosa figura perambulava pelas ruas perturbando. Em decorrência disso, ganhava alguns fãs, sobretudo entre os jovens. Porém a maioria dos cidadãos nutria por ele aversão.
O prefeito local tratava-se de um figurão abastado. Há gerações, a família dele era a mais influente da região. Havia duas igrejas em Covil das Antas, uma católica e uma protestante. Os líderes de ambas mantinham estreita amizade com o governante. Este promovia generosos favores e doações aos templos. Do outro lado, padre e pastor sempre o promoviam diante dos fiéis… o suficiente para que todo mundo tratasse o sujeito com ainda maior subserviência, quase como um santo. Sô Cris discordava desse tratamento, desprezando também outros costumes ligados à religião. Não hostilizava as pessoas por reproduzirem esses costumes. Apenas questionava-os durante conversas pacíficas. Levantando tais questionamentos, recebia, frequentemente, descaso ou desaprovação. No entanto, de vez em quando, alguém o dava atenção, refletindo sobre suas indagações. Isso incomodava principalmente as autoridades. Na igreja, acusavam-no de herege e corruptor da juventude. No meio político, de perturbador da ordem pública.
Até que chegou o período eleitoral. O atual prefeito, franco favorito, concorreria com um estreante na política. Tal estreante, diferente do adversário, advinha de origem humilde, possuindo a simpatia e a identificação da população mais pobre. Todavia, naquele tempo, a maior parte dos pobres era analfabeta, sendo os analfabetos impedidos de votar, assim como as mulheres. Sô Cris declarava abertamente discordância frente a norma. Pensava que mulheres e analfabetos eram tão cidadãos quanto homens alfabetizados, portanto não fazia sentido não poderem votar. Isso trouxe temor ao prefeito e aliados. Foi o estopim para nosso protagonista. Organizou-se um plebiscito, e os eleitores sentenciaram: o desordeiro vizinho não poderia proferir essa opinião, caso contrário seria exilado.
Sô Cris não conseguiria aceitar o castigo. Dar vazão às ideias era vital. Logo, deixou Covil das Antas. Permaneceu, porém, na mente dos simpatizantes. Sua memória consolidou-se em relatos, que se estenderam por lugares e épocas nem de longe alcançados pelos seus contemporâneos.