Visita surpresa
Eram exatamente dezesseis horas e sessenta pessoas. Na sala clara e nas demais dependências da espaçosa casa havia pessoas chorosas e murmurantes. O velório já durava desde a madrugada e os funcionários da Santa Casa aguardando dentro do carro estacionado próximo ao portão sinalizavam que o horário do sepultamento se aproximava.
Ele, tinha setenta e dois anos e falecera devido a problemas cardíacos. Seu semblante tranquilo, seu terno marrom e seus cabelos brancos bem alinhados compunham o cenário, do qual faziam parte, além do protagonista no caixão, duas cadeiras e meia dúzia de girassóis. Em torno dele, conversas, lamentos e suspiros.
Quando todos já se preparavam para o último adeus, ela, após alguns instantes aguardando na entrada da casa, entrou lentamente, parando ao lado do caixão. Em pouco tempo, todos olhavam para a desconhecida visitante nunca antes vista pela família e pelos amigos presentes.
Abaixou-se cuidadosamente, tocando o rosto do defunto, enquanto uma lágrima corria até seu queixo, brilhante como uma estrela perdida em um céu alvo, envelhecido e sisudo. Desceu a mão já enrrugada pela passagem dos anos até as mãos dele. Deixou-lhe em homenagem uma rosa vermelha entre os compridos dedos. Os mais próximos já se pergutavam intrigados quem era a distinta senhora de longos cabelos tingidos de preto e vestida também de marrom, quando ela beijou a fronte do morto e se retirou.
Já no cemitério de Ricardo de Alburquerque, antes que o enterro fosse finalizado, um dos netos dele, revistou-lhe os bolsos do terno, para que nada de valor acompanhasse por engano o avô em sua última moradia. Surpreso, encontrou apenas uma velha foto tirada há exatos cinquenta anos e que evidenciava o cuidado de quem mantinha o passado no presente, ao menos na memória, protegido dentro de um terno usado pouquíssimas vezes. Um passado encapsulado e que transcendia os pequenos espaços e a imensa distância.
Na foto, um jovem casal e uma bela rosa vermelha. Ela, de Nova Iguaçu, ele, de Madureira. Dois sorrisos juvenis e um amor que o tempo não permitiu florescer e que a lembrança não apagou. A morte permitiu apenas um afago em uma brevíssima aproximação. Apesar de tanto tempo passado, no antigo registro, o rapaz reconheceu de imediato o avô, a visitante introspectiva e a rosa vermelha, uma última e resistente gota de paixão em meio ao amarelo da apatia que os cercava.
Os caminhos pelos quais a vida direciona as pessoas são longos e divergentes, os laços e afetos porém, são indissolúveis. Um pássaro canta enquanto a última pá de terra cai sobre a rosa. Cai a tarde, a lágrima e a ficha. Fica a descoberta de uma história sem desfecho e a lembrança de um amor que não pode florir.