Equilíbrio
Certo dia de inverno, querendo aproveitar os dias em que se chove menos, uma família discutia sobre a pintura da casa. Finalmente, após anos de espera, a mãe soube que receberia uma indenização trabalhista de pequeno valor, mas suficiente para realizar aquele antigo desejo seu, dos dois filhos e da filha.
Primeiro, discutiu-se a cor. A matriarca afirmava que não abria mão da fachada da casa ser pintada na cor salmão, na certa, devido ao tom da tinta lembrar-lhe a terra que brincara nos anos da infância no sítio em que nasceu. As cores dos quartos dos filhos e da filha seriam decididas por cada um.
O filho mais novo, adolescente com uma certa dose de rebeldia, defendia a cor preta para o seu, mas se mostrava vacilante quando a mãe tentava influenciá-lo por outra cor mais leve. O outro filho, querendo se afirmar másculo, com o fim da adolescência, e preparado para o início da vida adulta, optava pelo azul mais forte que vendessem na loja. A filha, já se consolidando como adulta e pensando ser para breve a sua saída daquele território, preferiu que a mãe escolhesse a cor do seu quarto e, de preferência, que fosse a mais em conta.
Na semana seguinte, a mãe solicitou o orçamento das tintas no material de construção do povoado e pediu ao cunhado lhe falasse o quanto cobraria para executar a obra em sua casa. No último dia útil daquela mesma semana, a matriarca pediu autorização à nova patroa para sair mais cedo e foi até o advogado que lhe defendia na disputa trabalhista. Lá, ficou sabendo que receberia a indenização em duas parcelas, uma vez que a empregadora que lhe feriu os direitos estava em processo de recuperação judicial. A primeira parcela sairia duas semanas depois, com a venda de parte do patrimônio. Já a segunda, ficaria para o fim de todo processo, que levaria anos.
Diante da notícia, a frustração tomou conta da família. Pela cabeça da genitora, passaram diversas ideias sobre como resolver o problema da pintura da casa. Tinha vergonha de ver seus planos frustrados, agora que demonstrou publicamente, para o povoado e para a família, a intenção de promover a benfeitoria de seu lar. Pensou em pegar empréstimo no banco, mas lembrou-se dos juros que lhe fariam pagar o mesmo que pintar também o segundo andar todinho, que ainda não havia sido construído. Lembrou-se do vizinho, que era agiota, mas este lhe causava receio que cobrasse na forma de cortejos desrespeitosos. Quase comentou com a irmã que morava fora do país, mas seria como uma forma de concordar que ela ganhe dinheiro através de outros expedientes, que não os reconhecidos pelas leis. Por fim, decidiu que optaria por pintar primeiramente apenas uma das partes da casa: ou a parte interna, ou toda a fachada. Num futuro breve, acreditava, completaria a empreitada.
Assim, levou a discussão até os filhos e a filha, de modo que a ajudassem a decidir. O filho mais novo enfatizou que era um absurdo ter uma discussão como aquela, uma vez que restava óbvia a opção primeira de pintar a parte externa da residência, já que, a parte interna era vista somente pelos familiares e mais achegados. Julgando ser idiotice preocupar-se mais com a parte externa da casa que a interna, o irmão do meio defendeu que era mais urgente a pintura interna da casa, já que ficava envergonhado quando alguma garota que conquistara na noite amanhecia em sua cama.
A mãe, compadecida com a opinião dos filhos, percebeu que tinha entrado em uma sinuca de bico. Não fazia a mínima ideia do que faria, até a intervenção da filha mais velha. Diante das acusações mútuas dos irmãos, a primogênita não ousava decidir qual seria sua prioridade. Achava que tanto a aparência externa quanto a interna eram complementares, e não antagônicas. Ademais, uma teria o poder de acentuar a turbidez da outra.
Diante do impasse, e compreendendo o cerne da preocupação dos irmãos, tirou da cartola uma ideia para resolver o conflito: pintar metade da fachada e metade do interior da casa. Com a solução proposta, a mãe franziu a testa sem entender, achando ser uma ironia desnecessária para pacificar o conflito. Os irmãos pararam a discussão, se olharam e passaram a atacar a irmã.
Diante das indagações dos três, a filha vaticinou: quem se preocupa somente com a aparência externa, vai continuar recebendo os amigos que entrarão para perguntar porque não se pintou toda a fachada da casa; aquele a quem mais importa a aparência interior, receberá suas visitas que entrarão indiferentes à fachada e perguntarão porque não se terminou as paredes de dentro de casa. Os irmãos pensando baterem fácil os argumentos da irmã, logo se uniram para inquirir e testar seus doutos saberes:
- E se entrar alguém que reparará tanto sobre as pinturas da fachada e quanto dos cômodos da casa?
A irmã, serenamente, respondeu:
- Esse alguém não questionará. Terá maturidade suficiente para saber que o mais importante foi a nossa busca por equilíbrio, melhorando, ainda que dentro de nossas limitações, as duas partes da nossa casa.