A ESCRAVINHA // (OBVIEDADES DO BRASIL NO SÉCULO XIX )

DEUS SEJA LOUVADO !

QUE A GRAÇA DO SENHOR JESUS SEJA SOBRE TODOS NÓS !

JESUS ! - NOME QUE SALVA !

“ MAS OS QUE ESPERAM NO SENHOR RENOVARÃO AS SUAS FORÇAS...” ISAÍAS 40 : 31 (caput)

*********************************************

“ PORQUE EU, O SENHOR TEU DEUS, TE TOMO PELA TUA MÃO DIREITA, E TE DIGO: NÃO TEMAS, QUE EU TE AJUDO !“ISAÍAS 41:13

*********************************************

“QUERO O SALVADOR COMIGO!

POIS SEM ELE NÃO POSSO ANDAR !

QUERO TÊ-LO MUITO PERTO...

NO SEU BRAÇO DESCANSAR ! “ HINO

*************************************************************

Do meu livro

ANSEIOS DE LIBERDADE

ESTHER DE OLIVEIRA CASTRO LESSA

OBVIEDADES DO BRASIL NO SÉCULO XIX

A ESCRAVINHA

PARTE I

Em boca fechada não entra mosca

A escravinha contava uns onze ou doze anos.

Trabalhava dentro da “Casa-Grande” juntamente com as outras escravas adultas. Lavava, passava, limpava, varria.

Quase não lhe sobrava um tempinho pra brincar com a sua bruxinha de pano, feita às escondidas. Assim que podia, entretinha-se com o seu brinquedo. Se fosse apanhada à toa, era logo repreendida e tinha que voltar ao trabalho. Com os olhos baixos e a alma triste.

Um dia, tendo que acompanhar uma escrava adulta na limpeza do quarto da filha da Sinhá, ela ficou deslumbrada. Ah! Quantas bonecas! Pareciam de louça! (eram de porcelana). Tinham até cabelos! E cada vestido mais bonito que o outro! Teve medo de tocar em alguma e quebrar. Se isso acontecesse, o castigo seria certo e imediato. Contentou-se em olhar apenas. E pensou como teria sido feliz a menina, hoje moça, que brincou com aquelas bonitezas todas. Estavam ali tão perto e tão longe!

Mas Cabadil (era esse o nome pelo qual a chamavam) tinha imaginação. E com a sua bruxinha ou com espigas de milho, pedrinhas e pedaços de pau, ela inventava palácios e princesas, cavalos e soldados, como nas estórias contadas por sua tia Zefa, quando ela ainda estava na senzala.

O pai, a menina não conheceu e a mãe morrera quando ela nasceu. Por isso, a tia e o primo Minhé, que tinham sido vendidos, eram toda a família que ela conhecera.

Depois disso, ela nem sabia mais o destino deles. Desejava de todo coração, cheia de tristeza e mágoa, que aquela tia tivesse encontrado uma boa Sinhá. E o primo, que tivesse com um bom Sinhô.

Algum dia - pensava – eu hei de sair daqui e encontrar uma “Casa-Grande” diferente desta, com uma Sinhá e uma Sinhazinha bem boas pra mim.

A menina ouvia das outras escravas, que uns homens estudados vinham lutando, para que todos os escravos tivessem uma vida diferente e melhor do que aquela. Na verdade, pelejavam em favor da libertação de tanto sofrimento.

Para os senhores de escravos e os feitores, era como se o negro não sentisse qualquer dor. E, no entanto, além dos castigos físicos, eles eram também flagelados pela saudade de sua África. Era o banzo.

Como a Sinhá não podia capturar as divagações e os sonhos, mesmo sob cocorotes, pontapés e talvez até por isso mesmo, a escravinha se permitia sonhar. E nisso, ela se comprazia.

********

A filha da Sinhá, muito bem cuidada, moça feita, cada dia uma fita diferente nos cabelos negros, contrastando com a pele branca e rosada, vestidos de rendas e sedas finas, vindas da França, andava sempre com o nariz pra cima e o olhar altivo.

Se em algum momento, ela se dispunha a ir até a cozinha pra dar alguma ordem às escravas, estas, assim que a avistavam, já iam dizendo:

- Lá vem a Maria chêra- núvi !

E escondiam o riso por medo das punições.

Saía a passear no carro puxado a cavalos e conduzido pelo cocheiro da família. Visitava algumas amigas e voltava pra casa.

Esses passeios já estavam incomodando a Sinhá, pelos repetidos atrasos da filha.

Sempre arrogante com os mais humildes. Nem as idas à igreja, a tornavam mais humana.

Mas aquela postura orgulhosa tinha a ver com a natureza de seu pai, senhor prepotente com os escravos e empregados da sua fazenda de café.

A mãe compensava a sua condição de extrema submissão ao marido, sem a mínima contestação (fingia não conhecer as suas traições), tratando com distância e rigor aqueles mais simples e os que estavam sob suas ordens.

O irmão, que há pouco voltara pra casa, estivera estudando na capital, sem muito proveito. Não era dado aos livros. Gostava era de gastar o dinheiro que o pai mandava, em festas, amizades interesseiras, passeios e mulheres.

Mas isso foi até o Coronel Galdino Borges se aperceber da inutilidade de mantê-lo longe, com o fim de estudar. Ordenou que voltasse e lhe disse que dali em diante ele iria trabalhar junto à família.

Heitor dizia para a mãe que o que ele queria, era casar com uma moça rica, bem rica mesmo, pois do contrário nem se casaria. Se um dia ele não pudesse contar com o dinheiro do pai, teria o da mulher. Viver na pobreza , nunca !!!

********

A vida transcorria pachorrenta e Ana Maria, a Sinhazinha, se distraía com os bordados ou com a leitura de algum livro. Mas, com tudo às mãos, naqueles idos de 188..., o tédio era inevitável.

Até que um dia... Aquela moça tão senhora de si diante das escravas, tão cheia de saúde, começou a se mostrar diferente:

Já não saía como antes e se observava nela certa melancolia, assim como, uma preocupação que ela procurava disfarçar.

Quando à mesa para as refeições, mal podia olhar para os assados e os mingaus fumegantes. Corria, voltando depois, pálida, desfigurada e já nem queria comer.

Era o momento de saber o que se passava. E assim, depois de consulta ao médico da família, o pai severo e a mãe desgostosa, tiveram que enfrentar a notícia da chegada de um neto, sem genro.

Pedidos de segredo ao médico e completo silêncio dentro de casa sobre o assunto. Para o coronel Galdino, era fundamental saber quem era o pai. Teria que se resolver com ele. E não foi fácil, já que a moça não admitia revelar o nome do responsável por sua gravidez. Depois de muita insistência por parte dos pais, teve que dizer.

Mas o tal era casado; não poderia assumir o filho e o casamento com a Sinhazinha.

Mais aborrecimento e desespero para o coronel, que não poderia fazer justiça como queria. O sujeito já tinha deixado a cidade com a própria família. E ninguém sabia pra onde.

- Foi da noite pro dia! - diziam.

Passa-se o tempo e dentro de casa ninguém podia comentar nada sobre a gravidez da filha solteira da Sinhá.

Dia do parto. Chega o médico à sorrelfa, porque, na verdade, ninguém na região poderia saber do ocorrido, até que a família encontrasse uma saída que não a envergonhasse.

Mas eis que foi preciso mandar a escravinha até uma casa nas redondezas para algo que não poderia ficar pra depois. Contudo, as recomendações a respeito do nascimento da criança, foram severas:

-Nem um pio sobre o bebê, ouviu bem? É ir num pé e voltar no outro !!!!

E assim, saiu a menina para cumprir a tarefa. Ia até saltitante, aproveitando a ocasião de correr e pular, longe dos olhares austeros e as ordens ásperas da Sinhá.

Só que ao chegar ao seu destino, não se conteve e disse para a dona da casa, bem rapidinho mesmo:

- A fia da minha Sinhá pariu... (e pôs a mão sobre a boca, como para evitar a transgressão que estava a cometer) e ainda concluiu sussurrando:

- Psit! É macho!

Quando a notícia se espalhou e, tendo sido ela a primeira a divulgar, ainda que tenha sido advertida para que não o fizesse, coitada!

Depois dos cocorotes, dos bofetões e da surra com pontapés, encolhida num canto qualquer do quintal, a escravinha ainda pensava com revolta:

- Aarrr! Por que não guardei minha língua dentro da boca?

....CONTINUA

PARTE II

Quem espera sempre alcança

O tempo passando. O que não passava era a crueza de uma vida vazia de afeto.

Enquanto varria o quintal e cuidava da criação, Cabadil ia se imaginando num outro tipo de vida. Mas como? A que ela conhecia, era apenas aquela, quer dizer, trabalhar, aguentar surras, cocorotes, pontapés. E silenciar.

Ela não queria muita coisa não. Certamente gostaria de vestir lindos vestidos e não aqueles panos feios e encardidos. E na cabeça, ah! Aqueles chapéus enfeitados com fitas, que as sinhazinhas usavam, eram tão bonitos!

O silêncio da escravinha até que muitas vezes, não era por falta do que dizer. Era mesmo por falta de liberdade.

As sensações, os sonhos e os ideais estão dentro de todos os seres, escravos ou não, analfabetos ou não, pobres ou não. E como disse Clarice Lispector "até no capim vagabundo há desejo de sol."

Havia manhãs em que Cabadil se sentia invadida por uma alegria que não sabia explicar. Tudo lhe parecia mais completo. O céu mais azul, o canto dos passarinhos mais perfeito e o ar mais perfumado.

Outra hora, a tristeza aparecia, trazendo-a para aquela vidinha sem atrativo algum, cuja monotonia só era quebrada pelas grosserias e rudezas da Sinhá quando não era rigorosamente obedecida.

Nos momentos de euforia residia toda a força de que precisava para suportar as malvadezas que ela e os de sua raça sofriam também.

Naquela espécie de ausência da realidade opressora, surgia a Esperança, essa sim, trazendo-lhe o sonho e o vislumbre, ainda que de um jeito rústico, de outra maneira de viver.

O seu corpo estava se transformando, já não era mais aquela escravinha magricela, comprida, desengonçada e sem graça. Estava se tornando bastante atraente. As formas iam se definindo, a pele escura realçando sedutora maciez, o andar naturalmente elegante, prenunciando a figura de uma mulher em cuja presença,num futuro bem próximo, seria impossível não botar reparo.

Nem a própria mocinha tinha essa consciência, mas a verdade era que mesmo com aqueles tecidos enrolados à cabeça à moda das escravas e qualquer vestido, ela já começava a chamar atenção. Sobretudo da sua senhora.

A mulher madura possui uma intuição capaz de farejar mais depressa e bem antes dos outros, um perigo quando está para chegar.

A ojeriza da Sinhá ainda mais se exacerbara, quando por uma ou duas vezes, pareceu-lhe notar uns olhares oblíquos e furtivos de seu marido para a negrinha.

Embora soubesse que na condição de mulher naquele século XIX, ela pouco pudesse fazer, a não ser “vista grossa”, não lhe agradava de jeito nenhum, a presença de Cabadil naquela casa. Daria um jeito de mandá-la para bem longe.

Convém saber que o momento histórico era de muita agitação, pois a lei Áurea estava pra ser assinada. Com a libertação dos escravos, os fazendeiros perderiam a mão de obra e teriam que substituí-la pelos italianos que estavam para chegar.

A missão poderia ser cumprida pelo moleque Jeromo.

Buscou um momento adequado e ordenou que ele saísse bem cedo com a escravinha, sem que qualquer pessoa soubesse da tarefa. Ou ao voltar, teria cortada uma de suas orelhas para aprender a ouvir bem. Isso foi dito em voz baixa, mas com muita veemência.

O negrinho imaginou que estava diante da grande oportunidade de fugir pra sempre. Porém, logo, logo, entristeceu-se.

- Aquela peste da Sinhá ia mandá mi procurá até mi trazerem de volta dibaixo de munta paulada – pensou.

Concluiu que era melhor obedecer. Aos infelizes escravos, só cabia mesmo cumprir as vontades dos senhores.

E assim, foi ele chamar Cabadil para que ela recebesse as ordens, inclusive a de total silêncio acerca do que seria feito no dia seguinte.

********

O sol já ia alto quando os dois atravessaram os limites da fazenda. Avançaram uma boa estirada e então, fizeram uma parada pra abrir o farnel. Comeram e descansaram sob uma árvore.

O moleque Jeromo deveria deixá-la bem longe. Teriam, portanto, muito que andar ainda.

Mas eis que as nuvens claras de um dia ensolarado davam lugar a outras, pesadas e escuras. Era como se a noite estivesse chegando bem depressa. E um vento forte, de uma hora pra outra começara a soprar. Tinham que apertar o passo pra que encontrassem um abrigo, antes de alcançá-los a tempestade que se anunciava.

Caminharam apressadamente até que viram uma pequena luz adiante. Lá chegaram quando os primeiros pingos grossos da chuvarada caíam.

O homem e a mulher que ali moravam, deram pousada aos escravos só até o dia seguinte, pois achavam que eram fugitivos e ficaram com medo de um rastreio e o encalço por parte dos senhores.

De manhã, passada a chuva, puseram-se a caminho de novo e após algum tempo , o moleque anunciou a Cabadil que iria deixá-la no primeiro lugarejo que aparecesse. Ele precisava voltar.

- Jeromo, cê vai me dexá só?

- É que aquela cascavé pódi mandá o capataz mi panhá. E eu num quero perdê a orêia. Cê bem sábi cumo ela é. Cum raiva, parece até que tá parindo um uriço pelas orêia.

Assim, ela ficou num povoado distante, de casas bastante simples.

Conseguiu se acomodar com uma família humilde, em troca de trabalho.

Só não conseguia atinar com os motivos de sua expulsão tão esquisita da Casa-Grande.

Em todos os lugares falava-se muito na iminência da libertação dos escravos. Ouvia-se muito sobre as campanhas dos abolicionistas. Talvez por isso, não tenha sido difícil encontrar um lugar onde se alojar. Procurou trabalhar bastante, como de costume. Por gratidão e para agradar à dona Lena, mãe de Henrique, rapaz feito, cujos olhares cobiçosos, a escravinha nem percebia. Externamente era quase adulta, mas por dentro, menina.

De vez em quando, ela se despia para banhar-se, estando só, depois de lavar a roupa da casa no riacho. Foi aí que, um certo dia, Henrique, após esgueirar-se pelo mato, puxou, sem que ela visse, toda a sua roupa.

Ao sair da água, completamente descuidada, caminhou vagarosamente em busca das vestes, sob a admiração do rapaz, que, escondido, deliciava-se com a visão daquele corpo tão perfeito, ancas, peitos, sexo, cintura, braços e pernas, apoiando uma cabeça elegante e altiva.

Antes que ela se desse conta da ausência das roupas, sentiu-se puxada por uns braços fortes e de repente, caída no mato. Tentou gritar, mas seus gritos não saíam, impedida que estava a boca carnuda e sensual com os beijos quentes e voluptuosos do rapaz, que ela logo reconheceu. Aturdida, jamais sentira aquilo. Mas entendeu que algo muito especial estava acontecendo. Abandonou-se às carícias. E como era bom! Sua pele macia era para o jovem um convite aos carinhos, ao corpo no corpo. E assim foi.

Parece que, a partir daí, tornada mulher verdadeiramente e sequestrada pelo sentimento de amor, as inquietações pouco a pouco e do seu modo, começavam a emergir de uma alma tão singela.

Temia perder o que já ganhara.

********

Na fazenda, a Sinhá estava aliviada com a ausência de Cabadil.

Certa manhã, o Coronel resolveu passar na cozinha do casarão (raramente ele fazia tal coisa) e sem que a esposa presenciasse, ele perguntou às outras escravas onde estava Cabadil.

- Sabemo não, Coroné. Tem bem uns tempo que ela sumiu e num disse nada pra nóis. O muleque Jeromo também ficô uns dia sumido, já apareceu, mas num disse nada num sinhô.

Estava já arrependido por não ter logo se aproveitado da escravinha, assim que ela “botou peito”. Por aonde andaria aquela negrinha, que cada dia mais se tornava um pitéu? Como pudera ele ter protelado o instante de saborear a frescura daquele corpo? Por que se ocupara tanto com os problemas da fazenda a ponto de deixar passar o momento de transformar em mulher, a escravinha, propriedade sua?

Procurou na senzala e até nas plantações mandou o capataz olhar, mas nada! Chamou o moleque Jeromo, que já andava se escondendo dele, o Sinhô, posto que se sentia numa verdadeira encruzilhada.

Mas naquela circunstância, acabou por revelar o paradeiro da escravinha.

- Você vai comigo e com o capataz me mostrar o lugarejo. Avie, avie, chame o homem e pegue meu cavalo. Ande logo, moleque!

Com isso, a Sinhá não contava. E esperava castigar o escravo por não ter guardado o segredo, assim que ele voltasse.

Mas não houve tempo. Era o dia 13 de maio de 1888.Enquanto o marido estava a caminho, pensando recuperar a sua escravinha, as notícias da abolição pipocavam por toda parte. Negros e negras, pulando e cantando a liberdade.

As nuvens espessas e o vento sombrio das injustiças, malvadezas e humilhações eram convertidos agora em um dia iluminado, que muitos já nem ousavam esperar mais.

O moleque Jeromo procurou seu caminho, agora já sem medo.

Cabadil, livre e, ao mesmo tempo, presa ao amor de uma família, agora sua. Os filhos, certamente estavam por chegar.

E o Coronel Galdino Borges,ah! Ele que fosse agora esperar os italianos e pagar pelo trabalho deles, se quisesse !!!!

FIM

***************************************************************

Esther Lessa
Enviado por Esther Lessa em 22/02/2020
Reeditado em 27/02/2020
Código do texto: T6872025
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.