NÃO EXISTEM GÊNEROS E SIM PESSOAS

Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, estória antiga, década de 60 - "...ouvi contar".

LIBRIANA, signo de tendência artística e comportamento duplo. Justiça e amizade. Protetora extrema. Marido Aquariano a trocara por uma Capricorniana, agora "queria paz e sossego". --- Apartamento de terceiro andar, porta da frente, elevador, porta dos fundos, escadaria - entrada num saguão com elevador, "antigo" (ai, felicidade, não se usa mais.........) quarto de empregada vazio, apenas uma escrivaninha 'desquitada', um vade-mécum, duas vassouras e um papagaio plástico. --- Almoçava numa escola, jantava na outra. Precisava apenas de faxineira quinzenal, dia que estivesse em casa, para... orientar... porque desorientada ficava a dona da casa - uma pegava livros na estante e recolocava misturados por altura e na prateleira errada, em posições contrárias; outra limpava prateleiras dos diferentes cômodos e separava objetos diferentes apenas pela coincidência das cores (tudo branco, tudo azul...); outra entrava, ligava a tevê em som altíssimo de música, dançava o tempo todo, nem reparava líquidos derramados no chão que acabara de lavar. --- ELA Não brigou, não ofendeu, apenas não chamou mais. Não se dá satisfação ao trocar de mercado ou padaria.

Contato com uma agência. Indicaram um rapaz - alto, magro, músculos fortes. (Já se usava a palavra "perfil'?) Gostava do serviço doméstico: especialista em massa folhada, leite condensado e peixe; trocava lâmpadas; "dedo verde" para plantas em vasos; estudara um ano de enfermagem; amava ópera - só pedia um cantinho para dormir. Bom demais, tipo sonho de libertação. Já tempo de universalização do jeans, desenho da Pampulha na camiseta branca, duas malas enormes e mochila gorda. Emprego anterior? Veterinário comprovou - matara sem querer, por excesso de comida, o guloso diabético gato idoso de estimação da patroa sadia, porém idosa - ele chorava, a avozinha chorava... não aguentou e se demissionou. --- ELA comprou cama para o recém-chegado. --- Variantes de brigadeiro, uma com recheio de passa mergulhada em cachaça, pudins-tortas-pães versáteis. De uma planta aparentemente estéril, surgiram miudésimas flores brancas, aparentadas orquídeas perfeitas vistas apenas com uma lente manual. Cantarolava trechos de Lúcia de Lammemour. ELE mesmo fez uma prateleira e da mochila saíram Machado de Assis e alguns folhetos sobre Fellini e Bergman. Nos intervalos dela entre as escolas, ouvia muito sobre Ângela, "minha grande amiga, corajosa, atrevida e audaciosa nos momentos certos, nunca perdedora, sempre na defesa de 'fracos e espremidos' (piada!), grande professora e artista..." - de onde? quando? Interrogações em aberto.

Sim, ELE cumpria os horários estabelecidos, agora privacidade... Normalidade justa. --- Noite de sexta-feira. Possível rotina. ELA sentiu um cheiro forte de jasmim e abriu a porta da cozinha. Do quarto dele, saiu uma moça muito bonita, parecia modelo para desfile, cheirosa, maquiada, vestido estampadão na altura dos joelhos, botinhas curtas. Namorada, por certo. Ou irmã? Rosto muito parecido. No mesmo instante, porteiro veio com uma carta e... ELE simplesmente sumira do quartinho. ELA colocou o envelope sobre a cama, sentiu o mesmo cheiro de jasmim. Entendeu, respeitou, retirou-se, 'mãezinha-confusa-permissiva-compreensiva'; acalmou-se rapidamente.

Bom, como patroa entrara no quarto distraidamente destrancado, assustado ELE tentou sair do emprego. A frase dela foi objetiva: "Continue aqui, por favor."

Anos e anos de respeito mútuo. Sem perguntas.

Leitor quer saber o final? ELE assistiu palestras transcendentais numa academia de ioga e foi ser monge na distante Índia.

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NOTAS DO AUTOR:

DEDO VERDE - Significante símbolo para significado de bom plantador: logo nascem as flores.

TEORIA DA LIBERTAÇÃO - Leonardo Boff, dissidência gaúcha dentro do catolicismo - corrente teológica cristã, discussão de problemas sociais.

TEATRO RIVAL - Teatro e casa de shows, fundação em 22 de março de 1934, abertura com a comédia "Amor", de Oduvaldo Viana - tradição e excelência artística, foco de resistência do teatro de revista, ambiente de mesas/cadeiras para beber e beliscar. Herança familiar do empresário Américo Leal para filha Ângela e neta Leandra. Ma-ra-vi-lha!

F I M

Rubemar Alves
Enviado por Rubemar Alves em 22/02/2020
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