1142-HONRA AO MÉRITO - Auto-biográfico

No curso ginasial havia uma um sistema aparentemente complicado porém eficaz na apuração do mérito de cada estudante.

O Ginásio Paraisense (1) era administrado, quando nele cursei os quatro anos do ginasial, pelos Irmãos Lassalistas, educadores que mantinham também estabelecimentos em Lavras e Machado, Como educadores, havia altos e baixos. Como disciplinadores, eram mais eficazes.

Um sistema aparentemente complicado, mas eficaz na apuração de comportamento, frequência às aulas e aplicação aos estudos. Baseava-se na distribuição de “privilégios” sob a forma de pontos, representados por cartões pequenos medindo cinco por três centímetros e de diversas cores, cada qual com valor diferente.

Quando um aluno conseguia uma nota dez nas aulas ministradas pelos irmãos, um privilégio verde era dado ao inteligente discípulo. Esses cartões circulavam em maior quantidade, pois alguns irmãos eram liberais em dar nota máxima aos alunos. Havia os cartões cor de rosa (dois pontos), e os brancos, esses valendo três pontos e que eram distribuídos apenas pelo irmão-diretor, quando os alunos participavam de paradas ou outros atos importantes no ginásio.

Os professores leigos não participavam do sistema, o que era uma pena, pois nosso professor de português era mais do que liberal, dando notas 10 a torto e a direito.

E para que serviam esses privilégios?

Para pagar as faltas.

Se havia a premiação por atitudes positivas, havia a aplicação de faltas para os alunos que estavam na outra ponta: indisciplinados, não estudiosos, vadios, faltantes as aulas, etc.

Por exemplo: quem fizesse algo de muito grave (vandalismo dentro do ginásio, falta de respeito aos professores, dizer palavrões) era penalizado com três, quatro ou cinco faltas, de uma só vez, dependendo da gravidade do fato. Faltar às aulas sem justificativa fazia o aluno perder um ponto.

Cada classe tinha o irmão responsável, que coordenava o sistema de seus alunos. Os portadores de pontos guardavam ciosamente os tais privilégios, que, como se verá, tinha importante valor de trocas. Os alunos que cometiam faltas eram listados pelo Irmão responsável para um acerto de contas quinzenal. No final de cada quinzena acontecia tal acerto de contas. Os alunos de mau comportamento, cujas faltas estavam devidamente anotadas, podiam remir as faltas apresentando privilégios, tantos quantos fossem necessários para limpar o nome.

Duas vezes por mês recebíamos os boletins de aproveitamento e comportamento, com notas para Disciplina, Comportamento, Temas, Lições e Aplicação. Os boletins eram coloridos, cada cor significando uma escala de comportamento: Rosa: Excelente, 10 pontos em todos os itens; Verde: bom; pontos entre 7 e 9, variando de item por item; Amarelo: Sofrível: pontos de 6 a 4; e Branco, Mau, com pontos de 3 a 0.

Os boletins eram entregues na 2ª. e na 4ª. sexta feira do mês, devendo ser devolvidos, assinados pelo pai ou responsável no sábado (dia seguinte). Exceto os cartões brancos. Quem recebia cartão branco deveria comparecer na diretoria do ginásio, acompanhado pelo de pai, ou pela mãe ou, enfim, pelo responsável, para conversar com o diretor. Três cartões brancos era motivo para expulsão do ginásio.

Agora já dá pra evidenciar a importância dos privilégios. Pois quem ganhava privilégios por boas notas, principalmente, eram os alunos disciplinados, de bom comportamento, aplicados, e, portanto os privilégios não se faziam necessários para obter boletins rosa. Enquanto que os alunos que mais tinham faltas, por mau comportamento, indisciplina, faltas às aulas e outros itens ruins, eram os que mais precisavam de privilégios.

Havia negociações. Trocas de objetos, de livros, por privilégios. E até mesmo compra, a um cruzeiro cada. Não sei de onde aparecia tanta coisa ou tanto dinheiro para o comércio de privilégios.

Obtive sempre dinheiro extra para comprar bombons na cantina do ginásio. E consegui uma caneta tinteiro e três volumes de “As Mil e Uma Noites”, encadernados, um primor, em troca de privilégios que não precisava.

Os alunos que obtinham cartões rosa durante todo o ano eram agraciados, no fim do ano, com um lindo diploma de Honra ao Mérito, ambição dos alunos “Caxias”, e desprezado por aqueles que recebiam cartões verdes ou amarelos. Quando aos que recebiam cartões brancos, tais colegas nem se importavam com a existência de tal certificado de boa conduta.

Na primeira série, mantive minha coleção de cartões cor de rosa até a penúltima quinzena do ano. Mas na compensação da 1ª quinzena de novembro, fiz bagunça, tinha muitas faltas e não tinha privilégios suficientes para quitá-las. Na sexta feira, dia da compensação, ao apresentar meus privilégios, não tive o suficiente para pagar todas minhas faltas. Iria amargar um cartão verde, e perderia a possibilidade de ganhar o Diploma de Honra.

A negociação dos colegas com o Irmão Germano já estava adiantada, lá pela letra S (éramos chamados por ordem alfabética, e na presença de toda a classe), quando Anor, meu colega de carteira do lado direito, puxou-me pela manga da camisa.

— Que foi, Anor?

Entregando cinco p1rivilégios, que ele não pudera usar para se livrar de um cartão amarelo, disse:

— Tome prá você. Já estou com um amarelo mesmo, outro não vai fazer diferença;

— Não posso lhe pagar, meu dinheiro acabou.

— Estou lhe dando, não precisa pagar.

Peguei os privilégios, justamente o que precisava para zerar minha falta, levantei a mão para chamar atenção do Irmão Germano.

— O que é, numero sete?

— Já arranjei os cinco pontos para limpar minha ficha.

— Espere chegar ao final, da lista. Agora o 63 está sendo atendido.

O 63 era o Tião Pança. Fiquei aguardando que chegasse até o último, o Zoroastro.

— Pronto, sete. O que há?

— Aqui está os cinco pontos pra apagar minhas faltas.

Levei um susto quando o Irmão respondeu:

— “Aqui está”, não, fala certo: Aqui ESTÃO os pontos. Só não lhe dou outra falta porque já acertamos as contas. — e fechou a caderneta com os terríveis registros.

— Mas é que acabei de ganhar cinco pontos do Anor e...— —Como, GANHOU os pontos. É verdade, numero cinco?

Anor levantou-se respeitosamente e confirmou:

— Sim, Irmão, dei prá ele cinco pontos que não posso usar...

Abrindo a caderneta e pegando o lápis:

— Vamos lá.

Apressei-me em entregar-lhe os pontos. Ele pegou a borracha e apagou alguma coisa na caderneta.

— Pronto. Agora vai ter seu cartão rosa.

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ANOR THEODORO DE SOUZA era um estudante que se situava no meio da turma. Não estava entre os primeiros, mas não fazia parte dos últimos. Quieto, tranquilo, devia ter uns 13 anos quando eu tinha 11 anos. Tinha a visão apenas do olho direito; o olho esquerdo era coberto por uma membrana opaca. Não terminou o curso ginasial. Éramos colegas distanciados, nem posso dizer que éramos amigos.

Terminada a primeira série, nunca mais o vi. Deixei minha cidade para trabalhar e soube que alguns anos mais tarde, foi eleito por duas vezes (1963 a 1967 e 1967 a 1971) vereador da Câmara Municipal de São Sebastião do Paraíso.

Aqui registro, embora tardiamente, o meu reconhecimento por aquele ato. Com Anor reparto a dignidade que me foi conferida pelo diploma de HONRA AO MÉRITO.

(1) Paraisense: topônimo de São Sebastião do Paraíso, município do sudoeste de Minas Gerais.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 7 de fevereiro de 2020

Conto # 1142 da Série INFINITAS HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 15/02/2020
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