LITERATA

Tenho uma divertida AMIGA carioca geminiana.

Desde guriazinha cercada de livros. Nenhuma surpresa GRIMM e ANDERSEN antes de sabe ler: muitos livros de gravuras. O pai escutava notícias de guerra, falava, ELA não entendia nada, mas decorava fácil, ia se exibir para a vizinhança, "...os Aliados..."; pensava que o General Churchill era um gigantesco chuchu verde (segredo - a famosa fábrica de doces ao lado de casa recebia na madrugada barulhentos caminhões de chuchu para auxiliar no fabrico da marmelada)... teatralizava... Repetia o dramalhão choroso da primeiríssima novela de rádio, ELA não entendia nada, mas memorizava fácil, aprendiz da protagonista 'abandonadinha', coitada, muita choradeira, vizinhança novamente... teatralizava... Depois, rosto sério, esticava a mão para receber biscoitos. Ai de quem não desse (todos davam), sem espetáculo no dia seguinte.

Iam muito ao Jardim Botânico. Pegava na mão dos visitantes estranhos e oferecia serviços de "cicerone": "Dom João Regente criou a fábrica de pólvora, trouxe a Palma Mater para o Brasil e........." Devia imaginá-lo figura de rei como nas estorinhas.

Iam muito ao Jockey Club. Certamente, junto aos adultos desconhecidos também gritava os nomes dos cavalos ou dos jóqueis (ainda não seria o "Dá-lhe, Rigoni"?!) - só apostou uma única vez (em toda a vida); o nome do cavalo era Outono e ELA nascera no outono: premiada entre muitíssimos apostadores. A mãe sugeriu um vestido de loja granfina, porém... o que aconteceu mesmo foi longo tempo de balas, bombons e doces, talvez um brinquedo ou revistinhas. Havia dois artistas habituais frequentadores - Catalano (ator de rádio e teatro) e Silvino Neto (compositor, ator, uma coleção de diferentes vozes) - que se derretiam com os discursos posudos dela, dialogando com a personagem "Pimpinela". Reclamava sempre das pequenas xícaras aferventadas antes do cafezinho.

Atendia telefone na loja do pai "Quer ouvir uma estória?" A pessoa dizia: "Engano!" e desligava. Indignava-se: "Pai, eu não enganei ninguém."

Cresceu. Jardim de infância, danças com trajes de papel crepon. Escola primária, ELA criou um tal de jornal mural de apenas uma folha manuscrita, letra miudinha, na parede da sala - seriedades escolares, mas também às vezes pequenos temas imaginários: "Certa menina levantou ontem a saia na hora do recreio..." (Meninos de um lado, meninas de outro.) Ninguém levantara (fake news ao início da década de 50?), mas as companheiras se acusavam mutuamente: 'foi-você-eu-vi' - ELA imediatamente pacificava a discussão, diplomata à la Osvaldo Aranha, e convencia a se darem as mãos.

Décadas. Cursou UFRJ - professora de português em classes de quinta série (hoje sexto ano). Como ensinar redação? Inventou um método. Conto de fadas tradicional, falava-teatralizava... Alunos escolhiam uma das narrativas, pegavam personagens, trocavam por familiares e escreviam com entusiasmo a nova estorinha sob temas diferentes - nunca ninguém recusou.

Chegou tempo da aposentadoria. Na última escola, acompanhara tagarelices da diretora adjunta no intervalo entre dois turnos, sem alunos.

Trocou a máquina de escrever por um notebook. Salas diversas de bate-papo. Cansou de inventar nicks nada elucidativos. Passou a nomes femininos de A a Z. Conversa inúmeras vezes com as mesmas pessoas, versátil, não repetitiva, nunca identificada. De acordo com o interlocutor, a imaginação vai longe. Se por acaso é página erótica, por exemplo, cérebro oscila entre o possível e o extremamente fantasioso; nada com marcianos ou bichos falantes... Por vezes se excede, e - nos exageros - bota para correr, horrorizada, a pessoa que iniciara a conversação. Hoje, por acaso dia de São Valentim, 14 de fevereiro, uma estória bifurcada em quatro sofridos anos de amor, com dois lacrimosos abandonos, e ao final desesperada e censurável promiscuidade. As pessoas gostam dos relatos e no geral terminam com "Gostei de conhecer (???) você." Daria uma novelista de sucesso.

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LEIAM meus trabalhos "Estórias cariocas sem cronoloiga" (clubes de turfe), "Jardim Botânico" e "O que nunca se deve dizer a uma criança".

NOTAS DO AUTOR:

II GM - 1939/1945.

Radionovela - "Em busca da felicidade", 1941, Rádio Nacional, dois anos no ar.

F I M

Rubemar Alves
Enviado por Rubemar Alves em 15/02/2020
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