1135-O BOM CABRITO NÃO BERRA - Auto-biográfico

Sempre guardarei na memória a figura de Seu Julio Simaro: estatura mediana, muito magro, cabelos pretos e face cheia de rugas. Sempre de bem com a vida, brincalhão sem perder, contudo, a seriedade de um homem de negócios. Gostava de ditados ou aforismos, que aplicava constantemente, nas situações apropriadas. Também gostava de colocar apelidos, principalmente nos meninos e meninas que iam à loja.

Não tinha cuidado em carregar sacos de cereais, e estava constantemente com “jeito” nas costas. Então ia depressa se benzer com minha tia Carolina. Ela fazia uma benzeção com um rolo de linha e uma agulha, dizendo palavras que não se entendia muito bem. A benzeção funcionava muito bem para seu Julio.

Superatacadista

Era um bom negociante e sua política de preço baixo estava em comprar o mais barato possível. Tinha uma ideia ambiciosa e grandiosa: a criação de uma firma superatacadista que comprasse grandes quantidades de produtos diretamente das fábricas e distribuísse aos comerciantes que fossem sócios dessa organização. Não sabia, mas falava de uma cooperativa de comerciantes para fazer frente, nas compras, à casa Maria Italiana (ou casa Brasil, depois que o Brasil entrou na guerra). Entretanto, como as ideia era avançada demais para seu tempo, não vingou. Acredito que se tivesse mais capital ele faria sozinho a empresa atacadista.

Presépio de Natal

Ao se aproximar o Natal, em todos os anos, ele tomava as providências para montar o presépio. Ele e eu íamos a um local, na Mocoquinha, onde abundavam bambuais. Seu Julio levava serrote e facão, em pouco tempo tinha cortado meia dúzia de bambus verde, com folhas. Carregávamos para a sua residência, onde serviriam para formar a parte superior do presépio, como se fosse um céu de folhas verdes.

Em seguida, com dona Francisquinha, a esposa, e Terezinha, a filha, colocavam todos os figurantes, e os complementos, como arroz recém-brotado para imitar campos verdejantes, e outros enfeites.

As três pequenas imagens dos Reis Magos deviam ser movidas todos os dias, simulando a caminhada até a manjedoura, de tal forma que no dia 25 eles se encontrassem ao lado de Jesus recém-nascido.

Ceia de Natal.

Outra tradição rigorosamente cumprida na casa era a Ceia de Natal com cabrito assado. Convidados os parentes de Dona Francisquinha, alguns amigos de Seu Julio, e, naturalmente, eu.

O Cabrito

O cabrito era um capitulo a parte, pois seu Julio fazia questão de comprar um cabrito novo, vivo, que ele mesmo matava. A tarde da matança era um espetáculo, pois o animal tinha de ser amarrado pelas quatro patas, como se fosse crucificado, e então sangrado. Imediatamente a barriga era aberta para a extração de uma vesícula (a biliar?) que, se não fosse extraída com rapidez, estragava toda a carne.

O ato era consumado no quintal. O berreiro que o cabrito fazia ao ser amarrado e até a execução final, era intenso, alto e pungente. Seu Julio fazia com perícia o “sacrifício” do cabritinho, entremeando com os movimentos fatais frases como:

— Calma, cabritinho, calma. O bom cabrito não berra, portanto... seja bonzinho.

E o facão funcionava com perícia.

Depois de morto, havia de tirar o couro, as vísceras, cortar as patas e a cabeça, tudo com muita água, pois o sangue, apesar de aparado no ato da sangria, em uma vasilha, ainda teimava em sair pelas veias. Muita água corria, e era mesmo um serviço meio porco.

Dona Francisquinha não gostava de assistir e ficava tomando conta da loja enquanto Seu Julio procedia à matança, e eu o ajudava no que podia.

O preparo do cabrito era feito também pelo seu Julio, com temperos que ele manipulava com precisão. Assado durante muitas horas até à hora da ceia, ficava uma delicia.

De volta à ceia do Natal

E lá estava eu ao lado de Terezinha, que talvez tivesse a minha idade, entre os adultos A ceia começa pelas dez horas e à meia noite havia brinde, todo mundo já estava mais ou menos alegre.

Todos os anos eu e meu irmão devíamos acompanhar mamãe e papai à Missa do Galo, durante a qual invariavelmente dormíamos nos bancos da igreja.

Eu trocava alegremente aquela obrigação religiosa pela ceia de Natal na casa de Seu Julio e Dona Francisquinha, sentado ao lado de Terezinha.

Era, sim, com certeza, um Feliz Ntal. .

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 1 de novembro de 2019.

Conto # 1135 da Série INFINITAS HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 11/02/2020
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