Assomos e Quedas

Do som do carro vinha a voz de Beth Carvalho cantando Andança. Eu dirigia com o espírito impregnado pela paz de quem terminou uma faxina daquelas. De quem desceu as cadeiras de cima da mesa, pendurou uma nova samambaia na sala, passou o rodinho na pia, bebeu uma jarra de suco de espinafre com beterraba e gengibre, bateu a gilete no box e escovou os dentes três vezes seguidas. Os olhos cansados do dia diante de telas pesando ardidos nos faróis de que vem do lado de lá. O caminho de sempre: direita, reto, esquerda, direita, esquerda, reta, direita, esquerda, reta, esquerda: buzina. Lá dentro da casa a silhueta dela se erguendo do sofá, pegando coisas em cima da mesa, uma última olhadela na novela e outra última no espelho, conferir o batom, o cabelo, o até depois pro pai e pra mãe, a enxotada no cachorro bolinha. Eu espero, estalando dedos, conferindo o nariz e os olhos e os dentes no retrovisor, voltando a música do início. Destravo a porta. Ela entra. É uma coisa linda de ver. Uma criatura que a beleza singela do amanhecer daquele mesmo dia me encheu de querência agora contornada por tintas na boca e nos olhos e nas unhas com argolas penduradas nas orelhas e saia curta e decote, um demônio, reavivando a querência das horas idas, ressurgindo as perguntas de como é que um boçal como eu conseguiu. Um abraço. Um cheiro. Só uma bitoquinha pra não borrar a boca da minha companheira de filmes em fins de domingo. Um canecão de chopp escuro enquanto o lanche vem. Como é que foi seu dia, coisa e tal. Uma mão dada ou outra por cima da mesa no meio do bar. Dirigir até o mirante da cidade pra comer vendo as luzes das casas e postes dos poucos prédios, bebericando cerveja morna, sentindo um conhecido afeto crescendo: parece que nunca é o mesmo, que renasce e se renova diariamente, essa vontade de apertar o ser humano querido, de se fundir a seus olhos e morar e morrer dentro deles. Não me sinto muito bem. Alguns dias segurando um choro sem razão, sufocado por um desamparo espinhoso. Olhá-la e melhorar mas ao mesmo tempo ter a impressão de que a estou perdendo para alguma coisa ignota incrustada em mim. De estar ficando louco, de não ver possibilidade de continuar existindo, de não ter repulsa ao pensamento de me enforcar com um lençol na viga de concreto da garagem de casa. Não. Não. Recosto a cabeça em seu ombro. Os hálitos de molho de alho se misturando. A mão descendo entre as pernas. Deslizando coxas acima. Jogando calcinha pro lado de lá. Os vidros do carro subindo. A tensão subindo. O tesão subindo. Pessoas ao redor. Os dedos entram. Saem molhados. Desço. De cabeça. De boca. O ar começa a ficar viciado: cheiro de lanche e cio. De baba e fluído. Feromônios, almíscares, perfumes, gemidos e orgasmo e gozo ao pé de nossa senhora das graças, aquela que pisa na cobra, Gênesis 3:15, essas coisas bíblicas que me dão mal-estar, amém. Vamos pra casa. Passada no posto, pegar cerveja, encontrar conhecidos maçantes, evitá-los a todo custo, dirigir com mãos bobas pela noite estrelada de lua cheia da cidade do interior, estacionar de ré longe da parede. Vem cá. Atrás. Encostar no porta-malas empoeirado, pisar na pata do cachorro que grita, erguer a saia, afundar o rosto segurando com firmeza na cintura, abrir o zíper, cuspir na mão, entrar cego de Vontade, vontade, vontade, fricção e ritmo e mão na boca, portão aberto, argola caindo, tapas e esganaduras. Vamos entrar. Entramos. É o início de uma madrugada de sábado clara e fresca. Apoio os cotovelos na janela e fico a contemplar o passeio de nuvens sombrias que desenham formas de criaturas apocalípticas. Vem à tona novamente a sensação de impotência diante de tudo. Preciso de terapia? Ela deita na cama às minhas costas. Se retorcendo de cólica. É tanto que eu queria roubar pra mim essa dor, somar a essa minha que é espiritual e inominável. Só me silencio e me aninho entre seus braços e pernas e desmorono e águo de uma maneira impossível de conter, dividido entre o mergulho no incognoscível e na aflição da vergonha de ser homem barbado perto da meia-idade tendo crise existencial. Sou acolhido com o mesmo silêncio que ofereço. A tempestade passa após alguns minutos. Soluço e amo. É tanto conforto irradiando que esqueço o que não entendo. É como aquela surra de espada de São Jorge que levei quando criança. Que solucei com as pernas ardendo e dormi pesado. Eu vou dormindo pesado. É tanto cansaço. Vou caindo no sono com o pescoço em posição duvidosa. No lugar que sem saber eu sempre quis estar. Sendo sem medo com quem me é com coragem. Com o que significamos como amor. Em transbordante fluência. Cujo receio de não encontrar como cristalizar em palavras e de não ser suficiente cessa com gestos mínimos, tão significantes. Com o refrão de Andança na voz de Elis Regina grudado na cabeça, acho que durmo.

11/02/2020

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 11/02/2020
Reeditado em 11/02/2020
Código do texto: T6863750
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