Companheiro de vida
Luíza andava preocupada com os temores de Tony. Repetia, carinhosamente:
- Seu pai está bem. Por que a preocupação?
- Mas vai ficar mal um dia, vai morrer. Por isso já choro antecipado.
Tenho que consumir essa dor antecipadamente.
Numa de suas passagens pela casa paterna, reconhece o pai, barbado e com vergonha de desmanchar-se nos braços do filho. Preconceitos do seu tempo, mas acaba encontrando a senha que não arranha a masculinidade:
- Meu barbeiro morreu. Essa gente nova não sabe trabalhar.
Tony diz o que ele queria ouvir:
- Vou fazer sua barba, paizinho.
Ainda bem que não é tolo. Captou a mensagem. Pegou um espelhinho e dependurou-o num parafuso preso na parede, pensado para aquele fim. O pai acomodou-se numa cadeira velha e dirigiu o olhar cansado para sua própria imagem, esmaecida pela visão diminuída. Já estava no estágio de ver com os olhos da alma.
A barba grossa realmente necessitava de um trato. Porém, além do cuidado profissional, carecia de uma dose de carinho. Premonitoriamente, o filho deixa fluir o encanto por aquela figura alquebrada. Não sabia, mas seria a última vez que o tocaria, o beijaria e o estreitaria contra o seu coração. Várias vezes olhou no espelho aquela figura que lhe deu a vida. Era a despedida. Qualquer outra conversa era fugir do assunto, os dois sabíam, era questão de tempo, mas era tema proibido. Apertava sua cabeça, beijava seus cabelos espessos, apalpava as maçãs do rosto, enquanto o olhava no espelho, já sem as fronteiras entre pai e filho. Eram dois espíritos libertos da gravidade e dos pudores humanos.
Os tempos arremeteram como abelhas enfurecidas, ferindo gatos e lagartos, à revelia. Tony foi um deles. Seu pai descansou. Finalmente aquela pedra o atingia, acabou a angústia. De longe, recebeu a notícia, penteando os cabelos e imaginou seu rosto ainda jovem olhando-o de dentro do espelho. Estava a muitas léguas de distância. Não correu para encontrar o que já não existia neste plano. O que não mais existia fisicamente passara a estar em qualquer lugar, a qualquer hora. Talvez devesse pensar nos vivos, irmãos e irmãs, pois, lá aonde tinha ido seu pai, paredes não eram barreiras e a gravidade deixara de existir. Então, para que deslocar-se fisicamente, ciente de que não mais o encontraria nesta dimensão? Não sofreu como pensava. Com certeza, os anos de preparação tinham valido a pena. Iria sobreviver.
Luíza vem acalentá-lo. Ele responde:
- Não se preocupe, estou bem. Se quiser ficar, pode dormir aqui. Mas estou bem. Você já sabe, sofri tudo aos pouquinhos nos últimos vinte e cinco anos...
- Ainda bem.
Ainda bem que ela lhe dava razão. Aconchegou-se ao seu colo, sentiu o costumeiro perfume e, reconfortado, pensou na agenda do dia seguinte. Estava pronto a enfrentar o mundo de novo. Luíza era parte daquela energia.
Pois o tempo tudo cura, as queimadas das almas encontram sempre uma chuva de novas vidas, brotos por todo lado. Por exemplo, ali, brincando sozinho, ensimesmado, a sua nova paixão, que tem seis anos de idade. Diz a vizinha da frente, a benzedeira da família:
- Esse menino é seu pai redivivo. Magrinho e moreno, todo elástico, contorcionista. Pula e faz estripulias com os braços e pernas. Trança as pernas atrás do pescoço e se balança apoiando com as mãos. Que nem seu pai.
Não consegue deixar de sorrir, esse menino o consola, bálsamo de horta com celular na mão.
- Pai, carinho!
E vai, na hora de dormir, já de pijama, a uma maquininha imaginária situada na parede, onde coloca moedinhas invisíveis com as quais lhe paga antecipadamente pelo carinho.
Não acredita, mas seria tão bom se fosse isso mesmo: se ele é o Velho redivivo, encontramos a eternidade eternizada. Procura, disfarçadamente, descobrir no garotinho os traços ou cacoetes de seu pai.
A mãe reconforta o menino:
- Papai não vai embora. O vovô ...
A maturidade prematura responde aos seis anos:
- Papai vai morrer, mas só depois da outra Copa do Mundo. Ele é meu companheiro de vida. Vou chorar na hora certa.
- Hora de quê...?
Não respondeu. Algumas formiguinhas carregando uma companheira morta o distraem. Na rua, passa um realejo tocando música de Natal e vendendo picolé.
- Mãe, escutou? Vamos comprar... Calorão!
Desinteressou-se do féretro das saúvas, salivava pelo picolé.
Desceram as escadas do prédio, de mãos dadas. Deixaram-no só. Tony pensa que esse menino vai repetir a história. Vai chorar pelo pai, a conta-gotas, muito tempo antes para não sofrer tudo de uma só vez. Igual a ele.
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