O FIO DE ARIADNE ( A Inquisição na Idade Média)
O FIO DE ARIADNE
“ És acusado de de heresia e blasfêmia contra a Santa Madre Igreja Católica, conforme bula papal datada de ….. “
Assim começou meu asquerosos julgamento pela Suprema num salão semi escuro, acompanhado de outros acusados que logo seriam também - só Deus sabe !- julgados e condenados ao maior auto de fé realizado neste tribunal secular.
Me lembro que bem antes do meu julgamento, um velho envergando seus 65 anos foi acometido da pena de “erros de LEVI “ - crime de pequena importância- mas o ancião alegou velhice e memória fraca pelo fato de haver esquecido de jejuar e fazer abstinência na Véspera de São Bartolomeu; um outro , mais jovem, foi acusado de Luteranismo com base numa conversa casual com um estranho na estrada de Burgos. Não se pode confiar na própria sombra quando se quer falar da Inquisição nos reinos de Izabel de Castela e Fernando de Aragão .O jovem acusado suplicava perdão e prometia à Suprema sua conversão, - “ seria medo.” - pensei. Sendo considerado herético, segundo as leis canônicas, um herege era punido não só em sua pessoa, como em seus bens, que eram apreendidos e confiscados, o que tornava com que os tribunais e a monarquia se tornasse cada vez mais rica. Caso o herege não se arrependia, era “ entregue” ao braço secular e queimado, se se arrependia, reconciliava-se com a Igreja. Durante o período de “ graça”, isto é, trinta ou quarenta dias de mercê concedido pela inquisição , denunciava IN CAPUT ALIENUM e confessava sobre o conhecimento dos crimes de outros, ficando assim livre da prisão e do confisco. È o que o rapaz acabara de fazer com os lábios trêmulos. Ele não sabe que um judeu batizado não se diferencia de um gentio batizado. Logo que se convertesse seria humilhado e não aceito pelos judeus por seus atos e pelos cristãos que lhe considerariam um falso cristão, pois tornara-se um converso pra escapar à morte.
Do lado esquerdo a penumbra era mais espessa e parecia muito povoada, difícil identificar as formas que ali se acumulavam. Forçando um pouco meus olhos, pude reconhecer três crianças na espera. O que causa maior surpresa é que as crianças pagam pelos crimes dos pais e os acusados não são citados nem dados a conhecer, nem confrontados com os acusadores, não há publicação do rol das testemunhas . E o que é mais grave, em razão das investigações secretas, os acusados ficam privados de ouvir e falar livremente, pois em todas as cidades , vilas e aldeias existem pessoas empregadas para darem informações sobre o que se passa; como foi o caso do rapaz. Isso é considerado por alguns, como a mais degradante escravidão, igual à morte.
Ao centro se arrastava uma longa mesa, ao redor além do inquisidor-mor, um assessor, um alguacil ( condestável), um fiscal ( promotor) e vários subordinados necessários compunham a SUPREMA. Todos os seus membros eram nomeados pelo rei e o próprio Suprema sempre expedia ordens sem qualquer necessidade de voto do Inquisidor-mor. Encabeçando esta corja de lobos disfarçados em cordeiros no rebanho de Cristo, ninguém mais que... Torquemada. O demônio em pessoa !
Senti-me arrepiar quando chamaram-me pelo nome, aproximei devagar dos “santos padres” , sentei-me em um pequeno banco exposto ao centro do salão. Me sentia como um cristão atirado aos leões; o que era verdade.
- “ És acusado de heresias, blasfêmia contra a Santa Madre Igreja Católica, conforme bula pala datada de …....”
Tenho grandes suspeitas de que testemunharam falsamente contra mim, não me foi dado qualquer oportunidade para defender-me. Embora o inquisidor pudesse dar-me um advogado, não me daria qualquer um “ bom” e sim um sujeito que só faria o que o inquisidor desejasse, caso conseguisse um advogado que não fosse da inquisição seria acusado de alimentar falsa crença.
- “ …. abjurações de erros de VEHEMENTI...”
Acusam-me de erros de grande importância.
- Senhores ! - digo- Não digo isto, a favor dos malvados, mas com intuito de encontrar uma solução, que, parece-me seria colocar nesta província pessoas eminentes que, por sua vida exemplar e pelo ensino da doutrina, convertessem alguns e trouxessem outros de volta. Naturalmente alguns inquisidores são bons homens; sei porém, que não produzirão bons cristãos com fogo como outros os conseguiram com água.
Os inquisidores que estavam mais distantes fizeram sinais para que eu falasse mais alto, pois minha voz estava rouca e não podiam ouvir bem. Imediatamente eu disse: “ Estou rouco e é preferível falar baixo, deste modo, a fim de que os inquisidores não me ouçam. “ Não sei se isso ofendeu alguém !
- “ Devo ainda rejeitar como falso aquilo que me parece, em todos os pontos, tão claro, tão evidente, como a própria luz e a verdade?”. Perguntou o inquisidor-mor.
Quando só inquisidores se ressentem contra uma pessoa inocente recorrem a todos os expedientes e artifícios para facilitar a condenação, empregam-se juramentos e testemunhos falsos para tornar o acusado culpado, e sacrificam-se todas as leis para saciar as mais fantásticas perseguições.
- “ Senhores, embora pobre, sou antigo cristão e nada devo a ninguém. Não pretendia dizer que.... “ Não deram-me tempo de dizer mais nada, a mão pesada do inquisidor-mor, pertencente à laia de Torquemada desceu mais depressa que um aríete, condenando-me. Retirei-me silenciosamente daquele salão fétido e cheio de excrementos humanos que se escondem por trás de grande batinas.
Prisão perpétua por um ano... apareceu nos decretos da Inquisição.
A penumbra se aviva cada vez mais no corredor por onde percorro seguido pelo carcereiro. Sinto um pequeno calafrio transpassar meu corpo esquálido pela umidade das paredes de tijolos espessos. Vejo à frente uma entrada iluminada à luz de candeeiro, em aproximo deste brilho opaco sendo empurrado pelo carcereiro sob um olhar intimidador; noto que estou sendo obrigado a ver o que se encontra no interior dessa sala, viro-me de costas para perguntar o que significava aquilo, recebo a resposta feito chibatada: “ O espetáculo começa quando estrares!” Adentro-me. No final do corredor, desço passo a passo três degraus de madeiras alquebradas e carcomidas pelo tempo, que rangem sob meus pés. Do terceiro degrau saem em disparadas mil baratas, escaravelhos, centopeias, aranhas caranguejeiras e todos os tipos de invertebrados nunca dantes vistos por olhos estranhos. Realmente, este castelo é um habitat natural de insetos... a começar pelo salão de onde eu viera.
- MEUS DEUS !!!!!!
As únicas palavras fugidias dos meus lábios. Estupefato, meus olhos se revolucionam com tamanho espetáculo caliginoso. No interior deste cômodo sombrio pertencente ao tribunal eclesiástico estavam presentes todos os métodos de tortura, tais métodos da inquisição destinam-se a obter o mais alto grau de eficiência com o menor grau de publicidade.
Em Aragão, Valência, Maiorca e Catalunha, a inquisição progredira não pelo zelo à fé e sim pela fome financeira, segundo depoimentos de inimigos e rivais, muitos foram aprisionados sem provas reais, torturados e mortos em prisões seculares, tiram-lhes os bens e os entregam ao braço secular causando medo em toda gente.
Fizeram-me ver tais cenas como ameaça e intimidação. Usam processo inaturáveis e nocivos, não reconhecem nem Deus, nem justiça, matando, roubando e desrespeitando as meninas e as mulheres, para vergonha e grande escândalo da religião.
A câmara de terror da inquisição é cenário de requintes excepcionais de crueldade. Primeiramente, despe-se tantos os homens tal as mulheres, que são deixados completamente nus e... quase não tenho coragem e estômago para relatar o que vivencio. O material usado para difundir gritos que ecoam pelas paredes são: a “ mordaça” , usada para impedir que conversassem ou blasfemassem aos pálidos e assustados que aguardavam sua hora; o “ die de amigo”, garfo de ferro utilizado para manter a cabeça ereta, que uma garota nos seus dezessete anos usava; a “ garrucha” ( roldana), onde a vítima é içada pelos pulsos por meio de uma roldana presa ao teto, com pesos amarrados aos pés. O rapaz vai sendo levantado lentamente e depois, - para susto meu – subitamente deixam-no cair. Calculo que o efeito seja, esticar , e talvez, deslocar os braços e pernas. Mais para o fundo a “ tocaia”; amarraram a vítima numa armação, abriram-lhe a boca à força e introduziram pela garganta a toca ( pano de linho), que serve de conduto para a água que nela se derramava em um jarro; ao lado o “ pôtro”, a vítima estava sendo amarrada numa armação com cordas, que passaram em volta do corpo e dos membros, e o carrasco as apertava virando as extremidades. Cada volta, as cordas fincavam-se ao corpo já latejado.
Neste inferno dantesco,os gritos aumentam cada vez mais. Não podendo tomar qualquer atitude, já havia visto e sentido o suficiente para aterrorizar-me, supliquei para me retirar. O carcereiro concedeu o pedido, sem antes dar um pútrido sorriso no canto da boca.
Voltei a percorrer o úmido corredor que levará à cela onde permanecerei. “ È melhor andar com cuidado e permanecer prudente”. - pensei. Só então que entre as paredes de “ túnel” longitudinal notei que meu rosto umedecera, resultante de duas lágrimas.
Finalmente cheguei à minha cela, o carcereiro, também chamado de alcaide, abriu a masmorra com uma pesada chave, recomendou que me comportasse, que não fizesse barulho na cela, nem falasse alto, pois nas celas vizinhas poderia haver prisioneiros com intenção de delatar ouvindo-me. - “ Estranha recomendação para um carcereiro da inquisição!” - Ele se calou e mandou que entrasse. A porta pesada não cede facilmente, o que o obriga a forçá-la, logo entreabriu-se numa faixa estreita que mal dava passagem a um corpo magro.
Eu estava em uma pequena cela de cinco metros por três e vinte, havia uma janela com grades de ferros na parede, apenas uma pequena abertura donde podia se ver a praça principal. Ao lado, várias celas com prisioneiros de diversos recantos do país, talvez se preparando para um dos maiores auto de fé já realizados. È uma grande lástima que pareça que ninguém quer deixar essa pobre gente um lugar sobre a terra e eu gostaria de ter forças para me tornar defensor deles, tanto mais, que pode ser encontrada entre eles mais virtudes do que entre velhos cristãos e hidalgos. Os prisioneiros passarão dias, meses ou mesmo anos, sem saberem porque se encontram presos. Devem existir milhares de hereges neste país, pois existem, tribunais em Ciudad Real, Toledo, Valhadolid, Saragoça, Valência, Barcelona, Maiorca e outras que ainda não chegaram ao meu conhecimento.
“ Nada mais que um colchão de palha, estirado ao chão, me serviria de cama. Seria benevolência?” , pensei.
Dentre as cidades citadas, acredito que cada uma delas deve ter feito presença na sala de torturas centenas de acusados. O acusado é colocado IN CONSPECTU TORMENTORUM, ( quando à vista dos instrumentos de tortura provoca a confissão).Era o que pretendiam fazer comigo. Como as regras proíbem que qualquer pessoa seja torturada mais de uma vez, (como se eles seguissem as regras!) o fim de cada sessão de tortura é considerado apenas suspensão e a recusa de ratificação da confissão é enfrentada com a ameaça de “ continuar” a tortura. Essa é uma situação dos pobres coitados.
Considero-me culpado, pois a própria aceitação condicional de tudo que se passa já é falta grave. Minha luta contra esses assassinos é utópica e ilusória, pois nada posso fazer de prático. Ficar quieto é retardar a morte. E somos muitos. Estamos aqui, prisões seculares, tétricos desconhecidos, cada um na sua cela a caminho dos nosso respectivos destinos, que não deixariam jamais de ser paralelos, mas, subitamente acumpliciados na alma, de um fenômeno terrorífico e doloroso na carne.
Dia doze de fevereiro. Um domingo. Oito horas da manhã. Acordei com um barulho ensurdecedor de vozes vindo da praça, levantei-me e pude ver, detalhadamente, por entre as grades da janela, o início da Santa Cerimônia. A cerimônia era particular para os casos mais leves – auto particular- ou pública para os delitos graves – auto público – também conhecido como auto da fé. Sendo considerado delitos: judaizantes, mouriscos, blasfêmias, feitiçaria e heresia. Suas punições: reconciliação, sambenitos,confisco, encarceramento, exílio, flagelação, galés, execução pessoal ou em efígie e outros.
Na véspera da realização do auto da fé, tinha lugar uma procissão especial, conhecida como Procissão da Cruz Verde, durante a qual, familiares e outros carregavam a Cruz do Santo Ofício para o local da cerimônia.
Todos os que tinham reconciliado, cerca de 630 pessoas incluindo homens e mulheres, seguiram em procissão da Igreja de São Pedro Mártir na seguinte ordem: os homens formavam um grupo de cabeça descoberta e descalços, traziam nas mão velas apagadas; as mulheres formavam, também, um grupo , tinham a cabeça descoberta e o rosto exposto, descalças como os homens e com velas. Não havia limite para a idade das vitimas destinadas à fogueira, mulheres com oitenta e tantos anos e jovens ainda menores, eram tratados do mesmo modo que quaisquer outros hereges.
A desonra e o opróbrio sofriam vendo o grande numero de expectadores, e seguiam o caminho gritando, chorando e arrancando os cabelos, sem dúvida mais pela desonra que sofriam, que por qualquer ofensa cometida contra Deus. Seguiram assim, cheios de aflição, pelas ruas por onde costumava passar a procissão de Corpus Chisti, até chegarem à catedral. “ Tudo isso é tão absurdo, que, fossemos nós outra nação, chamar-nos-íamos bárbaros que se governam sem lei e sem Deus” - esbravejei . À porta do templo estavam dois capelães que fizeram o sinal da cruz na testa de cada um, dizendo: “ Recebei o sinal da cruz que negastes e perdestes por terdes sido enganado”. Eles entraram, depois no templo até chegarem a uma tribuna erigida junto ao portão, nela estava os padres inquisidores. Houve missa e foi feito um sermão . Após isso, levantou-se um notório e começou a chamar cada um pelo nome: “ Está X aí ?”. O penitente erguia vela e respondia sim. Logo, liam o que tinham feito como judaizantes. “ Meus Deus, eles não são um bando de ladrões e sim um reino!”. Terminado, concedeu-se a penitência, ordenaram-lhes que realizassem procissões durante as sextas-feiras, e teriam que jejuar naquelas seis sextas. Foram-lhes ordenados vários citações, dentre elas: que não deviam exercer função pública, não deviam transformarem-se em emprestadores de dinheiro, lojistas, ou ocupar qualquer cargo oficial, não deviam usar roupas coloridas, nem ouro nem pérola, etc, e se forem relapsos, isto é, se caíssem novamente no mesmo erro, ou desobedecessem as citações, seriam condenados à fogueira.
Da Igreja de Santa Maria, chegou-se outra procissão , a marcha era precedida por cem negociantes de carvão, todos armados de piques e mosquetes, essa gente fornecia a lenha com a qual os criminosos eram queimados. Depois vieram doze homens e mulheres com cordas no pescoço e tochas na mão, com chapéus de papelão de quase um metro de altura, nos quais seus crimes estavam escritos ou representados por diferentes maneiras. Seguiram-se cinquenta outros, também segurando tochas e envergando SAMBENITOS amarelos com uma grande cruz de Santo André de cor vermelha pintada na frente e nas costas. O SAMBENITO é uma indumentária de penitência em forma de um saco, uma veste amarela com uma ou duas cruzes em diagonal e os penitentes são obrigados a usá-la como sinal de infâmia durante um certo tempo ou por toda vida. Todos os sambenitos dos condenados vivos ou mortos, presentes ou ausentes, seriam colocados mais tarde nas igrejas a fim de possa haver perpétua lembrança da infâmia dos hereges e de seus descendentes, eles ali tremulariam ao vento como uma bandeira pátria.
Os que tinham mostrado sinais de arrependimento seriam estrangulados antes de queimados. Todos foram amordaçados para impedir que pronunciassem qualquer blasfêmia.
Os prisioneiros foragidos ou os que haviam morrido, em resumo, os hereges não presentes, fez-se a queima da efígie, figura de papelão representando-os. “ - Terra de barbáries, não de pode ter um pouco de cultura sem se achar com isso, cheio de heresias, de erros,de tara judaicas, sendo o silêncio o melhor negócio !”
Acenderam-se as chamas, e o mais brilhante dos fogos nos quais atormentam tantos infelizes cristãos, jamais agradou meus olhos. Fechei-os. Sentei-me no chão, tapei os ouvidos para não ouvir os gritos lancinantes de dor. Sinto cheiro desagradável de carne queimada.. o perfume da Santa Inquisição.
Neste momento, me encontro na situação de um pequeno inseto perante todo esse terror. A inquisição não passa de um livro mal escrito, hipócrita e venal, mais estéril que as areias da Líbia. O que esperará o amanhã? Desejo que no fundo haja uma revolução na Espanha demolindo seus pilares em que o tribunal inquisidor sempre se apoia. Eliminando sua predominância, elimina-se também as barreiras que limitam a sociedade fechada.
Lembro-me das palavras de um poeta, que não recordo o nome, escritas em pergaminhos escondidos em algum porão, longe dos olhos do tribunal.
“ Que maldito canalha!
Muchos murieron quemados,
y tanto gusto me daba
verlo arder, que dije,
atizándoles la lhama.
- Perros hereges, ministro
soy de la Inquisicion Santa !”
Deixo minha vida nas mãos de Deus
Antes de qualquer atitude, rabisco na parede da cela, com uma colher de ferro, palavras referindo-me aos presentes e futuros inquisidores:
“ CONVERTENTUR AD VESPERAM ET FAMEN PATIENTUR
UT CANES; ET CIRCUIBUNT CIVITATEM.
( Eles voltarão à noite e sofrerão fome como cães e perambularão pela cidade!)
Vejo um último filete de luz perpassar as grades formando uma policromia no chão. O medo alimenta meus delírios. Neste momento comungo comigo mesmo : “ No limiar do meu tempo, neste labirinto infernal, minha liberdade suplica por um fio de Ariadne. Amem!”.
Com estas palavras em meus pensamentos, fecho os olhos para tentar o impossível: adormecer.
( Menotti Orlandi)