Um tempo que não volta
Adentrando mansamente à sala principal da Clínica de Repouso para visitar Marlí, sentí um aroma de talco, o mesmo talco que era usado pela minha avó. Era Tabu o seu nome e causou-me estranheza tomar conhecimento de que ainda era fabricado. O aroma era suave e contrastava com o lugar e com a pessoa que significou tanto para a minha família e tão pouco foi reconhecida antes de alí chegar.
Marlí cresceu e ficou na casa da minha avó até o seu falecimento. Viu nascer todos os seus filhos e, por consequência, mimou todos os seus netos. Chegou a amparar nove bisnetos, com os quais parecia ter estreitado mais e mais os seus laços.]
Mas agora ela estava alí, com olhar distante embalada por uma cadeira que balançava sempre no mesmo lugar. O seu mundo, após ser diagnosticada com demência, estreitou-se e não passava daquela Casa de Repouso que, por mais que a administração tomasse cuidado, tinha cheiro de velho e era amontoada de velhos. Para que mudar a palavra para idosos se alí eles tinham envelhecido e, na maioria dos casos, estavam sozinhos no mundo? Por que enganar-me se eu sabia exatamente o porquê das pessoas estarem alí?
Marlí foi uma das melhores pessoas que conhecí. Amealhou amor em toda a sua existência, abdicou de pequenos prazeres para servir a nossa família, abdicou de amores. Como assim de amores? Sempre que era chegado o momento de uma união ela sentenciava em alto e bom som que estava sendo pressionada, que precisava de mais tempo para pensar. E assim lá se iam seus amores e não mais retornavam. Deixou o tempo passar até na aparência. Não aderiu aos sinais dos tempos - continuava usando “anáguas” com o pretexto de que os seus vestidos podiam ficar transparentes sob o reflexo do sol, usava “chapa”, alegando que implante dentário era coisa de rico e, pasmem: continuava sentenciando às meninas da família que, quando estavam menstruadas não deveriam lavar a cabeça, sob pena de ficarem loucas. Além disso, toda e qualquer ingestão de melancia com leite levava a óbito. Suas manias eram “perversas”.
Marlí nunca usou um biquíni, um brinco, um baton ou uma calça comprida. Suas roupas eram largas para poder mover-se a contento para servir. Seus cabelos eram incrivelmente lisos e pesados, mas estavam sempre amorfalhados pelas toucas que usava diariamente. Tinha a idade da minha mãe mas nunca pareceu assim. Os seus cuidados eram sempre conosco e com ela o tempo se encarregaria.
Certa vez confidenciou-me que gostaria de visitar a sua família no norte. Por vários meses incentivei-a para que cumprisse a sua vontade mas, invariavelmente, ela comentava que estava sem tempo, que a visita seria feita no próximo ano ... e assim os anos foram passando.
Por outro lado, a família sempre esteve envolvida demais para dedicar um tempo à Marlí. Era como se ela estivesse lá para servir e jamais para ser servida. Lembro-me de que na minha formatura a sua presença no Salão de Atos causou-me grande emoção, mas por pouco tempo, pois ela determinou para sí que precisava sair mais cedo para supervisionar a pequena festa que meus pais organizaram em um simples recanto da cidade. Ela própria se determinava, se enchia de responsabilidades como se nada pudesse dar certo se não passasse por seus olhos.
Marlí nunca usou o “seu” tempo a seu favor. Nunca a ví sentada para uma breve pausa. Nunca a ví deitada na enorme rede da varanda da casa da minha avó. Suas pernas grossas eram firmes de tanto caminhar de um lado para outro tentando organizar a vida atribulada da nossa família, que era grande e um tanto complexa. As suas responsabilidade eram para com a minha avó, mas ela adotou os seus cinco filhos e suas famílias. Não era raro encontrá-la fazendo várias baldeações de ônibus para chegar no destino que bem que poderia ser um lar recém desfeito por uma traição ou um boteco de esquina para aconselhar um ou outro primo sobre a melhor forma de abordar os pais sobre a sua descoberta sexual.
Marlí era analfabeta nas palavras mas PHd em sentimentos. Com um rápido olhar entendia as nossas necessidades, supria os nossos desejos, mostrava-nos o norte.
Ainda na Sala Principal hesitei em dar mais uns passos até chegar naquele olhar que de rápido passou a único. O tempo travou na nossa Marlí uma batalha perdida. O tempo que ela nunca tirou para sí abocanhou-a por completo e agora, tendo todo o tempo do mundo, nem mais sabe o que significa o maior bem que todos temos na vida saudável. Para ela o tempo se passa entre o olhar fixo em uma corticeira hoje e o mesmo olhar amanhã, exceção ao horário do café da tarde, quando move o olhar para o homem que passou a amar. Encontrou-o lá mesmo e, com ele aprendeu que também pode receber carinho. No horário determinado ela é colocada ao seu lado e, sob as suas pernas, ele deposita uma boneca de pano. Certamente ele percebeu com clareza a demência de Marlí e conquistou-a com uma “filha”. Naqueles momentos das tardes ela demonstra felicidade. Depois é levada para a mesma cadeira de balanço, em frente à mesma janela e aguarda que o seu tempo finde neste plano.
Exercício de Laboratório de Escrita Criativa
PRAGMATHA - "Tempo"
03/02/2020