A Medusa
Cabelos seus em prumo alto, crespos, muito crespos e soltos, rebeldia orgulhosa, corpo robusto de coxas e braços de marfim. O sorriso metálico é tímido e os olhos complementam um esgar charmoso. A Medusa ginga pelas calçadas esquerdas da Universidade daqui.
A primeira vítima é o guardinha pacato e meio gordo da guarita de entrada do Campus. A Medusa no seu sem saber não vê que é cruel. O reflexo no vidro do carro preto e fosco lança para o guardinha da guarita a imagem maciça, sólida e quente da Medusa. Língua estalada, franzir de pestanas, arrepio, baixo ventre.
Mais adiante vai o professor de uma matéria qualquer que, ante a visão da Medusa, estanca seu curso autômato. Seu destilar de ensinamentos inúteis aos estudantes periféricos. Está ferido pela forma branca, emoldurada de ossos, carnes perfumosas e cabelos fluentes da Medusa. Chega a ser patético em sua derrota. Não esboça resistência. Medusa firme em seu caminhar sobre o cimento e a mistura congelada de pedra.
O terceiro é um pouco mais relutante: tenta dizer algumas palavras ante o fim. Chega a sentir de muito perto o perfume secreto da Medusa. Um cheiro acre de pescoço relutante de beijos, um seu quê sem graça de se entregar ao sexo. Medusa é desajeitada nas inciativas. Precisa de direcionamentos. Retém, para o dia seguinte, esses odores seus particulares. Odores que ficam na pele, na rua, na saia, na sanha. O odor é especialmente besuntado nos seus cabelos de arrepio. Seus cabelos são medonhos, são belos e rudes como o desespero dos gládios, das arenas e dos glúteos violados. A noite é tão sólida em pulsos e descargas para a Medusa. O terceiro desfalece em resolução, enfim.
Na carona que consegue para chegar mais rápida ao seu setor de Mestrado, a Medusa, sem esforço entra no carro apertado e ouve o estremecer da morte na primeira marcha. A subida é custosa em asfalto roxo e cinza das aleias. O estudante, jovem incauto ouve um rock psicodélico, um Syd Barret pré-floydiano decadente, um homem vegetal. Na segunda marcha, a Medusa já está soberana na posse do som, da imagem e do rememorar de um LSD desnecessário. A Medusa não necessita de subterfúgios sintéticos lisérgicos cerebrais. Não existe cérebro. Tudo é sentido em sua presença de enlevo intrínseco, latente, animal. Na terceira marcha, o final.
Quando desce do carro, um oco de artifícios sugados e palmas exploratórias, a Medusa se sente bem. Cônscia de seu poder, ela retoca a juba inflada, ajusta a roupa esportiva de corridas atléticas e retoma o caminho da academia, uma acrópole do saber e despreparo para o futuro. Há um rastro de desolação no seu jardim de sal, há uma promessa de eternidade. Medusa eterna do despertar de ânsias, mulher jovem velha saias e nunca calça jeans. Seus perfumes violentos dispersos, coxas, imensas ancas. Uma solidão imemorial assalta seu entorno, solidão das fibras das árvores, dos troncos bulbosos de seus dedos e mordaça. Um febril reavivar das coisas debaixo da pele e da gravidade de suas vítimas tombadas pelo caminho insólito das Faculdades: mentes, corpos e ambiências necessárias neste nosso plano de matéria e fuga. Não há fuga para a presença de Medusa. Mais uma horda de moços calmos, absortos, distraídos, ingênuos até, é aplacada pelo plasmar físico da silhueta imemorial da Medusa. Cabelos, melenas custosas dela desprendem venenos, poeira, pólen e mel de sua boca difusa, lábio e vingança nas palavras poucas de sua língua certeira. Todos fulminados no jardim das estátuas, marmóreos elementos de âmbar e translucidez. Hoje já basta.
A Medusa, relaxada agora, senta-se na relva de prata seca e esconde o outono por debaixo de seu vestido de verde e cicatrizes no ventre. Cicatrizes nos braços grossos também existem, músculos de flexões, férrea vontade precisa. Sabe que a forja é ininterrupta e o fogo alimenta o malho. Cavernas de Platão sobre os ombros onde as melenas serpenteiam no baile dos suores e peles suas. A Medusa é a mulher mais forte em frente ao espelho do céu que reflete no lago artificial projetado pelos homens daqui. Onde a luz é feita de cegueira. Onde a luz é inútil. Indefensável.