Escolhas

Amélia tomou um gole de café e conferiu as unhas das mãos, pintadas num tom bege, quase indistinguível da cor da própria pele, enquanto Carminha, sua vizinha, terminava o serviço em seus pés. Deixou o copo americano de lado, com uma borra de café e açúcar não dissolvido e se recostou na cadeira.

Quando pedicure arrancou a unha encravada em seu dedão, Amélia mordeu os lábios para segurar um palavrão, e engoliu a dor a seco.

- Desculpa Amélia. A unha estava enterrada na carne. – Carminha murmurou.

Amélia olhou para o dedão e viu uma gota de sangue se formar na junção entre a unha e a carne, que Carminha prontamente estancou com um algodão.

- Tá tudo bem, minha filha. Sangrar é a sina de quem tem carne.

- Bonito isso.

- Foi o pastor que disse no culto ontem.

- É bonito.

Amélia olhou para o copo vazio e encheu com um pouco mais de café. Tomou de um gole só e ficou com o copo entre os dedos.

- A vontade que eu tinha agora era fumar um cigarro. Pense num vício difícil de deixar de lado... – Falou.

- Nunca consegui deixar de fumar. – Respondeu Carminha, tentando focar no serviço nos pés da outra.

- É um pecado. Todo vício é pecado. Mas a carne vive pra pecar.

Carminha concordou com a cabeça, para não entrar em discussão com Amélia. Afinal, sabia que esse tipo de assunto era sempre difícil de conversar com ela.

Foi então que Amélia enrijeceu o corpo na cadeira e apontou para a rua.

- Olha pra isso. Que perversão. Que podridão.

- O quê, Amélia? – Perguntou Carminha, antes de olhar para o que ela apontava.

Descia a rua uma mulher de meia idade e um transexual. As duas iam sorrindo e conversando alegremente.

- Rodrigo e Inalda. O pederasta e a Messalina. Recife tá pior que Sodoma e Gomorra, minha filha. Jesus devia voltar pra mandar esse povo todo pra o inferno. Fogo e enxofre era pouco pra esse povo.

- Rodriga eu até entendo que você pense assim. Mas Inalda? O que ela tem?

- O nome dele é Rodrigo! O nome que o pai dele deu. Não tem esse negócio de Rodriga. Não se muda de nome. Não se muda de sexo. Deus criou o homem e a mulher e pronto.

- Tudo bem... tudo bem. – Carminha murmurou constrangida.

- E Inalda? Inalda é uma separada. Mal deixou o marido e já está com um e com outro. Dizem até que sai com menor de idade.

- Mas ela separou por que o marido batia nela, Amélia.

- Se batia é por que ela bem merecia. Deus fez a mulher para estar em casa e servir e obedecer ao homem. E não para estar andando pela rua e passando de mão em mão.

- Mas se ela era infeliz... Qual era o sentido de estar junta?

- Minha filha, assim é o casamento. Nem sempre é um mar de rosas. Sou infeliz, mas tenho marido. O que Deus uniu ninguém separa. Casei de branco. Casei virgem. Foi uma escolha que eu fiz e que vou carregar comigo até que Jesus me leve ou leve meu marido.

Rodriga e Inalda viraram a esquina e Amélia voltou a se encostar na cadeira, aparentemente mais calma.

Carminha começou a pintar as unhas dos pés de Amélia e as duas se mantiveram em silêncio durante todo o processo. Ao terminar, Carminha juntou todos os instrumentos dentro de uma bolsinha rosa e falou.

- Pronto. Vê como ficou.

Amélia olhou para os pés e pareceu satisfeita. Tirou cinquenta reais e entregou nas mãos de Carminha.

- Obrigada querida.

Amélia se levantou e se despediu. Desceu a rua e foi andando até sua casa.

Na pracinha que ficava bem de frente ao seu portão, deu de cara com Inalda e Rodriga fumando, sentadas num banco azul.

Ignorou as duas e procurou as chaves para abrir o portão. Foi quando Rodriga soltou uma gargalhada afetada, como se tivesse ouvido uma piada.

Amélia se virou e foi até as duas, pisando duro no chão.

- Eu não quero essa papagaida na frente da minha casa. Vão procurar o que fazer! – Disse, num tom irritado.

Rodriga se levantou e ajeitou o short antes de encará-la.

- Olhe pra mim, minha filha. Quem não tem o que fazer é tu, que vive se metendo na vida dos outros... A rua é pública e as incomodadas que se mudem. Vá pra dentro ouvir os seus louvores vá...

- Morda sua língua pra falar comigo, seu afeminado dos cachorros. Se você não respeita o nome que seu pai lhe deu, pelo menos respeite a memória dele. O coitado deve estar se tremendo dentro da cova uma hora dessas.

Rodriga apontou o dedo na direção da cara de Amélia e falou com uma calma sinistra, que fez com que Inalda se levantasse temendo o pior.

- Quem é tu pra falar do meu pai? Quem é tu?

- Você sabe muito bem que eu conheci seu pai desde criança. A gente cresceu junto, Rodrigo. E eu sei que ele estaria morto de desgosto se lhe visse assim, vestido de mulher, rebolando pela rua.

Rodriga mordeu os lábios, andou lentamente em direção a Amélia.

- Meu nome é Rodriga, minha senhora. Rodriga. E é muito em homenagem ao meu pai que eu uso esse nome. E ele nunca teria vergonha de mim, por que ele sempre soube o que eu sou. Eu sou e sempre fui mulher. Não importa que eu tenha uma rola no meio das minhas pernas. Ele nunca se importou. Meu pai morreu sabendo. E morreu me abraçando. E não é tu, uma rapariga velha, uma nojenta amargurada que vive cheirando peido de pastor, que vai dizer o que eu sou. A senhora quer fingir que ninguém lembra, mas todo mundo sabe quem tu eras antes de entrar pra igreja, e antes de casar com esse velho do pau murcho que é o teu marido.

Amélia deu um gritinho, como se tivessem enfiado uma faca no meio das suas costelas e pensou acertar um tapa na cara de Rodriga, mas se conteve, virou as costas e entrou em casa.

Amélia bateu o portão atrás de si e atravessou o quintal segurando as lágrimas. O marido estava na sala, cochilando diante da televisão ligada com uma lata de cerveja vazia repousando em cima de sua enorme barriga, e sequer percebera sua entrada.

Ela correu até o quarto e sentou-se na cama, aos prantos.

Pegou a bíblia no colo e foi até os salmos, tentando achar alguma passagem que lhe acalmasse o coração. Mas não havia nenhuma... Nenhuma palavra ali que lhe confortasse.

Deixou a bíblia de lado e correu até o armário, e começou a mexer caixas cheias de álbuns de fotografias. Tirou todos do caminho e se agarrou com o último e mais antigo volume.

Folheou as páginas e examinou as fotos. Sentiu-se velha. Cansada. E teve inveja do tempo em que tinha tirado aquelas fotos. Ela era bonita. Era feliz.

Procurou na última página, uma foto em particular, que sabia que estaria ali. Tirou a foto de dentro da proteção do livro e olhou mais de perto. Ela estava lá, abraçada com um homem. Os dois estavam sorrindo. E por um instante ela também sorriu com a lembrança. Mas logo as lágrimas voltaram aos seus olhos.

Virou a foto e viu a dedicatória, escrita em caneta, com uma caligrafia difícil de entender, mas que ela reconheceria em qualquer lugar.

“Para o amor da minha vida”

Rodrigo, 21 de Maio de 1990.

Amélia enxugou as lágrimas e recolocou a foto dentro do livro. Guardou tudo dentro do armário, como se nada tivesse acontecido.

Se recompôs, olhou-se no espelho do banheiro e começou a se despir.

Abriu o chuveiro e jogou-se debaixo da água.

Seu pensamento voou para longe quando ela se tocou, por entre as pernas. Por um instante ela voltou até o tempo daquela fotografia amarelada. Lembrou-se dos sorrisos, lembrou-se dos beijos, lembrou-se enfim, do jeito tão particular que ele tinha de lhe tocar.

Chorou no final, por sua vida, e pela saudade que sentia dele.

Chorou e soluçou sozinha, por suas escolhas e por tudo o que tinha deixado para trás.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 27/01/2020
Reeditado em 31/07/2020
Código do texto: T6851799
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