Mãe e filho
— Estou perdido.
Esse primeiro pensamento veio à tona com tanta intensidade que precisou ser dito em voz alta. Talvez achasse que assim ele se dissolveria no ar e o vento o levasse a outra mente em desespero. Mas não, ele ficou ali como um fantasma convicto em se vingar por ter sido expelido. Se houvesse outra pessoa ali quem sabe tal convicção fosse absorvida por ouvidos atentos e preocupados. Leonardo, porém, quase nunca podia contar com essa atenção humana tão comum a quem é no mínimo popular ou simpático. Sua única companhia era mesmo seu cachorro, um labrador de sete anos que a mãe ganhara, cuja única preocupação era sair para passear e aproveitar para ser acariciado por criancinhas já que o dono não o fazia nunca. Leonardo passava a maior parte do dia na empresa em que trabalhava como técnico de informática. Nada que precisasse falar muito. Sempre prático, direto, concreto e seco. Todos os dias era de casa para o trabalho e vice-versa, indo e vindo por um caminho curto e sem muita movimentação.
Morava perto do trabalho, no centro da cidade, na casa deixada pela mãe, D. Lúcia, mulher sorridente e ativa que vivia com ele antes de falecer por conta de uma pneumonia mal curada. Tal contraste entre mãe e filho já era claro para os vizinhos desde que Leonardo era pequeno. Não saía de casa para brincar com outras crianças e se isolava quando havia festas na rua, enquanto a mãe era toda solícita à vizinhança em qualquer situação. Chegava mesmo a se comprometer em cuidar dos filhos de outras mães quando estas precisavam sair e deixava Leonardo em casa vendo TV ou jogando vídeo game, perguntando-lhe sem muita insistência se ele queria acompanhá-la, mas ele sempre recusava. Não achava divertido estar com a mãe e outros pirralhos que não eram seus irmãos. Na verdade queria momentos de lazer só com ela. Quando chegou aos 12 ou 13 anos, tomou a liberdade de falar-lhe direta e abertamente sobre isso, dando a ideia de irem ao cinema ou parque de diversões, mas ela se esquivava e quando ele insistia ao menos um pouco ela dizia:
— Deixa disso menino, parece um grude.
Ele suspirava e voltava para o seu próprio mundo, seu quarto, sua cama. Queria adentrar cada vez mais naquele espaço, naquela bolha dependente do vento que não lhe dava direção certa, podendo se juntar a outras bolhas ou bater num espinho e sumir. A mãe não estava certa, estava? Claro que estava sempre perto dela, em casa, mas não sentia sua presença, não sentia a mãe. Não que estivesse romantizando tal relação, sequer sabia o que era romance. Mas sabia que precisava da proximidade além do visual, precisava que a mãe o entendesse, desvendasse-o, compreendesse antes mesmo que ele falasse. Mas falasse o que? Isso não sabia. E assim entrava num conflito, sobre de quem era a responsabilidade por quebrar aquele gelo, aquela barreira que ele não via entre outras mães e filhos. Que D. Lúcia o amasse, não havia dúvidas, mas para Leonardo é o amor que se espera de alguém que coloca outro ser no mundo.
Na escola, lugar onde muitos jovens assumem personalidades diferentes da vida em casa, Leonardo mantinha a mesma. Não havia grupos em que pudesse se encaixar, nem procurava. Nem o insultavam, ao menos, por ser tão tacanho, pois não era nem visto. Ao invés de se camuflar ele preferia sumir. E aos poucos sumiu mesmo.
Prestes a chegar na vida adulta optou por trabalhar sem muito envolvimento com o público, já que não havia sido preparado para isso. Fez um curso técnico durante dois anos e agarrou a primeira oportunidade de emprego que apareceu, recebendo um salário mínimo que poderia dar conta de sua vida básica, mesmo, após um ano, sua mãe morrer e deixá-lo sozinho, de fato. Quando tal perda aconteceu, Leonardo sentiu uma tristeza vaga e inexpressiva comparada à da vizinhança toda que chorou e soluçou por nunca mais poderem gozar dos préstimos daquela senhora tão maternal. O filho ainda aturou alguns olhares críticos e surpresos. Que poderia fazer? Não durou muito tempo e se tornou invisível para aquelas pessoas também.
Na continuidade àquela vida cada vez mais ilhada, o trabalho preenchia um terço do seu dia a dia imutável. Poucas vezes era chamado a participar de confraternizações, eventos ou até mesmo uma cervejinha após o expediente. Para Leonardo eles só estavam sendo educados e eles se convenciam que suas negativas fossem de motivo religioso ou simplesmente por ser muito focado. Assim, as tentativas de incluí-lo naquele meio extinguiram-se.
Leonardo nunca procurou a solidão embora nunca tenha fugido dela. Até o dia em que, voltando para casa, notou um casal saindo de uma loja de roupas, rindo e esbarrando em outras pessoas. A cena não era incomum, mas chegava a ser contagiante incitando sua curiosidade sobre o motivo de tanta pilhéria. Só que, observando mais atentamente, percebeu que não se tratava de um casal e sim de uma mãe e um filho. Não trocavam afetos de amantes. Ela o olhava nos olhos rindo de algo dito entre os dois. Entre os dois. Ela o envolvia num dos braços, enquanto andavam, num ar de superioridade protetora e ao mesmo tempo confortável. Envolvia-o no seu mundo, na sua bolha. Mas ele não estava preso. Era como um novelo de lã se desenrolando após cair, com ela segurando apenas por uma ponta.
Leonardo ficou atônito. Não esperava aquele gatilho que em instantes o levou ao passado, presente e futuro ao mesmo tempo. Paralisado na rua, não conseguia organizar o turbilhão de pensamentos que o atravessavam ali. Sentiu-se encarcerado no vazio, caindo no nada. Afinal o que herdara da mãe? Independência ou misantropia? Procurou em vão a resposta por todos os lados, mas estava sozinho na rua. Talvez ainda fosse um novelo enrolado. Só tinha certeza de uma coisa.
— Estou perdido.