A CONSELHEIRA SENTIMENTAL
EU, ainda bem moço, tive surpreendentes quarenta dias de férias acumuladas do trabalho, sem nada especial para fazer na minha cidade do interior paulista. Roteiro: Rio de Janeiro, convite para a temporada inteira, mas escolhi apenas duas semanas na ILHA DE PAQUETÁ, casa de gente amiga que EU não via há muito tempo. Assim, partilhei um quarto enorme com o rapaz da casa, três camas ( o outro hóspede não apareceu), enorme armário de roupas, mesinha, estante com muitos livros e também um rádio super potente - escutávamos notícias mundiais em espanhol e muito tango nos intervalos. Levantávamos em horário bem tardio; após café da manhã, passear pela ilha toda, curtir a natureza...Férias inesquecíveis! Dava para ouvir na madrugada ( e me parecia dentro de casa) o som minúsculo, quase abafado, de máquina de escrever portátil - homem pergunta menos ou não pergunta. Gostei, lugar aprazível, ruas calmas de segunda a...sexta (sábados e domingos, dias terríveis de turistas sazonais), Praia, casa...casa, praia. Farta pescaria amadora. carteiro passava todas as tardes trazendo para o endereço enorme volume de correspondência lacrada. Recebi duas vezes com naturalidade e logo passei para a dona da casa, extremamente nervosa (refleti muito tempo depois: envergonhada?!) ao pegar da minha mão os grandes e pesados envelopões. Na terceira vez, olhei curioso o remetente : uma afamada revista feminina da capital paulista, mas de circulação nacional - minhas irmãs compravam todo mês, beijavam certas páginas e colecionavam recortes...sou o primogênito de quatro: meu irmão e EU ríamos desse entusiasmo juvenil um tanto exagerado...Ah, mulheres! Apenas encuquei, não podia maliciar - o filho dizia sem detalhes que a mãe era colaboradora (?) da tal revista. havia na família uma afamada poetisa bastante idosa (ganhei dois livros previamente autografados: "Caro leitor blá, blá, blá...") e uma jornalista jovem (EU li recortes de artigos e reportagens), ambas em SÃO PAULO/ capital, produtivíssimas, porém não era possível tanta correspondência familiar assim, todo dia...casa à beira mar, comentaram que o armário de roupas fora feio sob encomenda, plástico anti-sanilidade, na cor imitando madeira, longa extensão da parede. Cinco largas portas na parte inferior, o mesmo em cima, duas inferiores trancadas a chave, guardavam material de trabalho da fulana (não a vi fazendo nada - estaria de férias também?). De repente, sumiu a minha camisa predileta e endoideci. Haveria um festival de teatro amador no clube e EU queria exatamente me exibir um "sãopaulino" de devoção futebolística. A empregadinha da casa era muito distraída e muitas ezes, arrumando o quarto, guardava qualquer coisa entre o travesseiro e a fronha, dizia "só-por-minutos", esquecia ali por muitas horas ou dias. Depois achava com a clássica frase: "Não fui EU..." Ah, mulheres! Procurei, olhei os lugares possíveis, vasilhame de roupas suja, máquina de lavar, as benditas fronhas...e nada! (Camisa apareceu três dias depois caída na plantação de margaridinhas.) "Bom, só se ELA guardou na parte proibida do armário..." pensei. Por sorte a proprietária do mistério (ou a distraída) esquecera o chaveiro ali pendurado, Abri as tais duas partes, levei dois sustos: quem leva um, se oferece para levar dois. Dezenas, dúzias, centenas, milhares...(já estou exagerando)...Grande quantidade de envelopes aéreos em verde-amarelo, brancos, todas as gamas de cores, inclusive pretos. Montes deles com elásticos e nítidos pedaços de papel pardo como etiquetas informativas: RESPOSTAS PUBLICADAS - A RESPONDER EM PARTICULAR (CORREIO) - PESQUISAR JUNÇÃO DE SIGNOS ASTRAIS - RECLAMAÇÕES (IGNORAR)..........Na prateleira mais inferior de todas, quase vazia, poucos envelopes, alguns já abertos, ainda não "classificados". Nisto, diabo do reino vermelho, olho inflamado, se irrita e atiça os terráqueos: tentação, mexi, reconheci destinatário a letra de uma das jovenzinhas da minha casa, a mais velha. Ah, não me resisti!!! Abri. Contava para MADAME SORAYA ter um namorado magrela e bobinho, porém irmão mais velho, fortão grandão (EU sorri), se metia em tudo (EU?), até já dera um soco no tal rapaz (mentira, só uns tapinhas leves...) - pedia um estudo astrológico dos signos, especialmente do "valentão Ariano" (EU!). Já sei: impulsivo, impulsivo, impulsivo...mas tenho qualidades também! A carta da caçula estava junto, mas não tive tempo de ler, pessoal voltando das compras, meti rapidamente o envelope no bolso da bermuda, fechei o armário e deitei. Escutei chamarem para almoço e ainda levei minutos para "acordar", de olho no chaveiro pendurado no mesmo ponto, igualzinho. "Não fui EU..." Ah, inocente Rubemar! Mistério secreto secretíssimo nenhum, perfeitamente traduzível. MADAME SORAYA era a "Conselheira Sentimental", minha hospedeira, As mulheres do país inteiro escreviam para a revista em SÃO PAULO que publicava mensalmente algumas respostas dela, incluindo cidade-Estado da consulente. ELA recebia as cartas na ilha, datilografava tudo, despachava para a editora, conselhos menores a revista enviava para as "ansiosinhas" num envelope comercial, selo e carimbo do correio de "SAMPA". Justifica-se farta coleção de livros de astrólogos famosos, como OMAR CARDOSO (nascido em Ribeirão Preto, 1921), radialista e precursor do positivismo, que escreveu em 1940 jornais do país, e NENA MARTINEZ (nascida na Espanha, em 1917), advogada e radialista. EU nada poderia perguntar sem assumir intromissão no "território proibido". Telefonaram, mãe e filho em compras, atendi. Recado que "o cheque da editora foi depositado" - certamente, o salário...da "conselheira", transmiti o recado, bem tranquilo, minha cara cínica de "anjo inocent...érrimo".
Mistério por mistério, ao voltar para casa coloquei o envelope dentro de um livro escolar da minha irmã atrevidinha (distraí, não li a carta da caçula) que por sua vez não tinha a quem perguntar coisa alguma. Ah, mulheres!
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Em tempo: na atualidade, todas as manhãs, antes das seis horas, leio meu horóscopo ao computador. Ainda é tempo de ter uma namorada compatível?
FIM