A Cortesia de Viver

Manhã com tonalidade familiar, cores vividas e, no entanto, florescentes. Na tal vila em que eu vivia, as casas tão similares me lembravam a casa de minha avó, o rosa claro nas paredes, as telhas tão novas de segunda mão, a numeração feita a tinta branca, e, por mais vagamente, lembro-me também que havia uma caixa de correios fixada no concreto em todas aquelas moradas, exceto na minha. Não que eu reclamasse, de qualquer forma se tinha os buracos arredores dos portões, das raras vezes que recebi cartas, foram elas jogadas a mim, ali, por cima.

Eu com meu simpático chapéu de panamá e um sobretudo que tapava minha roupa casual, nos pés era o de sempre, meu social remendado já pela terceira vez, havia eu ganhado de um patacudo de cidade nova, talvez ele tivesse me confundido com um camumbembe. Andava eu descalço pelas ruas do centro, meus calçados haviam me deixado na mão pela correria de umas importunadas pessoas ao qual eu devia umas notas. Parei enfrente uma loja de roupas para repor o folego, e bom, tive meus sociais, novinhos.

As ruas de pedras eram desgastantes até mesmo para o meu vizinho que não tirava as botas dos pés, melhor assim, quando as tirava a vizinhança acabava perecendo aos malditos xingamentos que a mulher soltava sobre o cheiro de queijo francês que parecia vir de algumas décadas atrás. O cheiro rodeava não somente por lá, se expandia até chegar a minha casa também. Ali éramos quase todos parte de uma mesma emboscada, o meu muro era também o muro de meu vizinho, e assim por diante até o final da miserável, porém ajeitada, vila. Talvez por preguiça do pedreiro, não tivemos nossa privacidade, quem nos dirá agora.

Se me recordo bem, naquela manhã eu peguei um livro que já o tinha emprestado a mais de meses, sequer me lembrava de quem o peguei. Sentei-me ali mesmo, no degrau da escada de minha pobre casa com o livro já repetido em mãos. Por mais que os hábitos que eu tinha sempre fossem ecléticos, algo não batia naquele dia. Dona Luiza ainda não se levantará para jogar água na calçada. A Dama filha de Dondoca ainda não havia escancarado a cara na janela de sua casa, e, ainda pior, como diabos acordará primeiro que a minha vizinha do 31. Senti-me um tanto incomodado com a situação, nem uma alma entristecida sequer passou para me taxar como um homem prendado e auto habituado a leitura. Chegou a ficar sem graça fingir estar ali lendo aquele livro repetido, agradei-me com minha própria presença, desapontado recolhi a bunda dali e fui andar pelo pedregulho, é claro, com o livro na mão.

Mas, tudo permaneceu desértico e silencioso, sequer vi um cão. Se ainda sabia olhar as horas, tinha certeza que já era tempo de todos estarem de pé. Não havia ninguém para apreciar minha elegância e acabei pela desistência.

Em casa, puxei da estante, completamente empoeirado um livro que havia ganhado da senhora que morava ao lado de minha residência no aniversario passado, '' A Cortesia de Viver ''. Sobre o sofá me joguei e me acomodei confortavelmente dentro da leitura.

Naquele dia aprendi a viver comigo mesmo, escutei vagamente portas se abrindo, janelas sendo escancaradas, água lançada, o assoviar dos pássaros e os latidos dos cachorros, mas não havia cantoria, nem muito animo nas vozes que soavam de longe. Também não escutei o ‘’Bom Dia’’ da velhinha do 31, que nenhum dia sequer deixava de socar a janela de minha casa e a de outros tantos pela vizinhança. Talvez fosse minha vez de mostrar gratidão, fui até a cozinha, cortei um pedaço da broa de fubá e fui tocar a porta da velhinha.

Ao sair na rua, apenas Dondoca se encontrava na rua, sentada a beira do passeio, me cumprimentou com angustia, algo lhe incomodava.

- Senhora, Irene! – Bati algumas vezes e gritei enfrente o 31.

Retornei o ato mais duas vezes ou três até que Dondoca me chamou para sentar-me ao lado dela, na calçada, calada, me disse tudo.

A vizinha do 31...

Todo dia ao amanhecer vinha eu a receber o teu Bom Dia. Já aquele dia, não podia mais me dar.

Nem sempre velha, nem sempre ao escasso revestido de fadiga, bem sempre gentil era minha vizinha.

Simpática, amigável a todos, e tão sorridente, que belo revestimento o seu sorriso trazia, mesmo que sem dentes.

Já velha ao meu conhecer de sua aparência, mas sempre com a alma nova e límpida. Era eu grato a sua vizinhança, tão serena.

Viverá ela da mesmice, dia após dia. Que bem fizera para o mundo, nada que seja visível aos olhos de um qualquer. Deveria ser próximo o suficiente para saber que ninguém acordava primeiro que ela. ''Bom Dia!'' Dava ela a mim com um sorriso banguelo no rosto, quão lindo era de se ver.

O luto pendurou-se em mim por enormidades de dias que ainda me ressecam o suor da lembrança.

Dmitry Adramalech
Enviado por Dmitry Adramalech em 19/01/2020
Reeditado em 07/07/2021
Código do texto: T6845547
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