A vida pelos pés

O nascimento de um sapato acontece no momento em que ele encontra seus pés e eu encontrei os meus quando eles tinham 17 anos. Dizem que essa é uma boa época para nascer, pois ficamos com os mesmos pés até quando eles envelhecem.

Eu nasci um tênis preto, baixinho e no tamanho 36. Cheguei numa caixa embrulhada num papel colorido, junto com outras caixas também embrulhadas em papéis coloridos.

Eu cresci numa casa onde haviam sapatos do tamanho 39 e 43. Todos pareciam mais velhos que eu e nenhum deles se pareciam comigo. Eles pareciam envelhecer mais rápido que eu, tanto que vários nasceram e partiram antes de eu receber meu primeiro rasgo.

Fui batizado no meu segundo dia de vida por um tênis de tamanho 37. Esse tênis não era tão novo quanto eu, mas ficou mais tempo comigo do que os outros sapatos. Andamos por várias ruas, conhecemos vários lugares, dançamos, pulamos e nos sujamos muito juntos.

Algumas vezes nossos pés nos deixavam jogados no chão enquanto ficavam com os dedos para cima ou para baixo, ou simplesmente andando por aí sem a gente.

Essas eram as únicas horas do dia que eu via meus pés sem mim. Meus pés eram bonitos, tinha a pele escura e sempre tinham as unhas coloridas, enquanto que os do meu amigo eram claros e tinham as unhas pintadas de pretas ou cinzas.

Em algum momento da minha vida comecei conviver menos com sapatos de número 39 e 43, e o tênis de número 37 desapareceu junto com seus pés. Foi a época que recebi meu primeiro rasgo.

Eu passei a andar por outras ruas e conhecer outros lugares. Passei a andar menos, sozinho, mais devagar e limpo.

As vezes eu me encontrava com outros sapatos, eles encostavam seus bicos nos meus como o 37 fazia, mas sempre partiam rápido demais. Chegou um tempo que meus pés desistiram de se encontrar com outros pés e eu passei a conviver com os mesmos sapatos de número 36.

Meus pés mal me calçavam e quando calçavam andávamos pouco, sempre em lugares comuns. Eles passaram a preferir os sapatos mais altos, mesmo que estes sempre os machucassem.

Os sapatos de número 43 também desapareceram e eu passei a conviver mais com os de número 39 novamente. Aqueles sapatos moravam comigo mas seus pés não os calçavam mais, pois ficavam todo o tempo deitados, até que um dia eles também sumiram junto com seus pés.

Passei a viver com sapatos do mesmo número que eu, mas diferentes de mim.

Meus pés já estavam envelhecendo e não dançavam mais, não pulavam, não corriam mais. Suas unhas nunca mais foram coloridas.

Até que um dia meus pés decidiram se levantar e me levar para correr por algumas ruas. Pensei que eu não resistiria àquela corrida, eu já estava velho e rasgado, mas eu resisti, e no fim da corrida eu pude ver meu melhor amigo.

Meus pés decidiram se encontrar com os que calçavam o tênis de número 37, que também estava velho, rasgado e manchado como eu.

Eu sabia da história da maioria daquelas manchas, assim como ele também sabia das minhas, pois várias delas fizemos juntos. Meus rasgos foram apresentados à ele e ele apresentou os dele à mim, e assim conhecemos a história que cada um viveu.

Criamos novas histórias juntos, aprendemos novos passos de dança, ele me apresentou as ruas por onde andou e eu apresentei as minhas e conhecemos outras.

Algum tempo depois nossos pés pararam de nos calçar e nos esqueceram na sapateira. Meus pés envelheceram junto com os dele e voltaram a ter as unhas coloridas como antes.

Com o tempo meus pés deixaram de usar aqueles sapatos altos e os substituíram por sapatos confortáveis.

Eu e meu amigo passamos o resto de nossas vidas observando nossos pés livres, andando, se arrastando, não andarem mais até partirem e nos fazendo partir também.

maria paula da silva lima
Enviado por maria paula da silva lima em 16/01/2020
Código do texto: T6842903
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