- Mel, sai desse quarto e vem lavar a louça. O dia inteiro lendo as mesmas letras. Não cansa? Já são nove horas.
Há 100 km da capital mineira estava ela de joelhos, diante do quadro do anjo da guarda, fixado á cabeceira, fazendo sua oração da noite:
- Pai, por favor, me leva pro Rio de Janeiro. Se Você me levar para a capital do samba prometo ser a melhor leitora do planeta. Lerei ao menos 15 livros por mês, digo 13, melhor 10 pra não correr o risco de não cumprir o combinado. Então Deus, prometo ler 10 livros por mês, até você realizar meu sonho.
Sua rotina era tal qual a de qualquer menina do interior: acordava cedo, vestia o uniforme escolar, tomava café e partia com sua lancheira abarrotada, para a escola que ficava há 3 quilômetros de distância. Não tinha a companhia dos pais, o movimento estudantil era grande e a maioria ficava a observar os filhos das janelas, até que eles virassem a última esquina.
A escola era sua melhor viagem. Desde a primeira série se aventurava nas apresentações em dias festivos e cívicos, ora declamando poemas dos seus escritores favoritos, ora escrevendo jograis ou peças de teatro. Chegava cedo, ia para a biblioteca e ficava ao menos uma hora a folear os livros e procurar palavras no dicionário que substituíssem aquelas que todo mundo usava, não era fã de palavras comuns, embora sua família fosse simples e nem utilizasse as conjugações corretas. Mas ela era uma espécie dupla personalidade cultural: em casa falava feito eles e na escola era destaque.
De uns tempos pra cá, depois que a puberdade veio visitá-la, passou a se interessar por livros e também pela dança. Debruçava-se sobre as revistas da cidade para ver a famosa escola de Ballet da Victoria Parcus, eram meninas lindas, disciplinadas e de pernas finas, algo que sempre lhe incomodou, pois nunca fora bailarina e tinha pernas grossas. Já percebia que estava um pouco tarde para se aventurar à dança tão exigente que era o ballet clássico e decidiu então estudar sobre os estilos musicais e as formas de expressão cultural deles. Não havia um dia sequer que não buscasse nos computadores da escola, casa ou curso de informática, imagens e definições que a transportassem para um novo mundo: queria dançar algo que lhe traduzisse sem precisar caber naquele rótulo da postura e beleza estética vitrificada.
Foi assim que passou a ver a vida sob outra ótica. Tendo como pai um homem trabalhador e ausente, ouvia sempre sua mãe dizer que a vida era “um samba do criolo doido”. Quis logo saber o que era esse samba do crioulo doido.
A televisão nunca foi parceira da família, exceto em dias de tragédia, que ficava ligada o dia todo, desde o desastre até o funeral. E a casa tinha um semblante triste, de luto. A mãe falava baixo e os irmãos senlimitavam a olhar um para os outros, como se isso fossebuma sentença de morte, ou uma espécie de empatia social exagerada: dia a dor do outro.
Sempre que papai chegava, à noite, a televisão era ligada e por vezes adultos comiam diante dela, mas crianças e adolescentes jamais. Mas foram nessas noites que Mel, despropositada, viu pela primeira vez uma negra, de cabelos cacheados e pernas grossas, dançando um samba, e se aventurou.
Toda vez que tocava no assunto samba com sua mãe, sempre muito atarefada, mãe de 4 filhos, dona de casa, a resposta vinha à galope: se quiser dançar, vai ter que estudar e muito. Ler muitos livros, muitos não, milhares e estudar o suficiente para ser a melhor. Estava dada a sentença condenatória: Mel só lia! Manhã, tarde, noite, só lia.
Cada vez que um livro novo era cadastrado na biblioteca da escola ou do município ela corria para levar pra casa e compreender a magia de viver uma fantasia até que a realidade a visitasse, salto alto e plumas!
Foram muitos anos de leitura diária na esperança de que, a qualquer momento, pudesse ser convidada para ser passista de escola de samba. Aliás, por causa do carnaval no Rio de Janeiro passava a noite inteira acordada, afim de aprender a melhor forma de se apresentar, num possível concurso. E foi nessas que se apaixonou pela Mocidade Independente de Padre Miguel, a qual fazia reverência vestida de passista, diante da televisão.
Os anos foram passando, as orações mudando e o sonho de ser passista de escola de samba foi se despedindo. A menina que lia enquanto esperava Deus levá-la para o Rio de Janeiro foi se transformando numa mulher que conhecia todas as vertentes culturais da dança e da música, mas não mais cabia no sonho, porque as prioridades mudaram, a vida mudou, ela mudou. Não era mais a mesma pessoa que havia se ajoelhado e esperava uma intervenção divina.
E lá no futuro do presente mora essa menina que cheia de vergonha, coloca a música baixa e faz do silêncio um ritmo, porque entendeu que “não precisa de crioulo doido”, mas que o conhecimento a intimidou. Mal sabia ela que ao ler, já sambava, mas no carnaval, de passista já tinha passado do tempo. Agora escreve o próprio samba enredo e as vezes samba (na cara da sociedade) ou o contrário, de salto agulha e fantasiada.
Era uma vez uma menina que lia livros enquanto o samba morria... Nos seus pés! Apesar do salto alto que nunca tirou.
Há 100 km da capital mineira estava ela de joelhos, diante do quadro do anjo da guarda, fixado á cabeceira, fazendo sua oração da noite:
- Pai, por favor, me leva pro Rio de Janeiro. Se Você me levar para a capital do samba prometo ser a melhor leitora do planeta. Lerei ao menos 15 livros por mês, digo 13, melhor 10 pra não correr o risco de não cumprir o combinado. Então Deus, prometo ler 10 livros por mês, até você realizar meu sonho.
Sua rotina era tal qual a de qualquer menina do interior: acordava cedo, vestia o uniforme escolar, tomava café e partia com sua lancheira abarrotada, para a escola que ficava há 3 quilômetros de distância. Não tinha a companhia dos pais, o movimento estudantil era grande e a maioria ficava a observar os filhos das janelas, até que eles virassem a última esquina.
A escola era sua melhor viagem. Desde a primeira série se aventurava nas apresentações em dias festivos e cívicos, ora declamando poemas dos seus escritores favoritos, ora escrevendo jograis ou peças de teatro. Chegava cedo, ia para a biblioteca e ficava ao menos uma hora a folear os livros e procurar palavras no dicionário que substituíssem aquelas que todo mundo usava, não era fã de palavras comuns, embora sua família fosse simples e nem utilizasse as conjugações corretas. Mas ela era uma espécie dupla personalidade cultural: em casa falava feito eles e na escola era destaque.
De uns tempos pra cá, depois que a puberdade veio visitá-la, passou a se interessar por livros e também pela dança. Debruçava-se sobre as revistas da cidade para ver a famosa escola de Ballet da Victoria Parcus, eram meninas lindas, disciplinadas e de pernas finas, algo que sempre lhe incomodou, pois nunca fora bailarina e tinha pernas grossas. Já percebia que estava um pouco tarde para se aventurar à dança tão exigente que era o ballet clássico e decidiu então estudar sobre os estilos musicais e as formas de expressão cultural deles. Não havia um dia sequer que não buscasse nos computadores da escola, casa ou curso de informática, imagens e definições que a transportassem para um novo mundo: queria dançar algo que lhe traduzisse sem precisar caber naquele rótulo da postura e beleza estética vitrificada.
Foi assim que passou a ver a vida sob outra ótica. Tendo como pai um homem trabalhador e ausente, ouvia sempre sua mãe dizer que a vida era “um samba do criolo doido”. Quis logo saber o que era esse samba do crioulo doido.
A televisão nunca foi parceira da família, exceto em dias de tragédia, que ficava ligada o dia todo, desde o desastre até o funeral. E a casa tinha um semblante triste, de luto. A mãe falava baixo e os irmãos senlimitavam a olhar um para os outros, como se isso fossebuma sentença de morte, ou uma espécie de empatia social exagerada: dia a dor do outro.
Sempre que papai chegava, à noite, a televisão era ligada e por vezes adultos comiam diante dela, mas crianças e adolescentes jamais. Mas foram nessas noites que Mel, despropositada, viu pela primeira vez uma negra, de cabelos cacheados e pernas grossas, dançando um samba, e se aventurou.
Toda vez que tocava no assunto samba com sua mãe, sempre muito atarefada, mãe de 4 filhos, dona de casa, a resposta vinha à galope: se quiser dançar, vai ter que estudar e muito. Ler muitos livros, muitos não, milhares e estudar o suficiente para ser a melhor. Estava dada a sentença condenatória: Mel só lia! Manhã, tarde, noite, só lia.
Cada vez que um livro novo era cadastrado na biblioteca da escola ou do município ela corria para levar pra casa e compreender a magia de viver uma fantasia até que a realidade a visitasse, salto alto e plumas!
Foram muitos anos de leitura diária na esperança de que, a qualquer momento, pudesse ser convidada para ser passista de escola de samba. Aliás, por causa do carnaval no Rio de Janeiro passava a noite inteira acordada, afim de aprender a melhor forma de se apresentar, num possível concurso. E foi nessas que se apaixonou pela Mocidade Independente de Padre Miguel, a qual fazia reverência vestida de passista, diante da televisão.
Os anos foram passando, as orações mudando e o sonho de ser passista de escola de samba foi se despedindo. A menina que lia enquanto esperava Deus levá-la para o Rio de Janeiro foi se transformando numa mulher que conhecia todas as vertentes culturais da dança e da música, mas não mais cabia no sonho, porque as prioridades mudaram, a vida mudou, ela mudou. Não era mais a mesma pessoa que havia se ajoelhado e esperava uma intervenção divina.
E lá no futuro do presente mora essa menina que cheia de vergonha, coloca a música baixa e faz do silêncio um ritmo, porque entendeu que “não precisa de crioulo doido”, mas que o conhecimento a intimidou. Mal sabia ela que ao ler, já sambava, mas no carnaval, de passista já tinha passado do tempo. Agora escreve o próprio samba enredo e as vezes samba (na cara da sociedade) ou o contrário, de salto agulha e fantasiada.
Era uma vez uma menina que lia livros enquanto o samba morria... Nos seus pés! Apesar do salto alto que nunca tirou.