NUM FIM DE SEMANA
Naquela tarde de uma sexta-feira cinzenta, começava a cair uma garoínha fria e fininha, quando resolvi dar por encerrado meu expediente e sair para tomar um trago, comer qualquer coisa, encontrar alguém conhecido para um bate-papo, enfim, decidir o que fazer naquele prolongado fim de semana, já que na segunda-feira, dia do Trabalhador, não era dia de se trabalhar e sábado e domingo, muito menos.
Eu havia atendido o meu último cliente cerca de uma hora atrás e até então estive procurando pôr em ordem minha mesa desorganizada, repleta de papéis e autos processuais empilhados e empoeirados, tal minha falta de tempo nos últimos dias para me ocupar deles. Fiz uma arrumação mais ou menos, e no exato momento que o relógio de parede soava uma badalada, marcando cinco e meia da tarde, eu estava às voltas revirando meu escritório à procura de um guarda-chuva, já que a garoínha tornara-se garoa e prometia transformar-se numa chuva logo mais. E o que era pior, eu estava sem carro, tendo-o deixado na garagem de minha casa, quando de lá saí, há menos de uma semana, disposto não mais voltar e sem nada de lá ter retirado para não piorar ainda mais meu falido casamento.
Logo que encontrei o guarda-chuva, atrás da estante, onde havia escorregado quando o pus em pé dias atrás e, ao sair, puxando porta que estava destrancada, me dei de cara com uma bela jovem morena clara, dessas que denominamos cor de canela, uma autêntica estátua de Antônio Francisco Lisboa, nosso famoso Aleijadinho, feita em pedras de sabão, ali petrificada em minha frente, com um belo sorriso congelado em sua face corada.
- Eu ia apertar a campainha e no exato momento o doutor abriu a porta, - Disse-me ela, um tanto constrangida, remexendo sua bolsa à procura de alguma coisa até que encontrou um cartão e, sem me entregar, disse de si para consigo, - É aqui mesmo.
- Pois, não, tenha a bondade de entrar e fique à vontade.
Foi o que eu consegui dizer, fazendo gestos com as mãos para ela se adentrar, sentar-se e me contar o seu problema jurídico. Era desse modo que eu sempre recebia os clientes e já se tornara jargão eu começar perguntando-lhes qual era o nó da questão que os trazia até mim. Dessa vez não foi diferente e ela, após entrar e me seguir até minha mesa, ficou em pé, frente a mim, e começou a falar, um tanto depressa.
- Eu quero contratar seu serviço de advogado para defender meu marido, que foi preso hoje de manhã, quando a polícia entrou em nosso barraco, portando um papel escrito e assinado por um juiz...
- Um mandado judicial de prisão, você quer dizer, – foi o que eu lhe disse, ao mesmo tempo pedindo para que se sentasse e acrescentei:
- Mas qual o motivo de a polícia ir até o seu barrac..., ou seja, sua casa e prender seu esposo?
Ela baixou os olhos, comprimindo os lábios, olhou em volta, estalou a língua e prosseguiu sua narração.
- O policial, que o algemou, disse que meu marido é traficante e até me mostrou uns papelotes com uns pós-branco, dizendo que estavam nos bolsos das calças dele, quando o prendeu.
- Sim, entendo, - disse-lhe eu, observando-a melhor e, quando a encarei, baixou os olhos (novamente), tentando segurar um sorriso, o que nos deixou ambos, encabulados.
- Sente-se e fique à vontade, repeti completando- lhe. - Eu ainda tenho tempo e não dá mesmo para sair com essa chuva torrencial.
Ela não se fez de rogada e sentou-se tranquilamente na poltrona em minha frente, cruzando o belo par de pernas, que, com aquela saia curta, era uma tentação ou um convite diabólico, para um homem sentir-se bem ou mal.
Nervoso, acendi um cigaro e, dando algumas baforadas, pedi que me narrasse o caso completo, sem nada omitir, nos mínimos detalhes. O que ela me disse em seguida, francamente me surpreendeu e me encabulou.
- Antes de eu contar minha vida para o doutor, será que eu poderia tomar um banho e passar a noite aqui no seu escritório? Eu não tenho para onde ir e a noite vem com esta chuvarada que não dá sinal de parar...
- Como assim? - Perguntei-lhe cheio de dúvidas, boas e ruins, olhando-a seriamente nos olhos.
- Você não disse que a polícia foi hoje de manhã até sua casa e ...
- Deixe-me explicar – interrompeu-me ela, esboçando um lindo sorriso que a fez ainda mais bela (e tentadora) diante de meus olhos deslumbrados, que os abaixei encabulado, apagando o cigarro, apertando-o contra o cinzeiro.
Meio encabulada, ela continuou:
- O caso é que não se trata de uma casa e sim de um caso entre a gente e que foi terminar num barraco de um casal de amigos, onde ele se escondia da polícia, mas sempre aprontando das suas, levando-me em sua companhia, desde que deixei minha família para conviver com ele, o que foi uma grande burrada minha.
Fitei-a novamente, sem saber o que lhe responder ou perguntar, mas ela não deixou por menos e se levantou para vistoriar o aposento, andando para lá e para cá, como que procurando algo, depois voltou-se e se estacou em minha frente e me falou num ápice, mais que o que dizia era um sonho...
- Eu acho que estarei bem acomodada aqui por uma ou duas noites, até decidir o que fazer de minha vida.
Ao que eu lhe respondi, ainda duvidando se o que ela dissera para si e consigo era uma pérola, como eu imaginava, ou uma outra pedra em minha caminhada.
- Pensei que já estivesse decidida quando propôs contratar-me como advogado de seu marido.
Assim lhe falando, levantei-me da cadeira, indo até outra mesa e me pus a revirar gavetas sem saber ao certo o que estava procurando, enquanto ela falava, sem parar, que não mais queria saber do marido e já estava disposta a mudar de vida.
Achei que ela estava confusa e então a interrompi.
- Se já não gosta dele, por que veio contratar meus serviços para defendê-lo? Não seria mais sensato deixa-lo lá no xadrez e começar um novo modo de vida?
“Com estas palavras, num ímpeto voltei para a minha mesa principal de trabalho e abri uma gaveta sem saber sequer o que estava procurando”. De costas para ela, ouvia o seu tagarelar.
- Eu sei que preciso mudar de vida e andar certa daqui pra frente. Na verdade, eu nunca amei aquela praga e só o acompanhei para me livrar dos meus pais que não paravam de pegar no meu pé. Só que eu já completei vinte e um anos e acho que sou dona do meu nariz. Daqui por diante não vou dar satisfação a mais ninguém. Só ao senhor, o meu advogado e defensor.
“Voltei-me para ela com um glossário na mão e lhe disse com o dedo em riste.”
- O Senhor está no céu e eu me contento em estar na terra, sem ser senhor ou servo de ninguém. Está bem assim? E digo mais, como ousa me chamar de seu defensor, quando vem a mim para defender seu marido?
“Sua resposta me foi surpreendente.”
- Já lhe disse, não quero mais aquele traste em minha vida, somente gostaria que ele saísse da cadeia e fosse feliz ao seu modo e deixasse de aprontar arruaças.
- Bem, respondi, uma coisa é ser profissional advogado para contratar sua causa. Bem outra é ser um psicólogo para tratar de pessoas desajustadas, o que eu não sou. Longe de mim complicações de casais que não se entendem e pensam que o problema é para os outros resolverem e não eles próprios.
- Então me diga o que tenho a fazer, se é que você é casado e entende de um relacionamento a dois. Pensei que...
Não lhe permiti completar a frase e fui logo respondendo:
- Não seja frívola, garota! O fato é que eu também não tenho para onde ir e já faz quase uma semana que me sinto um prisioneiro neste escritório. Aqui trabalho e também moro, saindo apenas para comer fora, pois até minhas roupas a lavandeira que contratei vem buscar e trazer. E antes que me pergunte, eu já lhe vou esclarecendo suas dúvidas. Meu casamento foi por água abaixo depois que minha mulher fez um curso de computação e começou a trabalhar numa escola de informática.
- Sinto muito por isso, mas lhe garanto que vocês dois nunca se amaram de verdade, estou certa?
Juro que vi lágrimas escorrendo em sua face, enquanto me pegava pela mão e me fazia sentar ao seu lado naquele grande sofá-cama, arás da estante cheia de livros, para onde me levou, como que me farejando, qual uma loba, e roubando minha concentração e meu coração, além de me raptar também. Pensei comigo: “Esta ladra rouba-me, e eu sei de quem.” Ela soltou minhas mãos e foi emendando:
- Eu sei que não é fácil para certos maridos aceitar o fato de suas esposas trabalharem fora de casa hoje em dia, mas isso não pode mais ser evitado.
Olhando aqueles olhos negros, fitando os meus e parecendo querer me engolir com prazer, acho que ainda fui bobo em argumentar:
- Não é bem isso que você está pensando, porque eu mesmo estimulei minha esposa a estudar e se profissionalizar, para ser alguém na vida. Só não esperava, é claro, que ela sofresse brusca mudança e passasse a hostilizar-me ao ponto de me expulsar de casa e ter que passar a dormir neste cubículo, onde você pensa que também vai ficar, sem mais nem menos.
Sem pestanejar, cortou-me ela:
- Acho que até então essa sua mulher loira não era nada mesmo. Ou talvez fosse um zero à esquerda em sua vida. É isso que quer dizer? E, antes que me responda, eu lhe pergunto ainda, o porquê não posso ficar aqui e lhe fazer companhia, ajudando-lhe no que for necessário, se nós dois somos descomprometidos e desconsiderados por nossos pares.
Sem entender como ela deduziu que minha mulher era loura, encarei-a com surpresa, pois percebi que as coisas estavam tomando um rumo inesperado, diante daquela morena que mal eu acabara de conhecer.
Suas perguntas me pegaram de surpresa e vi que ela era bem mais inteligente do que eu supunha. De algum modo achei que ela não estava de toda errada. Eu nunca gostava de ver minha esposa só cuidando da casa, pois achava que ela tinha talento para algo mais e embora fosse uma excelente dona de casa, era formada em pedagogia, daí deveria buscar outro patamar de vida.
Numa discussão que tivemos num domingo, após o almoço, eu lhe dissera com o indicador em riste: “Se você não se mexer, vai passar o resto da vida cozinhando e lavando louças. É isso que você quer? ”
“ Lembro-me que ela se virou para mim com a cara lambuzada e os cabelos despenteados, gritando com os olhos esbugalhados”.
“Você ainda vai ver do que sou capaz, seu cretino! E vai se arrepender de tudo o que me diz agora, por ser mal agradecido e Ingrato”!
Dando uma gargalhada, diante de minha cara de bobo, ela voltou a esfregar a bucha nas louças, cantarolando a velha canção: “Durante o dia lava Louça e à noite beija a boca”.
- Esta é minha história, garota. Não perdoei sua risada sarcástica e há cinco dias saí daquela casa infernal e vim para aqui neste meu escritório, a fim de terminar minha tese de doutorado em Sociologia Jurídica, uma ciência a que me dedico, além de advogar: MACHISMO, DE ONDE VEIO E ATÉ QUANDO VAI DURAR.
“Como vê, estou quase terminando, mas não sei se vou poder apresentar diante da banca na próxima semana, depois que você se intrometeu na minha vida. Não consigo pensar em mais nada e a conclusão, ainda por terminar, deverá resumir tudo o que argumentei em mais de trezentas páginas. Só mesmo uma mulher para explicar tantos desencontros entre casais, muitas desavenças em famílias e múltiplas batalhas no seio da sociedade.”
A morena de olhos negros, fitos em mim, sorriu e se achegou ao meu lado, tentando entender o que eu escrevia no computador, mas se inclinou para trás, esvoaçando aqueles cabelos pretos e compridos, roçando a face em meu rosto a exalar o mais puro cheiro de âmbar, que me deixou inteiramente excitado. Por isso mesmo afastei-me o mais que pude da presença daquele diabo tentador e fui sentar na poltrona atrás da escrivaninha.
- Sabe de uma coisa, querido. – Disse-me ela, puxando-me pela mão, levando-me novamente até o sofá, onde me abraçou e me deu o beijo que eu já esperava, porém muito mais saboroso que sequer eu jamais sonhara em meus quarenta e oito anos de idade.
Na verdade, foi somente ela que me beijou, pois eu não correspondi, devido à falsa moral que eu teimava em cultivar em relação à vida de casado. Contudo não fiz o menor esforço para afastá-la de mim. Mas ela se afastou e notei que ficou um tanto frustrada.
- Você vai me condenar por este beijo que eu sei e sinto que foi mais do que roubado? Acho que você não gostou. Desculpe querido, se eu me precipitei, mas é que estou tão confusa e carente, vendo em você um porto seguro nesta minha vida sem rumo.
- Só isso? Um ponto de apoio, um patrono e um pai, talvez?
Ela nada respondeu e, dando uns dois ou três passos, começou a mexer em meus livros na estante, como que os colocando em ordem, sem sequer abrir um volume. Em seguida virou-se e me perguntou:
- Sua mulher botou chifre em você?
- Não que eu saiba.
- Mas ela não o amava, com certeza. Vocês brigavam muito?
- Às vezes. Qual o casal que não briga?
- Você batia nela?
- Não, nunca! Em mulher, seja ela quem for não se bate nem com uma flor.
Ouvindo isso ela sorriu e veio até mim e, como que num impulso, passou sua mão em meu queixo, cofiando minha barba por fazer. Empertigou-se e emocionada falou:
- Que romântico! Você me parece ser também um poeta. Adoro homem assim. Só que é difícil acreditar se o homem diz a verdade. Todos eles mentem e ai de nós, mulheres, que acreditamos em príncipe encantado! Quando menos esperamos, é o cavalo xucro que nos derruba.
- Acredite ou não, - disse eu, segurando suas mãozinhas, com as quais ela tentava massagear meus ombros. - O que você tem é muito que aprender.
Ela sorriu, maliciosamente, e me fitou nos olhos, parecendo querer mais ouvir do que falar. Tive a impressão de que esperava um abraço e o beijo como prova a desmentir o que ela acabara de me dizer sobre homens traidores, quais cavalos indomáveis.
Em vez disso, levantei-me do sofá, soltei suas mãos e fui até o armário à procura de uma bebida que me relaxasse, mas só encontrei uma garrafa de conhaque vazia. Disfarcei, pois estava ficando encabulado e comentei que a chuva estava diminuindo, dizendo isso mais para mim do que para ela.
Quando a olhei, ela baixou os olhos, levantou-se e me olhou novamente, virou-se e caminhando pela sala, alisando aqueles lindos cabelos, lisos pela própria natureza e acabou dizendo a sorrir, numa tentativa, assim me pareceu, de recobrar o clima que havia ficado tenso:
- Você já bateu em sua mulher?
- Nunca. Apenas discutimos e nos discordamos. Fisicamente, jamais nos agredimos. Sempre cumpri o provérbio que diz: “em mulher não se bate nem com uma flor”.
- Acho que você está enganado ao generalizar, pois há mulheres que precisam apanhar dos maridos, de vez em quando. Eles nunca sabem por que batem, mas elas sempre sabem por que apanham.
Olhou-me para observar minha reação, mas o que viu foi um homem deslumbrado, de queixo caído, sem saber o que fazer com aquele presente do céu ali na frente. Respondi que já conhecia essa anedota e que não tinha a menor graça.
- Eu já lhe disse a pouco que estou escrevendo uma tese sobre o machismo, por isso não comungo dessas ideias retrógadas.
Ela não se fez de rogada e num riso, um tanto forçado, concluiu sua filosofia barata, que eu já esperava e mentalmente antecipava: “Uma briguinha de vez em quando não é tão ruim assim. Tapinha de amor não dói. Mulher é que nem pernilongo, só se sossega com tapas, sabia”?
- Você é masoquista, menina? Pelo jeito gosta de apanhar e eu não duvido nada que esse seu maridinho pilantra já lhe deu umas boas surras. Devia ficar contente por ele estar preso, mas ao invés, sai perambulando por aí à procura de um advogado para tirá-lo da cadeia que ele bem merece.
Ela quis falar qualquer coisa, mas eu não a deixei e mantive minha posição, fazendo-lhe ver que o homem que bate em mulher não passa de um canalha e o que dela apanha não é digno de seus carinhos.
Àquelas alturas a chuva havia cessado e como já começava a escurecer, eu achei que o melhor era sair para jantar.
- Você deve está com fome, garota, não é mesmo?
- E você não está? Homem não é tão forte como imagina.
- Não estou falando do que há em sua imaginação e sim do meu estômago, “já roncando de fome no final de um dia e no iniciar de outra noite”.
- Depois que me vi longe de casa, almoço e janto no restaurante da esquina porque é o mais perto de meu escritório. Quer jantar comigo?
Ela não se fez esperar e abraçou-me novamente, mas desta vez evitou me beijar, contentando-se em repousar sua cabecinha nos meus ombros, choramingando.
Desvencilhei-me dela e fui até a janela, dizendo mais para mim do que ao vento, que se sucedera à chuva e invadia o escritório esvoaçando mil papéis.
Ela ficou petrificada no meio da sala, segurando sua bolsinha, mordendo os lábios, com os olhos lindos e arregalados sobre mim, como querendo me devorar e, me engolindo.
Matar a fome era o que eu sentia também por ela. Mas para o jantar, eu estava com uma fome de cavalo, elefante ou porco. Reiterei meu convite para jantarmos e ela topou prontamente.
Saímos de mãos dadas e fomos ao restaurante indicado, um dos melhores do centro da cidade. Sentamos num canto discreto e o garçom apresentou o cardápio com tudo a que tem direito um casal vivo de amor e morto de fome. Eu comi pouco, enquanto degustava, num gole atrás do outro de uma garrafa do melhor vinho chileno.
Por seu lado, ela pouco falou, mas comeu com tanto apetite que me senti feliz só por estar dando de comer a quem tem fome, enquanto também beliscava a apetitosa comida mineira entremeada de uns bons goles de vinho.
Enxuguei a garrafa toda enquanto comia uns poucos bocados, surpreendendo-me ao vê-la tomar três doses de Martini, tagarelando e me contanto todo o seu passado, que eu fingi escutar.
O que me deixou surpreso, foi vê-la comer com tanto apetite, que até me senti gratificado e perdoado pelo “adultério cometido em pensamento” apenas por ter dado de comer a quem tem fome.
De volta para o escritório e abraçada em mim, ela estava expansiva e falante, mas apesar de ser comunicativa por temperamento, era certo que falava além do normal, sob o efeito do álcool das três doses de Martine doce que insistira em tomar, antes de abocanhar o bife acebolado e comer metade do macarrão que nos foi servido.
Confesso que comi pouco, enquanto enxugava a garrafa de vinho, observando-a portar-se como uma fera felina devoradora, desejando ser por ela devorado logo mais, durante a noite.
Nosso jantar terminou, não tínhamos mais fome senão de amor e carinho, muito caro, mas de graça. Paguei a conta e saímos os dois abraçados rumo ao meu escritório aonde me havia confinado, longe dos filhos e da esposa, para escrever minha tese de doutorado, criticando o machismo e apontando a via alternativa.
Enquanto voltávamos para o escritório, o meu aconchego naquele fim de semana, eu me sentia deprimido, até pela temperatura que caia cada vez mais, mas para ela eu era todo ouvido.
Aquela linda morena me abraçava e me beijava o tempo todo, acariciando meu rosto e me enlaçando num forte abraço. Eu me sentia o Adão com a Eva no paraíso, mas com a pulga atrás da orelha, já que tudo terminou mal com o primeiro casal deste mundo.
Chegamos, enfim, em nosso abrigo, o meu escritório de advocacia. Enquanto eu trancava a porta, ela remexia em sua bolsa, tirando duas escovas, uma para os dentes e outra dos cabelos e se dirigiu ao banheiro, enquanto eu me afundava na poltrona, esfregando as mãos no rosto e nos olhos.
De lá do banheiro me perguntou se eu não ia escovar os dentes, dizendo que eu podia fazê-lo, enquanto ela tomava banho. Eu lhe respondi que estava meditando e que ela ficasse à vontade. Na verdade, eu estava cochilando no sofá.
Confesso que dormi e acordei assustado com um roçar em minha nuca. Frente a mim, ela estava em um roupão de banho bastante usado e que eu já muito bem conhecia, tendo por baixo o seu traje provocante.
Aqueles olhos negros me olhavam. Um sorriso se abriu, maliciosamente. Meu impulso natural foi o do mais selvagem.
Ela saíra do banho, não enrolada na toalha, como eu imaginava, talvez mesmo torcendo por isso. Deixou cair aos pés o meu surrado roupão de banho, com o qual se encobrira para me surpreender e veio a mim vestida com a mesma roupa que trajava ao chegar ao meu escritório, ou seja, aquele saião rodado.
Sem que eu esperasse, deu-me um beijo na testa e foi direto para o sofá-cama e se deitou de pernas para cima, erguendo as saias e se abrindo como uma flor no seu desabrochar.
Eu levantei depressa e fui ao banheiro urinar, não fazendo outra coisa que matar o tempo, procurando pôr em ordem meus pensamentos, que a essas alturas estavam uma balbúrdia só.
Quando voltei, encontrei-a dormindo, meio encolhida e o que fiz foi colocar o cobertor sobre ela, mas com cuidado para que não acordasse e me fizesse deitar ao seu lado, o que eu mais desejava e temia. Isso tudo, eu sei, era escrúpulo, mas não deixei de esboçar um sorriso ao achar que aquilo se coadunasse com uma apropriação indébita, ou quem sabe um crime de adultério, já por demais fora de moda.
Dormi na poltrona não sei por quanto tempo, mas quando acordei estava frio e então fui deitar-me ao lado dela, apenas para aproveitar parte do cobertor, evitando-me encostar-se a ela. Dormi logo em seguida e não sei por quanto tempo.
Acordei com o sibilar do vento resvalando nas persianas, pois eu havia esquecido aberta uma das janelas e isso justificava porque aquela noite estivera mais fria que o esperado, apesar de eu não ter dormido sozinho, pela primeira vez nos últimos dias.
Pulei da cama, ou seja, do sofá e me afastando da morena cor de canela com quem dormi metade da noite sem sequer encostar-se nela. Dirigi-me à copa de pijama com pés descalços, fui preparar um café forte, mas antes dei uma espiada na intrusa enrodilhada em meu sofá-cama, com parte do corpo a descoberto, o que me fez sentir um calafrio, com a respiração acelerada e o coração saltitante no peito.
Ela se mexeu e se despreguiçou como uma gata, espichando os braços. Começou a tatear com as mãos, parecendo procurar algo ou alguém ao seu lado. Por fim abriu os olhos, bocejou e ergueu-se de repente, fazendo uma cara de surpresa, ao ver diante de si uma xícara de café fumegante em minhas mãos, o que a fez botar a ponta da língua para fora, lembrando-me uma serpente pronta para picar. Sorriu-me encantadoramente e eu a convidei para se achegar e tomar um café com biscoitos, já preparados sobre a mesinha do centro.
“(Eu e ela ali sozinhos. Adão e Eva no paraíso. Fruta doce é proibida... Mato a cobra e mostro o pau? O que será de mim doravante?)”. Talvez só Deus soubesse disso e mais ninguém.
Assim eu pensava, enquanto aquele mulherão se levantava do sofá e vinha até mim e me dava um beijinho, como há muito eu deixei de receber àquela hora matinal.
Tomei um gole de café, pensando. “Larguei um trem descarrilado para trás e eis me aqui frente a um avião moderno, pronto para alçar um voo rumo ao desconhecido! Mesmo assim, reluto em voar acima das nuvens de minhas dúvidas”.
Porém, absorto e indeciso eu a via aproximar-se, ajeitando a blusa branca sob a qual ressaltavam um par de seios, quais dois cachos de uvas maduras, pendentes dos galhos da verde videira e ainda cobertos de gotículas do orvalho da madrugada enluarada. Com os olhos arregalados e fixos naquele tesouro, eu engolia meu café em seco, enquanto ela puxava para cima a saia caída, deixando o umbigo à mostra. Saltitando, veio até mim e esfregou-se em meu nariz.
- Você dormiu comigo esta noite, seu malandro!
- Sim, dormi com você qual São Francisco de Assis com Santa Clara.
Ouvindo isso, ela arregalou os olhos, abriu a boca e sem nada dizer, veio até mim com o indicador em riste, pressionou o meu nariz, sentou-se e cruzou as penas.
- Você é safado, sabia? Aproveitou-se de uma jovem indefesa e dormiu com ela, quero dizer, comigo. Eu posso lhe processar por atentado ao pudor. Mas nunca eu farei isso, pois amo este homem derrotado e que me dá uma nova perspectiva de vida. Só quero que tire meu amado da cadeia. Ele é inocente. É pai de minha filhinha de dois anos. Quem cuida dela é minha sogra, mas a velha não me deixa ver minha filha. Você vai tirar meu marido da cadeia e ainda vai trazer minha filhinha para meus braços. Vai ou não vai?
Como era deprimente ouvir aquela tagarelice em mais uma manhã de ressaca, confuso e sem saber para que lado eu fosse ou voltava, tanto que eu disse a ela:
- Sim, dormi com você, mas não no sentido bíblico.
- O que quer dizer com essa história de Bíblia? Você é também um Pastor?
- O que eu quero lhe dizer é que não encostei um dedo em você nesta noite.
- Você não sabe o que perdeu. – Disse-me ela, enquanto levava a xícara de café à boca e me olhava com o canto dos olhos para ver minha reação.
Não consegui conter o riso e me engasguei com o café, num acesso de tosse. Embaraçada ela me perguntou seu eu era fumante.
- Não sou, - respondi. - Por sinal não sou dado a pequenos vícios. Só estou fumando há uma semana, mas ainda não me viciei. Estou em tempo de não me escravizar a mais um fantoche.
- Mas você bebe e não vai dizer que não, porque eu sei. E desde quando beber ou fumar é pequeno vício? E o que quer dizer com fantoche?
- Fantoche é tudo que escraviza o homem, inclusive a mulher.
Nem sei por que disse isso e ruborizei-me ao me lembrar de minha tese de doutorado. Ela nem pareceu notar e me fitava com aqueles olhos cor da noite, e, enquanto eu lhe respondia essa embaraçosa pergunta, coloquei a xícara sobre a mesa e, antes que ela dissesse qualquer coisa, emendei:
- Na verdade não sou fumante, senão uma vez ou outra, mas nunca gostei de fumar. Beber, muito pouco eu bebo, apenas nas grandes ocasiões. E não foi por isso que minha esposa me deixou, se é o que quer saber.
- Sua mulher o deixou? Você me disse que saiu de casa porque quis.
- Não, eu nunca quis. Fui obrigado a sair de casa depois que ela virou um bicho de pé.
- O que quer dizer com esse tal de bicho de pé?
- Quero dizer que depois que ela se transformou num animal, não parou mais de pegar no meu pé e a todo tempo enchia o meu saco.
A morena ficou em silêncio, tomando mais um xíara de café e, embora eu teimasse em não olhar para ela, percebia, pelo canto dos olhos, que ela me observava, tentando descobrir se eu estava ou não sendo sincero. Então eu me levantei encabulado e fui me sentar ao computador, enquanto ela me seguia com os olhos, (permanecia olhando-me) pensativa.
- Posso cuidar de você. – Disse-me ela, por fim, quando eu estava ligando o computador, sem saber o porquê e para que, pois já era sábado e eu não tencionava voltar ao trabalho antes de terça-feira, já que a segunda-feira era o primeiro de maio, feriado para o trabalhador. O que eu não sabia, era o que fazer para concluir minha tese de doutorado com uma sereia ali do meu lado, tentando me ensinar como é a vida e não como deve ser.
Achei por bem ficar em silêncio e continuei a mexer no computador, insinuando que a máquina estava com problemas e precisava de um técnico, que eu chamaria mais tarde.
Desliguei o aparelho e fui afastar as persianas e me dei com a janela aberta a me mostrar um maravilhoso dia de sol, naquela fresca manhã de outono.
Enquanto eu olhava para a rua, para o mundo e para o nada, senti aqueles braços me apertando e, ao me voltar, deparei-me com um par de olhos morteiros e, se não bastasse, novamente aquele sorriso inocente ou malicioso projetando de uma boca que mais parecia um favo de mel, tive medo que naqueles doces lábios melados se escondia, oculto, um ferrão de abelha. Não me enganei, infelizmente.
Num impulso natural, tentei-me desvencilhar daquele abraço apertado, porém desta vez, fui fraco e me vi capitulado. Também pudera! Senti aquela felina roçar meus lábios com a pontinha da língua e o que se sucedeu depois, foi indescritível.
Enquanto ela gemia e gritava mais, mais e mais... Senti-me arrebatado ao paraíso num êxtase que pareceu durar uma eternidade, justificando minha existência miserável neste mundo. Não sei se desmaiei, contudo, me senti voltando como de um lugar distante e minha impressão foi de que estivesse caindo num precipício e fora alçado por braços macios e aconchegado a um colo quente que me prendia, protegia-me e me dava toda segurança, embora eu me achasse num pináculo balançando.
Dúvidas, na certa... Recordei-me da professorinha de catequese, na escola dominical, com aquele sorriso tristonho a dizer para toda a classe, nos domingos de manhã, sobre a sabedoria:
“Peça-a, porém, com fé, em nada duvidando, porque quem duvida é semelhante à onda do mar, que é levada pelo vento, e lançada de uma para outra parte” (Tiago 1:6).
O que sei é que depois daquele ato de amor, restou-me mesmo grande dúvida entre o amar e o sofrer, pois a morena, se aconchegando sempre mais e eu procurando mais e mais me desvencilhar, atracou-me de certo jeito que eu me vi como um boi enrodilhado por uma cobra jiboia à beira duma lagoa, bufando e prestes a uma comilança de ambas as partes.
Enquanto eu fantasiava, ou delirava sobre o que era ou não era, naquele café da manhã. Voltei à realidade enquanto a morena me dizia:
- Se é mesmo que você bebe só em ocasiões importantes, ontem, pelo jeito, foi um desses dias tão esperado, – disse-me ela, falando como que sozinha.
Eu não esperava por essa e me perguntei se não era pretensão demais ela achar que só porque a levei para jantar, tomei duas doses de conhaque e mais uma garrafa de vinho eu estava comemorando algo. Parecendo adivinhar meus pensamentos, ela terminou seu café, pôs a xícara na mesa, passou a língua pelos lábios e, esfregando o guardanapo no canto da boca, uma vez mais fixou aqueles olhos feiticeiros sobre mim.
- O que eu quis dizer – falou numa voz ofegante e pausada – foi que ontem, quando cheguei procurando-lhe como advogado, você estava de ressaca.
- Você está enganada, menina. Há mais de um mês que estou abstêmio – disse-lhe com a maior cara de pau, sabendo que ela havia visto a garrafa de rum pela metade escondida no armário, ao que ela me respondeu carinhsamente:
- Não estou querendo acusá-lo por aquilo que não é de minha conta – disse-me ela com ar ingênuo e com aqueles olhos negros lacrimejando, enquanto me enlaçava pela cintura, puxando-me para o sofá-cama, sufocando-me de beijos. Isso se repetiu inúmeras vezes dali em diante, num sonho que eu esperava que nunca terminasse.
Assim o tempo passou dois, três ou quatro meses mais ou menos, como penso e imagino, sem tem certesa, mas nossa vida foi tão feliz, que eu achava ser eterna, embora pouco tempo durou num fim inesperado.
Escuso é dizer que levávamos uma vida simples de marido e mulher, ou, para ser mais exato, de amante e amada numa convivência pacífica sob o mesmo teto entre quatro paredes de um escritório de advocacia, a nossa alcova, o nosso ninho de amor.
Ela se esqueceu do pai de sua filhinha, tanto que nem mais tocou no assunto do companheiro preso, deixando o passado para trás e só pensando no futuro e, nesse afã, matriculou-se numa escola de informática e em cabo de três meses tornou-se monitora de uma turma de aprendizes, provando que de fato tinha talento de sobra, mas eu pagando a conta, já que fora por minha sugestão. Só que isso também acarretou a mim um grande problema, como logo mais esclarecerei.
Enquanto o safado que a enganara continuava preso e sua filha era cuidada pelos pais dele, nossa vida era tranquila e nos entendíamos tão bem que parecia que havíamos nascidos um para o outro, tanto que até nossos signos combinavam. Tínhamos um lar e até nosso carro próprio, que eu comprei a prestações, só por causa dela.
Um dia de manhã fomos ao supermercado e, quando saíamos com o carrinho de compras, deparamos no estacionamento ao lado de nosso carro uma mulher enchendo os pneus de um carro (marca famosa) que eu bem o conhecia. Era o carro que eu deixei com o tanque cheio em minha garagem, quando fugi daquela bruxa com quem casei.
- Olha ali, querido, uma distinta senhora tentando trocar os pneus do carro, parecendo que não tem forças e muito menos experiência nesse tipo de serviço. Coitada! Vamos ajudá-la e não faremos mais que uma obrigação de solidariedade a quem precisa de socorro.
Quando me virei para ver a mulher necessitada de ajuda, confesso que estremeci até os ossos e minhas pernas ficaram bambas, enquanto meu coração batia acelerado.
Embora a dita senhora estivesse agachada, pude reconhecer bem de quem se tratava. Fiquei ali pasmado sem saber o que diria ou faria, mas isso não demorou mais que alguns segundos.
Não sei se ouviu a voz de minha amada morena ou se por um reflexo qualquer, aquela mulher loura e esgadelhada, virou-se e levantou-se com espanto que a fez titubear, parecendo-me até cambalear um pouco.
Com aqueles olhos arregalados de raiva e frustração, olhou-me e franziu o cenho, mirando os olhos esverdeados em mim e em seguida em minha acompanhante.
- Ah, seu cretino! Que belo e oportuno encontro! Bem se diz que os criminosos sempre voltam à cena do crime! E que lindo espetáculo vocês canalhas me proporcionam! Até que enfim caiu a máscara do ordinário de meu marido e de sua megera amante! Há, há, há! Bem que eu desconfiava desse Nerd, que na verdade é só uma merda com essa mania de defender teses, sempre dando uma de intelectual. Não passa de um boçal e sua namoradinha medíocre de uma idiota, que não sabe nem onde mete o nariz! Agora entendi e sei por que preferia se isolar naquele escritório bagunçado e infestado de poeira e teias de aranha!
E assim continuou, com sua raivosa frustração, desacatando-nos e ofendendo a minha bela companheira.
- Você gosta de desordem, mocinha? Pois faça bom proveito deste traste que nem sequer gosta de tomar banho! Olhando bem a você, acho que o merece e os dois formam um par perfeito. Dois zeros à esquerda e aos quais viro as costas com nojo.
Então ela se voltou para sua tarefa de trocar o pneu do carro, mas o rosto que ela tinha nos mostrado era de uma medusa descabelada, com a cara toda manchada de carvão, tão ridícula que eu tive de me conter para não ter um ataque de riso. Só que minha linda morena não deixou por menos.
- Seu ex-marido me contou que o casamento de vocês dois foi um engano, na verdade um defeito curto que é chamado de..., do que mesmo, querido?
- Vício redibitório, ou seja, aquilo que não se pôde identificar no momento do contrato, porquanto estando oculto...
- É isso aí, vagabunda, você tem bicho no rabicó e é por isso que ele tem o direito de trocar você por outra mulher, que nem eu, sacou?
“Quase caí na gargalhada, quando ela me perguntou algo sobre os autos jurídicos...”
- E como é mesmo, querido, aquilo que você disse que o que está no alto não está na terra?
“Confesso que no momento não entendi o que ela perguntava, mas logo saquei e lhe emendei”:
- Você se refere ao brocardo de que o que não está nos autos não está no mundo, uma expressão jurídica...
- É isso mesmo, você não passa de uma megera que caiu do alto e não sabe agora qual é o seu lugar no mundo, viu?
Aí não consegui mesmo me conter e dei uma estrondosa gargalhada. Passei os braços em volta da cintura fina de minha moreninha e fomos os dois rindo a mais não poder para nosso carro estacionado logo ali ao lado.
Como era divertido tudo aquilo. Eu me sentia um Adão com Eva no paraíso tão sonhado por todos nós, pobres mortais. Sem ao menos saber por que, eu me achava num mundo bem diferente com ela, feliz porque nos encontramos.
Como era bom amar e sentir-se amado por uma bela mulher que me compreendia, cuidava de minhas roupas, lavava, passava e me dava toda atenção e carinho, sem nada pedir em troca. Era realmente o tão falado amor incondicional que eu, enfim, havia encontrado. Sim, isso reforçava minhas ideias contra o machismo e, com certeza minha tese seria um sucesso, pois o que eu defendia era mais que óbvio, porquanto provado.
“A mulher é igual ao homem em direitos e aquela submissão prescrita nos livros sagrados, sacramentada pela cultura e dogmatizada pelas religiões, não passava de uma usurpação de forma impositiva e injusta daquele que herdou da Natureza força física maior, tão somente para cuidar dela e protegê-la nas condições adversas.”
Este seria o fecho de minha tese de doutorado em que eu deixaria aberta apenas a pergunta retórica: “Machismo: Quando começou e quanto tempo ainda vai durar”.
O que eu deixaria claro é que esse malfadado costume teve início em razões interesseiras e injustas que o justificaram durante milênios, mas que no final a verdade prevaleceria, ou seja:
“A humanidade machista, enfim, reconheceria seu erro histórico e mais que pedir perdão, haveria de entabular formas e ditames sociais para reparar tamanha injustiça cometida pelo medo que o homem sempre teve de ser dependente da mulher, o que, segundo Sigmund Freud, é o mesmo de ser castrado por ela no ato sexual, embora isso já tenha ocorrido durante sua concepção, quando passou a subsistir nutrindo-se das energias daquela que o concebeu.”
“ Ai do homem, sem essas energias estimulantes, geracionais e sustentáveis de sua vida, depois do nascimento concedido pela mãe, que o apaziguou ao amamenta-lo, amainando já de início sua tendência agressiva, que já vinha embutida na sua fome de sugar do corpo alheio as energias de que tinha necessidade até para respirar. ”
“ Por fim, quando amadureceu pela metade, na fase da adolescência, já teve de conter o ímpeto de desafiar ou fugir daquela que lhe atraía para completá-lo e, ao mesmo tempo, lhe acarretava medo de roubar dele o que lhe sobejava, só porque nela parecia faltar alguma coisa que nele sobrava”. Complemento dizendo que aí estão à razão dos conflitos e das guerras entre os dois sexos.
Mas isso é exatamente o que denuncio e mostro não só as razões originais, mas também a forma como o equilíbrio deverá, por fim, se estabelecer. Em resumo, essa é minha tese e que a esperava concluir neste final de semana prolongado, não fosse aquela intrusa morena cor de canela que de modo inesperado tomou conta de mim e até certo ponto me dominou.
Eu temo e pressuponho que meu trabalho ficará inconcluso, mas pelo menos já posso contar com novas experiências com o sexo oposto, que de alguma forma enriquecerá o conteúdo de minha tese, visando desmascarar o machismo que, segundo defendo, está com os dias contados.
- O que você está pensando querido? Não me vai dizer que é na sua mulher que hoje tive a infelicidade de conhecer. Para mim ficou comprovado o que eu já suspeitava, isto é, que ela não te merece, sabia?
- Você tem razão, querida. Eu e ela não nos merecemos, por isso o destino se encarregou de nos separar, da mesma forma que a separou daquele pilantra que só se aproveitou de você, por isso mesmo não a merecia também. Cada vez mais acredito que Deus realmente escreve certo por linhas tortas. Mas...
- Mas, o que?
- Tenho medo de não merecer este presente que me caiu dos céus. Você, que é tudo para mim. Pressinto, infelizmente, que você ainda não é minha.
- Não acredito que você duvida de mim. Pensei que depois de alguns meses de convivência já estávamos estabelecidos e seguros do que queremos um do outro. Eu achava que de mim você só queria amor, carinho e tudo o que eu posso e me proponho fazer para que sua vida seja um mar de rosas, e o que tenho a lhe dizer é que nascemos um para o outro. Você existe para mim e eu só pra você.
“Venho cuidando de nosso cantinho, deixando tudo limpo e organizado, preparando seu cafezinho, cozinhando os pratos de sua preferência... A gente só sai para comer fora, quando queremos algo diferente e é sempre você que me convida. Por mim, eu nem sairia dessa nossa toca, onde estamos passando tanto tempo juntos, só fazendo o que nos dá prazer”.
“Eu não sinto falta de nada, nem tenho dúvidas que serei sempre sua por toda vida”.
Mas também quero que você seja só meu e prefiro morrer a ter de lhe compartilhar com outra mulher. Eu já lhe disse isso muitas vezes. Será que ainda tem dúvidas? “Poxa, o que mais você quer”?
- Sabe, querida, ...
Foi aí que errei ao lhe recomendar o que eu achava certo e, no entanto, foi a recomendação mais errada que fiz para ela.
“Eu lhe disse, assim que adentramos o meu escritório, nosso lar desde há dois ou três meses, mas ela nem ligou e me abraçou desprevenido. Ao invés de beijá-la, eu me afastei dizendo, o que nunca deveria ter dito.”
- Eu venho pensando que seria bom também você fazer um curso de informática, até para me ajudar nos meus trabalhos advocatícios, digitando peças processuais, elaborando tabelas, formulando cálculos e até mesmo dando alguma sugestão para minhas petições, contestações, impugnações, etc. Você se lembra de que eu lhe disse que quando sugeri que minha ex deveria estudar para não ser uma mera lavadora de pratos...
- Sim, ela se enfureceu e aí foi o fim do seu casamento.
- Mas Isso só ocorreu porque ela interpretou aquilo como uma exigência descabida e uma humilhação, quando a fiz entender que, caso contrário, ela iria passar o resto da vida lavando pratos.
Não é o que estou querendo dizer para você, entenda bem, pois ainda é jovem e tem a vida toda pela frente. Se estudar e entender de computação, tudo entre nós ficará mais ágil e fluirá com mais rapidez, que é o que exige o mundo dos negócios.
- Ah, então você não me aceita como sou e quer não somente uma mulher amada, mas também uma empregada para facilitar seu trabalho advocatício, né? Agora entendi. Deixe comigo.
Ai como fui infeliz ao lhe recomendar essa sugestão. Se arrependimento matasse, eu já estaria morto, o que seria até melhor. Pois o pior estava para acontecer.
Alguém já disse: Conhecer é poder. Assim, manda quem pode, obedece quem tem juízo. Não estou dizendo nenhuma novidade. Mas a vida é mesmo assim. Como dói constatar a realidade.
Dentro de três meses, minha adorada companheira recebia um certificado do curso de conhecimentos básicos em informática, incluindo Word, Excel, navegação em Internet, como receber e enviar e-mails, participar de sites de relacionamentos, etc. Ai, cruzes!
Mas durante esse tempo, eu também me reciclei. Cortei os cabelos nos moldes sociais, raspei aquela barbicha desordenada, passei a usar ternos, gravatas, sapatos caros em vez de tênis encardidos, perfumei-me, enfim, fiquei nos trinques.
Para a morena comprei uns guarda-roupas com tudo de modas e novidades, enfim mudamos para um apartamento alugado e transformamos todo nosso modo de ser. No nosso novo lar, ela não cozinhava mais, não passava roupas, nem lavava louças.
Para isso contratamos uma empregada, enquanto eu e ela trabalhávamos no meu escritório, mexendo com papéis e computadores, analisando autos, formulando peças, protocolando petições, fazendo carga e devoluções de processos, etc.
Quase sempre jantávamos num restaurante, onde a comida era farta e variada, mas ao retornarmos para nosso ninho, as noites eram sempre magníficas, deslumbrantes, uma entrega total de um para o outro com surpresas e variações diversas na expressão de amor e vazão da sôfrega paixão que nos envolvia e nos escravizava mais e mais um ao outro.
Infelizmente, porém, diz o ditado que “não há bem que sempre dure”, consolando-nos de que o mal também tem o seu fim. Depois de uma curta duração, e quando tudo corre bem, até o tempo parece que voa. Ao contrário, porém, quando o pior acontece, parece que a amargura não tem fim, por mais curta que seja.
“Numa manhã, eu acabara de tomar banho e adentrei ao quarto, onde há pouco eu a havia deixada enrodilhada no edredom, qual uma gata repinchada. Estava ansioso por dar-lhe um beijo, mas o que encontrei foi somente a cama desarrumada, tal como ela sempre deixava ao se levantar, só que agora parecia haver algo diferente por ela ter-se levantada antes do horário costumeiro, além de eu ouvir sua voz ao telefone, dizendo alguma coisa mais ou menos assim:
“ Nunca amei tanto um homem como este, só que o amor acabou como tudo tem que terminar um dia”. Eu gostava dele do jeito que era antes, barbudo, cabelos desgrenhados, roupa fora de moda, com as golas das camisas encardidas e sempre desabotoadas, deixando à mostra seu peito forte, peludo, cheirando a homem másculo... É, isso mesmo. “Ele, depois que passou a usar ternos, barbear-se toda manhã, ficou cheiroso demais para meu gosto... E aí, fedeu, né? “Sei, sei”... Mas o que posso fazer? “Quando o procurei”, quase por acaso, eu estava em busca de um advogado e acabei encontrando um homem, antes de tudo, que, apesar de ser um profissional, parecia mais um guru da sorte, tanto que não tive dúvidas que ele seria em minha vida um bilhete premiado. Isso ele foi realmente até aqui e agora, mas chega...! Até a sorte é traiçoeira, sabia? Não se pode ficar agradecendo sempre à pessoa que nos dá a mão. Isso seria estar numa gaiola, qual um pássaro, cantando para quem o aprisiona. Eu ignorava isso, mas hoje sei que fui traída pela sorte, que deu em mim um golpe de mestra. “Eita sorte ruim foi essa que eu tive”! Meu homem foi bem enquanto não prestava e só era bom na cama. Depois que ficou famoso nos tribunais e deixou de beber, tornou-se impertinente. Eu não aguento mais olhar para a cara dele e já fiz minhas malas... Sim... Você vem me buscar? Ah, sei... Tudo bem..., ontem, ele deitou tarde, pois ficou até duas da madrugada no tribunal do júri... hoje ele dorme até depois do meio dia, mas ao acordar vem no seu pijama até a cozinha saborear o almoço quentinho na mesa, como sempre todos os dias, até ontem, mas hoje terá uma surpresa. Vai ficar sem almoço, sem jantar e sem dormir com a sua mulherzinha, sacou? Agora que entendo de computador e que conhecendo e agindo nas Redes Socais, não preciso mais de ninguém para dizer o que eu devo ou não fazer. Tudo bem se cuide você também, mas eu só vou ficar com você, se tudo o que me disse por e-mail for verdade. Se pensa em me enganar, esqueça-me. Quem entende de computador tem o mundo em suas mãos e no mundo os homens estão sobrando, mesmo que se diga que há sete mulheres para cada homem... Você acha que é verdade? A mulher que cai nessa, torna-se loura e louca, mas eu que sou morena, não me preocupo com a cor dos cabelos, se o computador faz de tudo. Faz morena ficar loura de olhos verdes, é pouco? Sei..., mas não vou me preocupar. Há, há, há. Vou deixar o coroa dormindo e lhe acompanharei até Bagdá, se for preciso. Mas não pense que vou dando assim a torto e a direito, pois o meu jus filósofo ensinou-me o caminho das pedras. Dizia que é dando que se recebe e quem semeia pedregulhos colhe montanha pedregosa e, que, sobretudo, é preciso saber o que vai receber, antes de dar o melhor de si. “Fique ele com a sabedoria de receber o que deseja e a ignorância de oferecer o que mais quer uma mulher, enquanto eu seguirei meu caminho ao seu lado, claro”.
“Só me lembro de que ao ouvir essas palavras, que me feriu como um punhal pelas costas, eu comecei a tremer”...
“Devo ter desmaiado”, pois quando voltei a mim, estava deitado numa maca de um hospital, recebendo soros e, ao me virar, vi pessoas ao meu lado, mulheres e homens de vestes brancas, examinando-me a pressão e trocando informações técnicas que eu não compreendia, mas sabia que tudo aquilo se tratava de uma crise em minha saúde, por alguma causa qualquer, que eu ignorava, mas precisei ser hospitalizado.
“Pensei angustiado e me perguntando sobre minha situação, sem ter nenhuma lembrança do que teria sido ou era”.
Nada se lembrava do que acontecera comigo, do que não tinha a menor ideia, porém queria entender o que era aquilo e onde é que eu jazia, sem nada recordar, apenas consciente de mim numa maca deitado, tendo minhas veias alfinetadas com agulhas me injetando soros ou medicamentos.
“De repente uma mulher loira se aproximou e me perguntou seu eu estava bem”. Fixei meus olhos naqueles olhos verdes e tentei me lembrar de onde eu conhecia aquela loura que me falava em tom tão familiar. Não lhe disse nada, apenas me fixei naquele rosto bonito e olhei nos olhos grandes e brilhantes dessa mulher desconhecida, mas um tanto familiar, que muito se interessava por mim naquele estado desesperador.
“ De repente, vi seu rosto se expandir e sacolejar para um lado e outro, seus lindos cabelos louros pegaram fogo e sua face se retorceu, transformando-se em figuras de animais conhecidos, tais como gatos, cachorros, porcos, cavalos, vacas e até cobras, etc.
“Eu queria dizer qualquer coisa, mas não conseguia. Sentia-me preso em meu leito, tomado por uma grande angústia que me oprimia e me deixava sufocado, desesperado, querendo gritar por socorro àquelas pessoas ali do lado que conversavam, riam e gesticulavam sem sequer olharem para mim, exceto aquela que fixava os olhos nos meus e me inquiria, pedindo contas e satisfação sobre promessas e compromissos que eu ignorava.
“ Aquele rosto se me fez familiar, tanto que nele reconheci minha esposa, tão solícita e preocupada comigo naquele estado. Assustado eu me achava e me assustei muito mais quando ela sorriu e mostrou seus dentes brancos e bem alinhados, como eu bem os conhecia e admirava, mas que me pareceram agressivos, a tal ponto que vi suas presas crescendo e sua boca escancarando um riso cínico, como querendo dizer que eu era nada mais que sua presa, sem chance e defesa.
“Meu pescoço! Sim, pensei, ela quer sugar minha jugular... Ela sempre sugou minhas energias, enfraqueceu-me, mas restaram-me forças para fugir dessa predadora. “Escondi-me em meu escritório e um anjo me protegeu, mas o diabo da minha mulher interferiu e me carregou a este hospício para me internar como louco”.
“Não tenho certeza porque não me lembro, mas acho que gritei de medo...”
Todos se voltaram para mim, acudindo-me e me apalpando, com aqueles telescópios, palavra que ouvi ou me vieram à mente e que não sei se realmente existe no dicionário técnico da medicina. O que me recordo é que aqueles paramédicos me pareceram muito preocupados e recomeçaram a me examinar, cochichando entre eles. Vendo-os assim tão agitados e trocando informações que eu ouvia, mas não entendia, tive um surto de pânico e gritei para todos os cantos: - Mamãe, mamãe, eu quero chupar leite!
“Ele está delirando”.
“Complexo de Édipo”.
“Vamos chamar o doutor Eleutério”
“Sim, também acho”.
“É caso psicanalítico”.
“Mas a pressão dele está normal”.
“Os batimentos cardíacos não apresentam alterações”.
“São indícios inequívocos de que é um o caso psicótico”.
“Num átimo de agonia, ergui-me no leito e perscrutei os olhos de cada um que ali estava opinando sobre meu estado de saúde e, por fim, contemplei uns olhos verdes me olhando e arregalados de um canto do quarto daquele hospital. Era ela, a mulher dos meus sonhos, aquela que sempre esteve ao meu lado e nunca me decepcionou.
“Pensei, mas porque eu estava ali perto dela e me sentindo tão distante, como se aquela mulher que eu bem conhecia fora uma pessoa insensível, uma intrusa em minha vida. Sim, ela era familiar, mas o que estava ela fazendo ali e o que eu tinha em comum com ela?! Nada nela me recordava algo que algum dia tivesse a ver comigo, mas seu rosto era tão familiar que eu não conseguia despregar os meus olhos dos olhos dela.
“Fixei mais ainda o meu olhar naquele rosto conhecido, mas não lembrado, daquela bela mulher loura me olhando e derramando lágrimas por mim e me senti ameaçado, sei lá por que.
“ Sem eu saber como e por que, vi a face daquela loira que veio a mim e me beijou nos lábios, dizendo com lágrimas nos olhos: “Eu te amo e sempre te amarei. Nunca vou te deixar sozinho. Aconteça o que acontecer, eu cuidarei de ti até sua morte, assim como juramos diante do altar: Até que a morte nos separe”.
“Com o meu peito arfando”, virei meu rosto para qualquer lado e o que vi, ao votar o meu olhar, foi o rosto transtornado de uma mulher loura que me encarava com olhos esbugalhados de rancor, com um bisturi na mão, contra a minha garganta, ameaçando matar-me ali, se eu a trocasse pela enfermeira morena, a que me recebeu na internação naquele hospital, após ter sido encontrado em coma no escritório, o que eu soube só mais tarde.
“Virei meu rosto para qualquer lado e o que vi foi à face de uma morena cor de canela que me encarava com olhos brilhantes de amor, de braços abertos e, pegando em minhas mãos, perguntou-me se eu estava bem”.
“Respondi que sim, mas que não sabia onde eu estava.
“ Num hospital, ela me disse. Logo você vai ter alta.
“Não sei se dormi ou desmaiei, e me lembro de que eu estava num corredor deitado sobre uma maca, sendo empurrado por enfermeiros, mas que parou frente a uma ambulância na saída do Hospital.
“ Uma linda mulher Loira, que muito me era conhecida, eu a vi diante de minha maca e que não sei por que, foi me dizendo:
- Você me disse que ia terminar sua tese de doutorado, precisando se isolar no fim de semana, mas nada fez do que beber, vomitar e dormir trancado no escritório. Bem que eu desconfiei e, atenta, fiquei de olho.
Tivemos que arrombar a porta porque eu cansei de ligar e você nunca atendia. Quando adentramos no escritório, você estava desmaiado no sofá, espumando pela boca, o copo pela metade na mesinha do centro e a garrafa tombada no tapete, já vazia.
“Nada entendi por isso não respondi. Fiquei apenas olhando para aquele rosto familiar, mas que não reconhecia e apenas via-o como ameaçador em seus olhos cheios de ternura.
Como podia ser isso? Eu me sentia amado e odiado ao mesmo tempo. Sim, era essa minha doença, ou seja, a culpa e o perdão estavam à minha mão, mas eu não reconhecia uma e rejeitava a outra.
- Assim não dá, - exclamei e pensei sem falar:
“Ela disse que vai cuidar de mim até que eu morra, em cumprimento a um juramento consagrado no altar, mas como é que sabe que eu morrerei antes dela? Então gritei: Meus Deus, você vai me matar!”
“ Surpreendi-me com minha exclamação e fechei os olhos. “Por que falei se não sei mais o que pensar”?
“Só lembro que tudo se revirou e eu não vi mais nada, a não ser caindo-me para trás.
“ Não sei quanto tempo dormi, ou permaneci em coma, mas quando voltei a mim, deparei-me com duas mulheres ao redor de meu leito.
Uma era loira e de meia idade, estatura mediana, vestida toda chiquérrima e me olhando furiosa com seus olhos esverdeados.
“A outra era morena, alta, com os cabelos presos numa presilha, toda vestida de branco. Era a enfermeira encarregada de me medicar.
Achegou-se a mim, tomou o meu pulso e me perguntou se eu estava bem.
- Sim, com você aqui, nada poderia ser melhor.
“ Ela enrubesceu e me disse: Cuide-se. Qualquer coisa, eu estou aqui. Só me chamar.
Em seguida saiu do quarto.
“Eu acho que tudo isso foi um sonho. Ou um pesadelo. Não tenho certeza de nada. A última coisa que me lembro desse drama todo é que ao virar-me para o lado e tentar esquecer tudo, deparei-me com um rosto enfurecido e dois olhos verdes avermelhados me fustigando.
“ Quando a enfermeira morena saiu do quaro, eu me vi sozinho na companhia da loura suspeita com seu bisturi na mão, ou algo semelhante. Sorrindo aquele riso sarcástico ela veio até mim deitado, de costas na cama e então identifiquei que sua arma era um punhal afiado
“Antes que ela cravasse em meu peito o punhal da vingança, eu vi seu rosto se esquadrinhar, tornando se um quadrado, depois um triângulo, um losango e, enfim, um círculo sem começo e nem fim. Revirando os olhos, sua cabeça tornou-se uma circunferência.
“ Sem saber por que e como, eu me achei no escritório, onde tudo começou. Depois de ligar meu computador, fui até o frigobar procurar uma bebida. Tomei da garrafa de rum e enchi o copo até a metade.
Beberiquei e me sentei diante da tela daquele micro ali brilhando.
O que vi foi o rosto bonito de uma mulher loura, que foi ficando aos poucos morena, tal como um dia que amanhece e se vai esvaindo até o entardecer e se finda no escurecer.
“Enquanto eu contemplava espantado na tela do computador aquela mulher, que me olhava com olhos furibundos e me acusando de ser eu o causador de sua desgraça, eis que de repente aquele rosto conhecido se transformou, ficou quadrado, depois redondo e se alargou numa elipse, na qual duas estrelas se chocaram, provocando um incêndio que terminou em cinzas e se espalhou por todos os cantos, culminando com um trovão que me pareceu um resmungo, ou gemido de tristeza.
“Diante de meu computador ligado, naquela manhã, em que já estava acordado mais de uma hora e meia, eu me achava assentado diante do dever, no dia e horário, que era desde a zero hora, o dia Primeiro de Maio.
Demorei para encontrar as chaves de todas as minhas anotações, mas por fim as encontrei caídas no chão ao lado do sofá e duma garrafa de rum vazia. Minha cabeça doía, mas minha maior preocupação era saber se minha tese de sociologia jurídica estava realmente salva no computador.
Tinha certeza que eu a tinha terminado, mas será que tinha mesmo?
"Minha cabeça estava latejando de dor, mas felizmente, ao acessar meu micro, vi com alegria que minha tese estava lá, escrita e salva.”
Feliz da vida eu me apresentei à banca examinadora minha tese e obtive nota dez com elogios, mas uma semana antes eu tive que sair de meu escritório. Que dificuldade!
Mais uma vez procurei as chaves para sair do meu escritório, mas por fim, com dificuldades, as encontrei caídas no chão ao lado do sofá e as agarrei com alegria.
Diante da Banca examinadora minha tese foi tida como muito bem escrita, sob minha pesquisa e obtive aprovação com nota máxima e exaltação de méritos e sucessos promissores.
Meu computador estava em tela de descanso. Toquei-lhe numa tecla e a tela se iluminou e apareceram duas mulheres se beijando e fazendo amor. Uma era loura de olhos verdes e a outra morena clara, porém eu já as conhecia. Eu as amava. Elas também se amavam, mas eu também as odiava e as temia, e acho que as temerei para sempre.
As duas mulheres lindas, uma loira e outra morena fizeram amor ali em minha frente, com um frenesi entre abraços, mordidas, gritos e gemidos de prazer que até me excitou e não me contive e acabei molhando a cueca e minha dor de cabeça passou.
Mas por fim, meu computador acessou o texto de minha tese sobre o machismo e eu pude constatar que tudo estava bem escrito e salvo para dali a uma semana ser apresentado à banca examinadora, como de fato fora, como já afirmei.
Fiquei feliz.
Desliguei o computador, abri a porta do escritório e saí, sem perceber que uma chuva fria e fininha caía lá fora. Eu estava sem guarda chuvas, mas o bar era ali bem perto. Fui até lá, sentei-me numa mesa, veio o garçom e me apresentou o cardápio. Pedi apenas uma dose de rum.
EPÍLOGO
- Sim, eu vou fazer tudo isso por você. Mas antes eu quero lhe dizer que você não está com toda a razão porquanto não respeitou meus direitos.
Avancei-me e agarrei-me àquela gata, roubei-lhe o seu (meu roupão), deixando-a nua, arrepiada e peladinha e eu, tenso e tonto de excitação, nada fiz. Encabulado, fui até a janela e contemplei a rua, olhando para fora, para o mundo, simplesmente para o nada.
Senti um agarro por trás e umas unhas me aranhando as costas, e, ao me virar, me dei com a boca de uma gata, para dizer, felina, já é demais.
Eu juro, porém, que aquele favo de mel exalava um olor de flores silvestres e sem me dar mais tempo, de uma boca aberta, entre lábios quentes, uma língua fria deu-me uma picada e me anestesiou naquele sofá-cama.
Meu impulso natural foi me desvencilhar-me daquele abraço apertado, mas foi tudo em vão. Fiquei todo cheio de mim e falei:
- Eu nunca tive dúvida do meu amor por ela, - Foi o que eu disse meio com dor na consciência.
- Você se culpa tanto. Relaxe e esqueça seu passado. Ninguém tem culpa de nada. A gente faz o que acha certo e se der errado é porque não tinha que dar certo. A culpa é de ninguém. Você sabia disso?
"Não resisti e me capitulei ao sentir um toque daquela felina, lambendo os meus lábios e enfiando a pontinha da língua na minha boca, me assustando num esgar. Debrucei-me sobre aquela deusa e o que senti foi estar fora de mim, flutuando no espaço, num êxtase que me pareceu durar uma eternidade e justificou minha existência miserável neste mundo caótico.
Não sei se desmaiei ou se me deixei de existir, o fato é que me senti voltando como que de um lugar distante e tive a impressão que estava caindo num abismo sem fim, sendo ao mesmo tempo alçado por dois braços macios, aconchegando-me a um colo quente e que me dava toda segurança naquele sofá-cama de meu frio escritório de advocacia, como se acordasse na cama na qual nasci, parido nas dores de parto de minha mãe querida.
Penso que um ato sexual, ou melhor, um ato de amor, tem tudo a ver com nossa chegada a este mundo, assim como com nosso último repouso, o sono eterno da morte. Início e fim da vida jazem ali,entrelaçados, e a história de um vivente começa, prossegue e termina, dividindo e somando tudo o que há de bom e na conta de tirar deixa o restante a somar.
Quem ousa subtrair, só pensando em si nessa entrega e, sem se doar totalmente, buscando mais receber do que dar, é egoísta e não sabe o que perde. Nada ganha, não se reconhece e se afasta de si mesmo, perdendo-se no próprio caminho aonde irá se encontrar consigo mesmo, talvez gemendo e chorando.
Ah, ia me esquecendo. A última frase que li em meu computador e que ficou registrada em minha mente,foi simplesmente, o Tema de minha tese de doutorado:
MACHISMO QUANDO COMEÇOU E QUADO IRÁ TERMINAR?
“ Aqui findo a trajetória que fiz do meu maior sonho para defender minha tese contra o MACHISMO EM NOSSA CULTURA.
“Em minha Tese Jurídica e Sociológica demonstrei as razões dos fatos, além de questionar culturas prevalecentes, às quais o machismo interessa”. Minha Tese, é que o machismo é o Mal e o atraso do Mundo, exposto neste conto.
MACHISMO QUANDO COMEÇOU E QUADO IRÁ TERMINAR?
“Aqui findo a trajetória que fiz do meu maior sonho para defender minha tese contra o MACHISMO EM NOSSA CULTURA.
“Em minha Tese Jurídica e Sociológica demonstrei as razões dos fatos, além de questionar culturas prevalecentes, às quais o machismo interessa. Minha Tese, é que o machismo é o Mal e o atraso do Mundo, exposto neste conto.
Daí minha TESE: MACHISMO ONDE COMEÇOU E QUANDO TERMINARÁ?
Naquela tarde de uma sexta-feira cinzenta, começava a cair uma garoínha fria e fininha, quando resolvi dar por encerrado meu expediente e sair para tomar um trago, comer qualquer coisa, encontrar alguém conhecido para um bate-papo, enfim, decidir o que fazer naquele prolongado fim de semana, já que na segunda-feira, dia do Trabalhador, não era dia de se trabalhar e sábado e domingo, muito menos.
Eu havia atendido o meu último cliente cerca de uma hora atrás e até então estive procurando pôr em ordem minha mesa desorganizada, repleta de papéis e autos processuais empilhados e empoeirados, tal minha falta de tempo nos últimos dias para me ocupar deles. Fiz uma arrumação mais ou menos, e no exato momento que o relógio de parede soava uma badalada, marcando cinco e meia da tarde, eu estava às voltas revirando meu escritório à procura de um guarda-chuva, já que a garoínha tornara-se garoa e prometia transformar-se numa chuva logo mais. E o que era pior, eu estava sem carro, tendo-o deixado na garagem de minha casa, quando de lá saí, há menos de uma semana, disposto não mais voltar e sem nada de lá ter retirado para não piorar ainda mais meu falido casamento.
Logo que encontrei o guarda-chuva, atrás da estante, onde havia escorregado quando o pus em pé dias atrás e, ao sair, puxando porta que estava destrancada, me dei de cara com uma bela jovem morena clara, dessas que denominamos cor de canela, uma autêntica estátua de Antônio Francisco Lisboa, nosso famoso Aleijadinho, feita em pedras de sabão, ali petrificada em minha frente, com um belo sorriso congelado em sua face corada.
- Eu ia apertar a campainha e no exato momento o doutor abriu a porta, - Disse-me ela, um tanto constrangida, remexendo sua bolsa à procura de alguma coisa até que encontrou um cartão e, sem me entregar, disse de si para consigo, - É aqui mesmo.
- Pois, não, tenha a bondade de entrar e fique à vontade.
Foi o que eu consegui dizer, fazendo gestos com as mãos para ela se adentrar, sentar-se e me contar o seu problema jurídico. Era desse modo que eu sempre recebia os clientes e já se tornara jargão eu começar perguntando-lhes qual era o nó da questão que os trazia até mim. Dessa vez não foi diferente e ela, após entrar e me seguir até minha mesa, ficou em pé, frente a mim, e começou a falar, um tanto depressa.
- Eu quero contratar seu serviço de advogado para defender meu marido, que foi preso hoje de manhã, quando a polícia entrou em nosso barraco, portando um papel escrito e assinado por um juiz...
- Um mandado judicial de prisão, você quer dizer, – foi o que eu lhe disse, ao mesmo tempo pedindo para que se sentasse e acrescentei:
- Mas qual o motivo de a polícia ir até o seu barrac..., ou seja, sua casa e prender seu esposo?
Ela baixou os olhos, comprimindo os lábios, olhou em volta, estalou a língua e prosseguiu sua narração.
- O policial, que o algemou, disse que meu marido é traficante e até me mostrou uns papelotes com uns pós-branco, dizendo que estavam nos bolsos das calças dele, quando o prendeu.
- Sim, entendo, - disse-lhe eu, observando-a melhor e, quando a encarei, baixou os olhos (novamente), tentando segurar um sorriso, o que nos deixou ambos, encabulados.
- Sente-se e fique à vontade, repeti completando- lhe. - Eu ainda tenho tempo e não dá mesmo para sair com essa chuva torrencial.
Ela não se fez de rogada e sentou-se tranquilamente na poltrona em minha frente, cruzando o belo par de pernas, que, com aquela saia curta, era uma tentação ou um convite diabólico, para um homem sentir-se bem ou mal.
Nervoso, acendi um cigaro e, dando algumas baforadas, pedi que me narrasse o caso completo, sem nada omitir, nos mínimos detalhes. O que ela me disse em seguida, francamente me surpreendeu e me encabulou.
- Antes de eu contar minha vida para o doutor, será que eu poderia tomar um banho e passar a noite aqui no seu escritório? Eu não tenho para onde ir e a noite vem com esta chuvarada que não dá sinal de parar...
- Como assim? - Perguntei-lhe cheio de dúvidas, boas e ruins, olhando-a seriamente nos olhos.
- Você não disse que a polícia foi hoje de manhã até sua casa e ...
- Deixe-me explicar – interrompeu-me ela, esboçando um lindo sorriso que a fez ainda mais bela (e tentadora) diante de meus olhos deslumbrados, que os abaixei encabulado, apagando o cigarro, apertando-o contra o cinzeiro.
Meio encabulada, ela continuou:
- O caso é que não se trata de uma casa e sim de um caso entre a gente e que foi terminar num barraco de um casal de amigos, onde ele se escondia da polícia, mas sempre aprontando das suas, levando-me em sua companhia, desde que deixei minha família para conviver com ele, o que foi uma grande burrada minha.
Fitei-a novamente, sem saber o que lhe responder ou perguntar, mas ela não deixou por menos e se levantou para vistoriar o aposento, andando para lá e para cá, como que procurando algo, depois voltou-se e se estacou em minha frente e me falou num ápice, mais que o que dizia era um sonho...
- Eu acho que estarei bem acomodada aqui por uma ou duas noites, até decidir o que fazer de minha vida.
Ao que eu lhe respondi, ainda duvidando se o que ela dissera para si e consigo era uma pérola, como eu imaginava, ou uma outra pedra em minha caminhada.
- Pensei que já estivesse decidida quando propôs contratar-me como advogado de seu marido.
Assim lhe falando, levantei-me da cadeira, indo até outra mesa e me pus a revirar gavetas sem saber ao certo o que estava procurando, enquanto ela falava, sem parar, que não mais queria saber do marido e já estava disposta a mudar de vida.
Achei que ela estava confusa e então a interrompi.
- Se já não gosta dele, por que veio contratar meus serviços para defendê-lo? Não seria mais sensato deixa-lo lá no xadrez e começar um novo modo de vida?
“Com estas palavras, num ímpeto voltei para a minha mesa principal de trabalho e abri uma gaveta sem saber sequer o que estava procurando”. De costas para ela, ouvia o seu tagarelar.
- Eu sei que preciso mudar de vida e andar certa daqui pra frente. Na verdade, eu nunca amei aquela praga e só o acompanhei para me livrar dos meus pais que não paravam de pegar no meu pé. Só que eu já completei vinte e um anos e acho que sou dona do meu nariz. Daqui por diante não vou dar satisfação a mais ninguém. Só ao senhor, o meu advogado e defensor.
“Voltei-me para ela com um glossário na mão e lhe disse com o dedo em riste.”
- O Senhor está no céu e eu me contento em estar na terra, sem ser senhor ou servo de ninguém. Está bem assim? E digo mais, como ousa me chamar de seu defensor, quando vem a mim para defender seu marido?
“Sua resposta me foi surpreendente.”
- Já lhe disse, não quero mais aquele traste em minha vida, somente gostaria que ele saísse da cadeia e fosse feliz ao seu modo e deixasse de aprontar arruaças.
- Bem, respondi, uma coisa é ser profissional advogado para contratar sua causa. Bem outra é ser um psicólogo para tratar de pessoas desajustadas, o que eu não sou. Longe de mim complicações de casais que não se entendem e pensam que o problema é para os outros resolverem e não eles próprios.
- Então me diga o que tenho a fazer, se é que você é casado e entende de um relacionamento a dois. Pensei que...
Não lhe permiti completar a frase e fui logo respondendo:
- Não seja frívola, garota! O fato é que eu também não tenho para onde ir e já faz quase uma semana que me sinto um prisioneiro neste escritório. Aqui trabalho e também moro, saindo apenas para comer fora, pois até minhas roupas a lavandeira que contratei vem buscar e trazer. E antes que me pergunte, eu já lhe vou esclarecendo suas dúvidas. Meu casamento foi por água abaixo depois que minha mulher fez um curso de computação e começou a trabalhar numa escola de informática.
- Sinto muito por isso, mas lhe garanto que vocês dois nunca se amaram de verdade, estou certa?
Juro que vi lágrimas escorrendo em sua face, enquanto me pegava pela mão e me fazia sentar ao seu lado naquele grande sofá-cama, arás da estante cheia de livros, para onde me levou, como que me farejando, qual uma loba, e roubando minha concentração e meu coração, além de me raptar também. Pensei comigo: “Esta ladra rouba-me, e eu sei de quem.” Ela soltou minhas mãos e foi emendando:
- Eu sei que não é fácil para certos maridos aceitar o fato de suas esposas trabalharem fora de casa hoje em dia, mas isso não pode mais ser evitado.
Olhando aqueles olhos negros, fitando os meus e parecendo querer me engolir com prazer, acho que ainda fui bobo em argumentar:
- Não é bem isso que você está pensando, porque eu mesmo estimulei minha esposa a estudar e se profissionalizar, para ser alguém na vida. Só não esperava, é claro, que ela sofresse brusca mudança e passasse a hostilizar-me ao ponto de me expulsar de casa e ter que passar a dormir neste cubículo, onde você pensa que também vai ficar, sem mais nem menos.
Sem pestanejar, cortou-me ela:
- Acho que até então essa sua mulher loira não era nada mesmo. Ou talvez fosse um zero à esquerda em sua vida. É isso que quer dizer? E, antes que me responda, eu lhe pergunto ainda, o porquê não posso ficar aqui e lhe fazer companhia, ajudando-lhe no que for necessário, se nós dois somos descomprometidos e desconsiderados por nossos pares.
Sem entender como ela deduziu que minha mulher era loura, encarei-a com surpresa, pois percebi que as coisas estavam tomando um rumo inesperado, diante daquela morena que mal eu acabara de conhecer.
Suas perguntas me pegaram de surpresa e vi que ela era bem mais inteligente do que eu supunha. De algum modo achei que ela não estava de toda errada. Eu nunca gostava de ver minha esposa só cuidando da casa, pois achava que ela tinha talento para algo mais e embora fosse uma excelente dona de casa, era formada em pedagogia, daí deveria buscar outro patamar de vida.
Numa discussão que tivemos num domingo, após o almoço, eu lhe dissera com o indicador em riste: “Se você não se mexer, vai passar o resto da vida cozinhando e lavando louças. É isso que você quer? ”
“ Lembro-me que ela se virou para mim com a cara lambuzada e os cabelos despenteados, gritando com os olhos esbugalhados”.
“Você ainda vai ver do que sou capaz, seu cretino! E vai se arrepender de tudo o que me diz agora, por ser mal agradecido e Ingrato”!
Dando uma gargalhada, diante de minha cara de bobo, ela voltou a esfregar a bucha nas louças, cantarolando a velha canção: “Durante o dia lava Louça e à noite beija a boca”.
- Esta é minha história, garota. Não perdoei sua risada sarcástica e há cinco dias saí daquela casa infernal e vim para aqui neste meu escritório, a fim de terminar minha tese de doutorado em Sociologia Jurídica, uma ciência a que me dedico, além de advogar: MACHISMO, DE ONDE VEIO E ATÉ QUANDO VAI DURAR.
“Como vê, estou quase terminando, mas não sei se vou poder apresentar diante da banca na próxima semana, depois que você se intrometeu na minha vida. Não consigo pensar em mais nada e a conclusão, ainda por terminar, deverá resumir tudo o que argumentei em mais de trezentas páginas. Só mesmo uma mulher para explicar tantos desencontros entre casais, muitas desavenças em famílias e múltiplas batalhas no seio da sociedade.”
A morena de olhos negros, fitos em mim, sorriu e se achegou ao meu lado, tentando entender o que eu escrevia no computador, mas se inclinou para trás, esvoaçando aqueles cabelos pretos e compridos, roçando a face em meu rosto a exalar o mais puro cheiro de âmbar, que me deixou inteiramente excitado. Por isso mesmo afastei-me o mais que pude da presença daquele diabo tentador e fui sentar na poltrona atrás da escrivaninha.
- Sabe de uma coisa, querido. – Disse-me ela, puxando-me pela mão, levando-me novamente até o sofá, onde me abraçou e me deu o beijo que eu já esperava, porém muito mais saboroso que sequer eu jamais sonhara em meus quarenta e oito anos de idade.
Na verdade, foi somente ela que me beijou, pois eu não correspondi, devido à falsa moral que eu teimava em cultivar em relação à vida de casado. Contudo não fiz o menor esforço para afastá-la de mim. Mas ela se afastou e notei que ficou um tanto frustrada.
- Você vai me condenar por este beijo que eu sei e sinto que foi mais do que roubado? Acho que você não gostou. Desculpe querido, se eu me precipitei, mas é que estou tão confusa e carente, vendo em você um porto seguro nesta minha vida sem rumo.
- Só isso? Um ponto de apoio, um patrono e um pai, talvez?
Ela nada respondeu e, dando uns dois ou três passos, começou a mexer em meus livros na estante, como que os colocando em ordem, sem sequer abrir um volume. Em seguida virou-se e me perguntou:
- Sua mulher botou chifre em você?
- Não que eu saiba.
- Mas ela não o amava, com certeza. Vocês brigavam muito?
- Às vezes. Qual o casal que não briga?
- Você batia nela?
- Não, nunca! Em mulher, seja ela quem for não se bate nem com uma flor.
Ouvindo isso ela sorriu e veio até mim e, como que num impulso, passou sua mão em meu queixo, cofiando minha barba por fazer. Empertigou-se e emocionada falou:
- Que romântico! Você me parece ser também um poeta. Adoro homem assim. Só que é difícil acreditar se o homem diz a verdade. Todos eles mentem e ai de nós, mulheres, que acreditamos em príncipe encantado! Quando menos esperamos, é o cavalo xucro que nos derruba.
- Acredite ou não, - disse eu, segurando suas mãozinhas, com as quais ela tentava massagear meus ombros. - O que você tem é muito que aprender.
Ela sorriu, maliciosamente, e me fitou nos olhos, parecendo querer mais ouvir do que falar. Tive a impressão de que esperava um abraço e o beijo como prova a desmentir o que ela acabara de me dizer sobre homens traidores, quais cavalos indomáveis.
Em vez disso, levantei-me do sofá, soltei suas mãos e fui até o armário à procura de uma bebida que me relaxasse, mas só encontrei uma garrafa de conhaque vazia. Disfarcei, pois estava ficando encabulado e comentei que a chuva estava diminuindo, dizendo isso mais para mim do que para ela.
Quando a olhei, ela baixou os olhos, levantou-se e me olhou novamente, virou-se e caminhando pela sala, alisando aqueles lindos cabelos, lisos pela própria natureza e acabou dizendo a sorrir, numa tentativa, assim me pareceu, de recobrar o clima que havia ficado tenso:
- Você já bateu em sua mulher?
- Nunca. Apenas discutimos e nos discordamos. Fisicamente, jamais nos agredimos. Sempre cumpri o provérbio que diz: “em mulher não se bate nem com uma flor”.
- Acho que você está enganado ao generalizar, pois há mulheres que precisam apanhar dos maridos, de vez em quando. Eles nunca sabem por que batem, mas elas sempre sabem por que apanham.
Olhou-me para observar minha reação, mas o que viu foi um homem deslumbrado, de queixo caído, sem saber o que fazer com aquele presente do céu ali na frente. Respondi que já conhecia essa anedota e que não tinha a menor graça.
- Eu já lhe disse a pouco que estou escrevendo uma tese sobre o machismo, por isso não comungo dessas ideias retrógadas.
Ela não se fez de rogada e num riso, um tanto forçado, concluiu sua filosofia barata, que eu já esperava e mentalmente antecipava: “Uma briguinha de vez em quando não é tão ruim assim. Tapinha de amor não dói. Mulher é que nem pernilongo, só se sossega com tapas, sabia”?
- Você é masoquista, menina? Pelo jeito gosta de apanhar e eu não duvido nada que esse seu maridinho pilantra já lhe deu umas boas surras. Devia ficar contente por ele estar preso, mas ao invés, sai perambulando por aí à procura de um advogado para tirá-lo da cadeia que ele bem merece.
Ela quis falar qualquer coisa, mas eu não a deixei e mantive minha posição, fazendo-lhe ver que o homem que bate em mulher não passa de um canalha e o que dela apanha não é digno de seus carinhos.
Àquelas alturas a chuva havia cessado e como já começava a escurecer, eu achei que o melhor era sair para jantar.
- Você deve está com fome, garota, não é mesmo?
- E você não está? Homem não é tão forte como imagina.
- Não estou falando do que há em sua imaginação e sim do meu estômago, “já roncando de fome no final de um dia e no iniciar de outra noite”.
- Depois que me vi longe de casa, almoço e janto no restaurante da esquina porque é o mais perto de meu escritório. Quer jantar comigo?
Ela não se fez esperar e abraçou-me novamente, mas desta vez evitou me beijar, contentando-se em repousar sua cabecinha nos meus ombros, choramingando.
Desvencilhei-me dela e fui até a janela, dizendo mais para mim do que ao vento, que se sucedera à chuva e invadia o escritório esvoaçando mil papéis.
Ela ficou petrificada no meio da sala, segurando sua bolsinha, mordendo os lábios, com os olhos lindos e arregalados sobre mim, como querendo me devorar e, me engolindo.
Matar a fome era o que eu sentia também por ela. Mas para o jantar, eu estava com uma fome de cavalo, elefante ou porco. Reiterei meu convite para jantarmos e ela topou prontamente.
Saímos de mãos dadas e fomos ao restaurante indicado, um dos melhores do centro da cidade. Sentamos num canto discreto e o garçom apresentou o cardápio com tudo a que tem direito um casal vivo de amor e morto de fome. Eu comi pouco, enquanto degustava, num gole atrás do outro de uma garrafa do melhor vinho chileno.
Por seu lado, ela pouco falou, mas comeu com tanto apetite que me senti feliz só por estar dando de comer a quem tem fome, enquanto também beliscava a apetitosa comida mineira entremeada de uns bons goles de vinho.
Enxuguei a garrafa toda enquanto comia uns poucos bocados, surpreendendo-me ao vê-la tomar três doses de Martini, tagarelando e me contanto todo o seu passado, que eu fingi escutar.
O que me deixou surpreso, foi vê-la comer com tanto apetite, que até me senti gratificado e perdoado pelo “adultério cometido em pensamento” apenas por ter dado de comer a quem tem fome.
De volta para o escritório e abraçada em mim, ela estava expansiva e falante, mas apesar de ser comunicativa por temperamento, era certo que falava além do normal, sob o efeito do álcool das três doses de Martine doce que insistira em tomar, antes de abocanhar o bife acebolado e comer metade do macarrão que nos foi servido.
Confesso que comi pouco, enquanto enxugava a garrafa de vinho, observando-a portar-se como uma fera felina devoradora, desejando ser por ela devorado logo mais, durante a noite.
Nosso jantar terminou, não tínhamos mais fome senão de amor e carinho, muito caro, mas de graça. Paguei a conta e saímos os dois abraçados rumo ao meu escritório aonde me havia confinado, longe dos filhos e da esposa, para escrever minha tese de doutorado, criticando o machismo e apontando a via alternativa.
Enquanto voltávamos para o escritório, o meu aconchego naquele fim de semana, eu me sentia deprimido, até pela temperatura que caia cada vez mais, mas para ela eu era todo ouvido.
Aquela linda morena me abraçava e me beijava o tempo todo, acariciando meu rosto e me enlaçando num forte abraço. Eu me sentia o Adão com a Eva no paraíso, mas com a pulga atrás da orelha, já que tudo terminou mal com o primeiro casal deste mundo.
Chegamos, enfim, em nosso abrigo, o meu escritório de advocacia. Enquanto eu trancava a porta, ela remexia em sua bolsa, tirando duas escovas, uma para os dentes e outra dos cabelos e se dirigiu ao banheiro, enquanto eu me afundava na poltrona, esfregando as mãos no rosto e nos olhos.
De lá do banheiro me perguntou se eu não ia escovar os dentes, dizendo que eu podia fazê-lo, enquanto ela tomava banho. Eu lhe respondi que estava meditando e que ela ficasse à vontade. Na verdade, eu estava cochilando no sofá.
Confesso que dormi e acordei assustado com um roçar em minha nuca. Frente a mim, ela estava em um roupão de banho bastante usado e que eu já muito bem conhecia, tendo por baixo o seu traje provocante.
Aqueles olhos negros me olhavam. Um sorriso se abriu, maliciosamente. Meu impulso natural foi o do mais selvagem.
Ela saíra do banho, não enrolada na toalha, como eu imaginava, talvez mesmo torcendo por isso. Deixou cair aos pés o meu surrado roupão de banho, com o qual se encobrira para me surpreender e veio a mim vestida com a mesma roupa que trajava ao chegar ao meu escritório, ou seja, aquele saião rodado.
Sem que eu esperasse, deu-me um beijo na testa e foi direto para o sofá-cama e se deitou de pernas para cima, erguendo as saias e se abrindo como uma flor no seu desabrochar.
Eu levantei depressa e fui ao banheiro urinar, não fazendo outra coisa que matar o tempo, procurando pôr em ordem meus pensamentos, que a essas alturas estavam uma balbúrdia só.
Quando voltei, encontrei-a dormindo, meio encolhida e o que fiz foi colocar o cobertor sobre ela, mas com cuidado para que não acordasse e me fizesse deitar ao seu lado, o que eu mais desejava e temia. Isso tudo, eu sei, era escrúpulo, mas não deixei de esboçar um sorriso ao achar que aquilo se coadunasse com uma apropriação indébita, ou quem sabe um crime de adultério, já por demais fora de moda.
Dormi na poltrona não sei por quanto tempo, mas quando acordei estava frio e então fui deitar-me ao lado dela, apenas para aproveitar parte do cobertor, evitando-me encostar-se a ela. Dormi logo em seguida e não sei por quanto tempo.
Acordei com o sibilar do vento resvalando nas persianas, pois eu havia esquecido aberta uma das janelas e isso justificava porque aquela noite estivera mais fria que o esperado, apesar de eu não ter dormido sozinho, pela primeira vez nos últimos dias.
Pulei da cama, ou seja, do sofá e me afastando da morena cor de canela com quem dormi metade da noite sem sequer encostar-se nela. Dirigi-me à copa de pijama com pés descalços, fui preparar um café forte, mas antes dei uma espiada na intrusa enrodilhada em meu sofá-cama, com parte do corpo a descoberto, o que me fez sentir um calafrio, com a respiração acelerada e o coração saltitante no peito.
Ela se mexeu e se despreguiçou como uma gata, espichando os braços. Começou a tatear com as mãos, parecendo procurar algo ou alguém ao seu lado. Por fim abriu os olhos, bocejou e ergueu-se de repente, fazendo uma cara de surpresa, ao ver diante de si uma xícara de café fumegante em minhas mãos, o que a fez botar a ponta da língua para fora, lembrando-me uma serpente pronta para picar. Sorriu-me encantadoramente e eu a convidei para se achegar e tomar um café com biscoitos, já preparados sobre a mesinha do centro.
“(Eu e ela ali sozinhos. Adão e Eva no paraíso. Fruta doce é proibida... Mato a cobra e mostro o pau? O que será de mim doravante?)”. Talvez só Deus soubesse disso e mais ninguém.
Assim eu pensava, enquanto aquele mulherão se levantava do sofá e vinha até mim e me dava um beijinho, como há muito eu deixei de receber àquela hora matinal.
Tomei um gole de café, pensando. “Larguei um trem descarrilado para trás e eis me aqui frente a um avião moderno, pronto para alçar um voo rumo ao desconhecido! Mesmo assim, reluto em voar acima das nuvens de minhas dúvidas”.
Porém, absorto e indeciso eu a via aproximar-se, ajeitando a blusa branca sob a qual ressaltavam um par de seios, quais dois cachos de uvas maduras, pendentes dos galhos da verde videira e ainda cobertos de gotículas do orvalho da madrugada enluarada. Com os olhos arregalados e fixos naquele tesouro, eu engolia meu café em seco, enquanto ela puxava para cima a saia caída, deixando o umbigo à mostra. Saltitando, veio até mim e esfregou-se em meu nariz.
- Você dormiu comigo esta noite, seu malandro!
- Sim, dormi com você qual São Francisco de Assis com Santa Clara.
Ouvindo isso, ela arregalou os olhos, abriu a boca e sem nada dizer, veio até mim com o indicador em riste, pressionou o meu nariz, sentou-se e cruzou as penas.
- Você é safado, sabia? Aproveitou-se de uma jovem indefesa e dormiu com ela, quero dizer, comigo. Eu posso lhe processar por atentado ao pudor. Mas nunca eu farei isso, pois amo este homem derrotado e que me dá uma nova perspectiva de vida. Só quero que tire meu amado da cadeia. Ele é inocente. É pai de minha filhinha de dois anos. Quem cuida dela é minha sogra, mas a velha não me deixa ver minha filha. Você vai tirar meu marido da cadeia e ainda vai trazer minha filhinha para meus braços. Vai ou não vai?
Como era deprimente ouvir aquela tagarelice em mais uma manhã de ressaca, confuso e sem saber para que lado eu fosse ou voltava, tanto que eu disse a ela:
- Sim, dormi com você, mas não no sentido bíblico.
- O que quer dizer com essa história de Bíblia? Você é também um Pastor?
- O que eu quero lhe dizer é que não encostei um dedo em você nesta noite.
- Você não sabe o que perdeu. – Disse-me ela, enquanto levava a xícara de café à boca e me olhava com o canto dos olhos para ver minha reação.
Não consegui conter o riso e me engasguei com o café, num acesso de tosse. Embaraçada ela me perguntou seu eu era fumante.
- Não sou, - respondi. - Por sinal não sou dado a pequenos vícios. Só estou fumando há uma semana, mas ainda não me viciei. Estou em tempo de não me escravizar a mais um fantoche.
- Mas você bebe e não vai dizer que não, porque eu sei. E desde quando beber ou fumar é pequeno vício? E o que quer dizer com fantoche?
- Fantoche é tudo que escraviza o homem, inclusive a mulher.
Nem sei por que disse isso e ruborizei-me ao me lembrar de minha tese de doutorado. Ela nem pareceu notar e me fitava com aqueles olhos cor da noite, e, enquanto eu lhe respondia essa embaraçosa pergunta, coloquei a xícara sobre a mesa e, antes que ela dissesse qualquer coisa, emendei:
- Na verdade não sou fumante, senão uma vez ou outra, mas nunca gostei de fumar. Beber, muito pouco eu bebo, apenas nas grandes ocasiões. E não foi por isso que minha esposa me deixou, se é o que quer saber.
- Sua mulher o deixou? Você me disse que saiu de casa porque quis.
- Não, eu nunca quis. Fui obrigado a sair de casa depois que ela virou um bicho de pé.
- O que quer dizer com esse tal de bicho de pé?
- Quero dizer que depois que ela se transformou num animal, não parou mais de pegar no meu pé e a todo tempo enchia o meu saco.
A morena ficou em silêncio, tomando mais um xíara de café e, embora eu teimasse em não olhar para ela, percebia, pelo canto dos olhos, que ela me observava, tentando descobrir se eu estava ou não sendo sincero. Então eu me levantei encabulado e fui me sentar ao computador, enquanto ela me seguia com os olhos, (permanecia olhando-me) pensativa.
- Posso cuidar de você. – Disse-me ela, por fim, quando eu estava ligando o computador, sem saber o porquê e para que, pois já era sábado e eu não tencionava voltar ao trabalho antes de terça-feira, já que a segunda-feira era o primeiro de maio, feriado para o trabalhador. O que eu não sabia, era o que fazer para concluir minha tese de doutorado com uma sereia ali do meu lado, tentando me ensinar como é a vida e não como deve ser.
Achei por bem ficar em silêncio e continuei a mexer no computador, insinuando que a máquina estava com problemas e precisava de um técnico, que eu chamaria mais tarde.
Desliguei o aparelho e fui afastar as persianas e me dei com a janela aberta a me mostrar um maravilhoso dia de sol, naquela fresca manhã de outono.
Enquanto eu olhava para a rua, para o mundo e para o nada, senti aqueles braços me apertando e, ao me voltar, deparei-me com um par de olhos morteiros e, se não bastasse, novamente aquele sorriso inocente ou malicioso projetando de uma boca que mais parecia um favo de mel, tive medo que naqueles doces lábios melados se escondia, oculto, um ferrão de abelha. Não me enganei, infelizmente.
Num impulso natural, tentei-me desvencilhar daquele abraço apertado, porém desta vez, fui fraco e me vi capitulado. Também pudera! Senti aquela felina roçar meus lábios com a pontinha da língua e o que se sucedeu depois, foi indescritível.
Enquanto ela gemia e gritava mais, mais e mais... Senti-me arrebatado ao paraíso num êxtase que pareceu durar uma eternidade, justificando minha existência miserável neste mundo. Não sei se desmaiei, contudo, me senti voltando como de um lugar distante e minha impressão foi de que estivesse caindo num precipício e fora alçado por braços macios e aconchegado a um colo quente que me prendia, protegia-me e me dava toda segurança, embora eu me achasse num pináculo balançando.
Dúvidas, na certa... Recordei-me da professorinha de catequese, na escola dominical, com aquele sorriso tristonho a dizer para toda a classe, nos domingos de manhã, sobre a sabedoria:
“Peça-a, porém, com fé, em nada duvidando, porque quem duvida é semelhante à onda do mar, que é levada pelo vento, e lançada de uma para outra parte” (Tiago 1:6).
O que sei é que depois daquele ato de amor, restou-me mesmo grande dúvida entre o amar e o sofrer, pois a morena, se aconchegando sempre mais e eu procurando mais e mais me desvencilhar, atracou-me de certo jeito que eu me vi como um boi enrodilhado por uma cobra jiboia à beira duma lagoa, bufando e prestes a uma comilança de ambas as partes.
Enquanto eu fantasiava, ou delirava sobre o que era ou não era, naquele café da manhã. Voltei à realidade enquanto a morena me dizia:
- Se é mesmo que você bebe só em ocasiões importantes, ontem, pelo jeito, foi um desses dias tão esperado, – disse-me ela, falando como que sozinha.
Eu não esperava por essa e me perguntei se não era pretensão demais ela achar que só porque a levei para jantar, tomei duas doses de conhaque e mais uma garrafa de vinho eu estava comemorando algo. Parecendo adivinhar meus pensamentos, ela terminou seu café, pôs a xícara na mesa, passou a língua pelos lábios e, esfregando o guardanapo no canto da boca, uma vez mais fixou aqueles olhos feiticeiros sobre mim.
- O que eu quis dizer – falou numa voz ofegante e pausada – foi que ontem, quando cheguei procurando-lhe como advogado, você estava de ressaca.
- Você está enganada, menina. Há mais de um mês que estou abstêmio – disse-lhe com a maior cara de pau, sabendo que ela havia visto a garrafa de rum pela metade escondida no armário, ao que ela me respondeu carinhsamente:
- Não estou querendo acusá-lo por aquilo que não é de minha conta – disse-me ela com ar ingênuo e com aqueles olhos negros lacrimejando, enquanto me enlaçava pela cintura, puxando-me para o sofá-cama, sufocando-me de beijos. Isso se repetiu inúmeras vezes dali em diante, num sonho que eu esperava que nunca terminasse.
Assim o tempo passou dois, três ou quatro meses mais ou menos, como penso e imagino, sem tem certesa, mas nossa vida foi tão feliz, que eu achava ser eterna, embora pouco tempo durou num fim inesperado.
Escuso é dizer que levávamos uma vida simples de marido e mulher, ou, para ser mais exato, de amante e amada numa convivência pacífica sob o mesmo teto entre quatro paredes de um escritório de advocacia, a nossa alcova, o nosso ninho de amor.
Ela se esqueceu do pai de sua filhinha, tanto que nem mais tocou no assunto do companheiro preso, deixando o passado para trás e só pensando no futuro e, nesse afã, matriculou-se numa escola de informática e em cabo de três meses tornou-se monitora de uma turma de aprendizes, provando que de fato tinha talento de sobra, mas eu pagando a conta, já que fora por minha sugestão. Só que isso também acarretou a mim um grande problema, como logo mais esclarecerei.
Enquanto o safado que a enganara continuava preso e sua filha era cuidada pelos pais dele, nossa vida era tranquila e nos entendíamos tão bem que parecia que havíamos nascidos um para o outro, tanto que até nossos signos combinavam. Tínhamos um lar e até nosso carro próprio, que eu comprei a prestações, só por causa dela.
Um dia de manhã fomos ao supermercado e, quando saíamos com o carrinho de compras, deparamos no estacionamento ao lado de nosso carro uma mulher enchendo os pneus de um carro (marca famosa) que eu bem o conhecia. Era o carro que eu deixei com o tanque cheio em minha garagem, quando fugi daquela bruxa com quem casei.
- Olha ali, querido, uma distinta senhora tentando trocar os pneus do carro, parecendo que não tem forças e muito menos experiência nesse tipo de serviço. Coitada! Vamos ajudá-la e não faremos mais que uma obrigação de solidariedade a quem precisa de socorro.
Quando me virei para ver a mulher necessitada de ajuda, confesso que estremeci até os ossos e minhas pernas ficaram bambas, enquanto meu coração batia acelerado.
Embora a dita senhora estivesse agachada, pude reconhecer bem de quem se tratava. Fiquei ali pasmado sem saber o que diria ou faria, mas isso não demorou mais que alguns segundos.
Não sei se ouviu a voz de minha amada morena ou se por um reflexo qualquer, aquela mulher loura e esgadelhada, virou-se e levantou-se com espanto que a fez titubear, parecendo-me até cambalear um pouco.
Com aqueles olhos arregalados de raiva e frustração, olhou-me e franziu o cenho, mirando os olhos esverdeados em mim e em seguida em minha acompanhante.
- Ah, seu cretino! Que belo e oportuno encontro! Bem se diz que os criminosos sempre voltam à cena do crime! E que lindo espetáculo vocês canalhas me proporcionam! Até que enfim caiu a máscara do ordinário de meu marido e de sua megera amante! Há, há, há! Bem que eu desconfiava desse Nerd, que na verdade é só uma merda com essa mania de defender teses, sempre dando uma de intelectual. Não passa de um boçal e sua namoradinha medíocre de uma idiota, que não sabe nem onde mete o nariz! Agora entendi e sei por que preferia se isolar naquele escritório bagunçado e infestado de poeira e teias de aranha!
E assim continuou, com sua raivosa frustração, desacatando-nos e ofendendo a minha bela companheira.
- Você gosta de desordem, mocinha? Pois faça bom proveito deste traste que nem sequer gosta de tomar banho! Olhando bem a você, acho que o merece e os dois formam um par perfeito. Dois zeros à esquerda e aos quais viro as costas com nojo.
Então ela se voltou para sua tarefa de trocar o pneu do carro, mas o rosto que ela tinha nos mostrado era de uma medusa descabelada, com a cara toda manchada de carvão, tão ridícula que eu tive de me conter para não ter um ataque de riso. Só que minha linda morena não deixou por menos.
- Seu ex-marido me contou que o casamento de vocês dois foi um engano, na verdade um defeito curto que é chamado de..., do que mesmo, querido?
- Vício redibitório, ou seja, aquilo que não se pôde identificar no momento do contrato, porquanto estando oculto...
- É isso aí, vagabunda, você tem bicho no rabicó e é por isso que ele tem o direito de trocar você por outra mulher, que nem eu, sacou?
“Quase caí na gargalhada, quando ela me perguntou algo sobre os autos jurídicos...”
- E como é mesmo, querido, aquilo que você disse que o que está no alto não está na terra?
“Confesso que no momento não entendi o que ela perguntava, mas logo saquei e lhe emendei”:
- Você se refere ao brocardo de que o que não está nos autos não está no mundo, uma expressão jurídica...
- É isso mesmo, você não passa de uma megera que caiu do alto e não sabe agora qual é o seu lugar no mundo, viu?
Aí não consegui mesmo me conter e dei uma estrondosa gargalhada. Passei os braços em volta da cintura fina de minha moreninha e fomos os dois rindo a mais não poder para nosso carro estacionado logo ali ao lado.
Como era divertido tudo aquilo. Eu me sentia um Adão com Eva no paraíso tão sonhado por todos nós, pobres mortais. Sem ao menos saber por que, eu me achava num mundo bem diferente com ela, feliz porque nos encontramos.
Como era bom amar e sentir-se amado por uma bela mulher que me compreendia, cuidava de minhas roupas, lavava, passava e me dava toda atenção e carinho, sem nada pedir em troca. Era realmente o tão falado amor incondicional que eu, enfim, havia encontrado. Sim, isso reforçava minhas ideias contra o machismo e, com certeza minha tese seria um sucesso, pois o que eu defendia era mais que óbvio, porquanto provado.
“A mulher é igual ao homem em direitos e aquela submissão prescrita nos livros sagrados, sacramentada pela cultura e dogmatizada pelas religiões, não passava de uma usurpação de forma impositiva e injusta daquele que herdou da Natureza força física maior, tão somente para cuidar dela e protegê-la nas condições adversas.”
Este seria o fecho de minha tese de doutorado em que eu deixaria aberta apenas a pergunta retórica: “Machismo: Quando começou e quanto tempo ainda vai durar”.
O que eu deixaria claro é que esse malfadado costume teve início em razões interesseiras e injustas que o justificaram durante milênios, mas que no final a verdade prevaleceria, ou seja:
“A humanidade machista, enfim, reconheceria seu erro histórico e mais que pedir perdão, haveria de entabular formas e ditames sociais para reparar tamanha injustiça cometida pelo medo que o homem sempre teve de ser dependente da mulher, o que, segundo Sigmund Freud, é o mesmo de ser castrado por ela no ato sexual, embora isso já tenha ocorrido durante sua concepção, quando passou a subsistir nutrindo-se das energias daquela que o concebeu.”
“ Ai do homem, sem essas energias estimulantes, geracionais e sustentáveis de sua vida, depois do nascimento concedido pela mãe, que o apaziguou ao amamenta-lo, amainando já de início sua tendência agressiva, que já vinha embutida na sua fome de sugar do corpo alheio as energias de que tinha necessidade até para respirar. ”
“ Por fim, quando amadureceu pela metade, na fase da adolescência, já teve de conter o ímpeto de desafiar ou fugir daquela que lhe atraía para completá-lo e, ao mesmo tempo, lhe acarretava medo de roubar dele o que lhe sobejava, só porque nela parecia faltar alguma coisa que nele sobrava”. Complemento dizendo que aí estão à razão dos conflitos e das guerras entre os dois sexos.
Mas isso é exatamente o que denuncio e mostro não só as razões originais, mas também a forma como o equilíbrio deverá, por fim, se estabelecer. Em resumo, essa é minha tese e que a esperava concluir neste final de semana prolongado, não fosse aquela intrusa morena cor de canela que de modo inesperado tomou conta de mim e até certo ponto me dominou.
Eu temo e pressuponho que meu trabalho ficará inconcluso, mas pelo menos já posso contar com novas experiências com o sexo oposto, que de alguma forma enriquecerá o conteúdo de minha tese, visando desmascarar o machismo que, segundo defendo, está com os dias contados.
- O que você está pensando querido? Não me vai dizer que é na sua mulher que hoje tive a infelicidade de conhecer. Para mim ficou comprovado o que eu já suspeitava, isto é, que ela não te merece, sabia?
- Você tem razão, querida. Eu e ela não nos merecemos, por isso o destino se encarregou de nos separar, da mesma forma que a separou daquele pilantra que só se aproveitou de você, por isso mesmo não a merecia também. Cada vez mais acredito que Deus realmente escreve certo por linhas tortas. Mas...
- Mas, o que?
- Tenho medo de não merecer este presente que me caiu dos céus. Você, que é tudo para mim. Pressinto, infelizmente, que você ainda não é minha.
- Não acredito que você duvida de mim. Pensei que depois de alguns meses de convivência já estávamos estabelecidos e seguros do que queremos um do outro. Eu achava que de mim você só queria amor, carinho e tudo o que eu posso e me proponho fazer para que sua vida seja um mar de rosas, e o que tenho a lhe dizer é que nascemos um para o outro. Você existe para mim e eu só pra você.
“Venho cuidando de nosso cantinho, deixando tudo limpo e organizado, preparando seu cafezinho, cozinhando os pratos de sua preferência... A gente só sai para comer fora, quando queremos algo diferente e é sempre você que me convida. Por mim, eu nem sairia dessa nossa toca, onde estamos passando tanto tempo juntos, só fazendo o que nos dá prazer”.
“Eu não sinto falta de nada, nem tenho dúvidas que serei sempre sua por toda vida”.
Mas também quero que você seja só meu e prefiro morrer a ter de lhe compartilhar com outra mulher. Eu já lhe disse isso muitas vezes. Será que ainda tem dúvidas? “Poxa, o que mais você quer”?
- Sabe, querida, ...
Foi aí que errei ao lhe recomendar o que eu achava certo e, no entanto, foi a recomendação mais errada que fiz para ela.
“Eu lhe disse, assim que adentramos o meu escritório, nosso lar desde há dois ou três meses, mas ela nem ligou e me abraçou desprevenido. Ao invés de beijá-la, eu me afastei dizendo, o que nunca deveria ter dito.”
- Eu venho pensando que seria bom também você fazer um curso de informática, até para me ajudar nos meus trabalhos advocatícios, digitando peças processuais, elaborando tabelas, formulando cálculos e até mesmo dando alguma sugestão para minhas petições, contestações, impugnações, etc. Você se lembra de que eu lhe disse que quando sugeri que minha ex deveria estudar para não ser uma mera lavadora de pratos...
- Sim, ela se enfureceu e aí foi o fim do seu casamento.
- Mas Isso só ocorreu porque ela interpretou aquilo como uma exigência descabida e uma humilhação, quando a fiz entender que, caso contrário, ela iria passar o resto da vida lavando pratos.
Não é o que estou querendo dizer para você, entenda bem, pois ainda é jovem e tem a vida toda pela frente. Se estudar e entender de computação, tudo entre nós ficará mais ágil e fluirá com mais rapidez, que é o que exige o mundo dos negócios.
- Ah, então você não me aceita como sou e quer não somente uma mulher amada, mas também uma empregada para facilitar seu trabalho advocatício, né? Agora entendi. Deixe comigo.
Ai como fui infeliz ao lhe recomendar essa sugestão. Se arrependimento matasse, eu já estaria morto, o que seria até melhor. Pois o pior estava para acontecer.
Alguém já disse: Conhecer é poder. Assim, manda quem pode, obedece quem tem juízo. Não estou dizendo nenhuma novidade. Mas a vida é mesmo assim. Como dói constatar a realidade.
Dentro de três meses, minha adorada companheira recebia um certificado do curso de conhecimentos básicos em informática, incluindo Word, Excel, navegação em Internet, como receber e enviar e-mails, participar de sites de relacionamentos, etc. Ai, cruzes!
Mas durante esse tempo, eu também me reciclei. Cortei os cabelos nos moldes sociais, raspei aquela barbicha desordenada, passei a usar ternos, gravatas, sapatos caros em vez de tênis encardidos, perfumei-me, enfim, fiquei nos trinques.
Para a morena comprei uns guarda-roupas com tudo de modas e novidades, enfim mudamos para um apartamento alugado e transformamos todo nosso modo de ser. No nosso novo lar, ela não cozinhava mais, não passava roupas, nem lavava louças.
Para isso contratamos uma empregada, enquanto eu e ela trabalhávamos no meu escritório, mexendo com papéis e computadores, analisando autos, formulando peças, protocolando petições, fazendo carga e devoluções de processos, etc.
Quase sempre jantávamos num restaurante, onde a comida era farta e variada, mas ao retornarmos para nosso ninho, as noites eram sempre magníficas, deslumbrantes, uma entrega total de um para o outro com surpresas e variações diversas na expressão de amor e vazão da sôfrega paixão que nos envolvia e nos escravizava mais e mais um ao outro.
Infelizmente, porém, diz o ditado que “não há bem que sempre dure”, consolando-nos de que o mal também tem o seu fim. Depois de uma curta duração, e quando tudo corre bem, até o tempo parece que voa. Ao contrário, porém, quando o pior acontece, parece que a amargura não tem fim, por mais curta que seja.
“Numa manhã, eu acabara de tomar banho e adentrei ao quarto, onde há pouco eu a havia deixada enrodilhada no edredom, qual uma gata repinchada. Estava ansioso por dar-lhe um beijo, mas o que encontrei foi somente a cama desarrumada, tal como ela sempre deixava ao se levantar, só que agora parecia haver algo diferente por ela ter-se levantada antes do horário costumeiro, além de eu ouvir sua voz ao telefone, dizendo alguma coisa mais ou menos assim:
“ Nunca amei tanto um homem como este, só que o amor acabou como tudo tem que terminar um dia”. Eu gostava dele do jeito que era antes, barbudo, cabelos desgrenhados, roupa fora de moda, com as golas das camisas encardidas e sempre desabotoadas, deixando à mostra seu peito forte, peludo, cheirando a homem másculo... É, isso mesmo. “Ele, depois que passou a usar ternos, barbear-se toda manhã, ficou cheiroso demais para meu gosto... E aí, fedeu, né? “Sei, sei”... Mas o que posso fazer? “Quando o procurei”, quase por acaso, eu estava em busca de um advogado e acabei encontrando um homem, antes de tudo, que, apesar de ser um profissional, parecia mais um guru da sorte, tanto que não tive dúvidas que ele seria em minha vida um bilhete premiado. Isso ele foi realmente até aqui e agora, mas chega...! Até a sorte é traiçoeira, sabia? Não se pode ficar agradecendo sempre à pessoa que nos dá a mão. Isso seria estar numa gaiola, qual um pássaro, cantando para quem o aprisiona. Eu ignorava isso, mas hoje sei que fui traída pela sorte, que deu em mim um golpe de mestra. “Eita sorte ruim foi essa que eu tive”! Meu homem foi bem enquanto não prestava e só era bom na cama. Depois que ficou famoso nos tribunais e deixou de beber, tornou-se impertinente. Eu não aguento mais olhar para a cara dele e já fiz minhas malas... Sim... Você vem me buscar? Ah, sei... Tudo bem..., ontem, ele deitou tarde, pois ficou até duas da madrugada no tribunal do júri... hoje ele dorme até depois do meio dia, mas ao acordar vem no seu pijama até a cozinha saborear o almoço quentinho na mesa, como sempre todos os dias, até ontem, mas hoje terá uma surpresa. Vai ficar sem almoço, sem jantar e sem dormir com a sua mulherzinha, sacou? Agora que entendo de computador e que conhecendo e agindo nas Redes Socais, não preciso mais de ninguém para dizer o que eu devo ou não fazer. Tudo bem se cuide você também, mas eu só vou ficar com você, se tudo o que me disse por e-mail for verdade. Se pensa em me enganar, esqueça-me. Quem entende de computador tem o mundo em suas mãos e no mundo os homens estão sobrando, mesmo que se diga que há sete mulheres para cada homem... Você acha que é verdade? A mulher que cai nessa, torna-se loura e louca, mas eu que sou morena, não me preocupo com a cor dos cabelos, se o computador faz de tudo. Faz morena ficar loura de olhos verdes, é pouco? Sei..., mas não vou me preocupar. Há, há, há. Vou deixar o coroa dormindo e lhe acompanharei até Bagdá, se for preciso. Mas não pense que vou dando assim a torto e a direito, pois o meu jus filósofo ensinou-me o caminho das pedras. Dizia que é dando que se recebe e quem semeia pedregulhos colhe montanha pedregosa e, que, sobretudo, é preciso saber o que vai receber, antes de dar o melhor de si. “Fique ele com a sabedoria de receber o que deseja e a ignorância de oferecer o que mais quer uma mulher, enquanto eu seguirei meu caminho ao seu lado, claro”.
“Só me lembro de que ao ouvir essas palavras, que me feriu como um punhal pelas costas, eu comecei a tremer”...
“Devo ter desmaiado”, pois quando voltei a mim, estava deitado numa maca de um hospital, recebendo soros e, ao me virar, vi pessoas ao meu lado, mulheres e homens de vestes brancas, examinando-me a pressão e trocando informações técnicas que eu não compreendia, mas sabia que tudo aquilo se tratava de uma crise em minha saúde, por alguma causa qualquer, que eu ignorava, mas precisei ser hospitalizado.
“Pensei angustiado e me perguntando sobre minha situação, sem ter nenhuma lembrança do que teria sido ou era”.
Nada se lembrava do que acontecera comigo, do que não tinha a menor ideia, porém queria entender o que era aquilo e onde é que eu jazia, sem nada recordar, apenas consciente de mim numa maca deitado, tendo minhas veias alfinetadas com agulhas me injetando soros ou medicamentos.
“De repente uma mulher loira se aproximou e me perguntou seu eu estava bem”. Fixei meus olhos naqueles olhos verdes e tentei me lembrar de onde eu conhecia aquela loura que me falava em tom tão familiar. Não lhe disse nada, apenas me fixei naquele rosto bonito e olhei nos olhos grandes e brilhantes dessa mulher desconhecida, mas um tanto familiar, que muito se interessava por mim naquele estado desesperador.
“ De repente, vi seu rosto se expandir e sacolejar para um lado e outro, seus lindos cabelos louros pegaram fogo e sua face se retorceu, transformando-se em figuras de animais conhecidos, tais como gatos, cachorros, porcos, cavalos, vacas e até cobras, etc.
“Eu queria dizer qualquer coisa, mas não conseguia. Sentia-me preso em meu leito, tomado por uma grande angústia que me oprimia e me deixava sufocado, desesperado, querendo gritar por socorro àquelas pessoas ali do lado que conversavam, riam e gesticulavam sem sequer olharem para mim, exceto aquela que fixava os olhos nos meus e me inquiria, pedindo contas e satisfação sobre promessas e compromissos que eu ignorava.
“ Aquele rosto se me fez familiar, tanto que nele reconheci minha esposa, tão solícita e preocupada comigo naquele estado. Assustado eu me achava e me assustei muito mais quando ela sorriu e mostrou seus dentes brancos e bem alinhados, como eu bem os conhecia e admirava, mas que me pareceram agressivos, a tal ponto que vi suas presas crescendo e sua boca escancarando um riso cínico, como querendo dizer que eu era nada mais que sua presa, sem chance e defesa.
“Meu pescoço! Sim, pensei, ela quer sugar minha jugular... Ela sempre sugou minhas energias, enfraqueceu-me, mas restaram-me forças para fugir dessa predadora. “Escondi-me em meu escritório e um anjo me protegeu, mas o diabo da minha mulher interferiu e me carregou a este hospício para me internar como louco”.
“Não tenho certeza porque não me lembro, mas acho que gritei de medo...”
Todos se voltaram para mim, acudindo-me e me apalpando, com aqueles telescópios, palavra que ouvi ou me vieram à mente e que não sei se realmente existe no dicionário técnico da medicina. O que me recordo é que aqueles paramédicos me pareceram muito preocupados e recomeçaram a me examinar, cochichando entre eles. Vendo-os assim tão agitados e trocando informações que eu ouvia, mas não entendia, tive um surto de pânico e gritei para todos os cantos: - Mamãe, mamãe, eu quero chupar leite!
“Ele está delirando”.
“Complexo de Édipo”.
“Vamos chamar o doutor Eleutério”
“Sim, também acho”.
“É caso psicanalítico”.
“Mas a pressão dele está normal”.
“Os batimentos cardíacos não apresentam alterações”.
“São indícios inequívocos de que é um o caso psicótico”.
“Num átimo de agonia, ergui-me no leito e perscrutei os olhos de cada um que ali estava opinando sobre meu estado de saúde e, por fim, contemplei uns olhos verdes me olhando e arregalados de um canto do quarto daquele hospital. Era ela, a mulher dos meus sonhos, aquela que sempre esteve ao meu lado e nunca me decepcionou.
“Pensei, mas porque eu estava ali perto dela e me sentindo tão distante, como se aquela mulher que eu bem conhecia fora uma pessoa insensível, uma intrusa em minha vida. Sim, ela era familiar, mas o que estava ela fazendo ali e o que eu tinha em comum com ela?! Nada nela me recordava algo que algum dia tivesse a ver comigo, mas seu rosto era tão familiar que eu não conseguia despregar os meus olhos dos olhos dela.
“Fixei mais ainda o meu olhar naquele rosto conhecido, mas não lembrado, daquela bela mulher loura me olhando e derramando lágrimas por mim e me senti ameaçado, sei lá por que.
“ Sem eu saber como e por que, vi a face daquela loira que veio a mim e me beijou nos lábios, dizendo com lágrimas nos olhos: “Eu te amo e sempre te amarei. Nunca vou te deixar sozinho. Aconteça o que acontecer, eu cuidarei de ti até sua morte, assim como juramos diante do altar: Até que a morte nos separe”.
“Com o meu peito arfando”, virei meu rosto para qualquer lado e o que vi, ao votar o meu olhar, foi o rosto transtornado de uma mulher loura que me encarava com olhos esbugalhados de rancor, com um bisturi na mão, contra a minha garganta, ameaçando matar-me ali, se eu a trocasse pela enfermeira morena, a que me recebeu na internação naquele hospital, após ter sido encontrado em coma no escritório, o que eu soube só mais tarde.
“Virei meu rosto para qualquer lado e o que vi foi à face de uma morena cor de canela que me encarava com olhos brilhantes de amor, de braços abertos e, pegando em minhas mãos, perguntou-me se eu estava bem”.
“Respondi que sim, mas que não sabia onde eu estava.
“ Num hospital, ela me disse. Logo você vai ter alta.
“Não sei se dormi ou desmaiei, e me lembro de que eu estava num corredor deitado sobre uma maca, sendo empurrado por enfermeiros, mas que parou frente a uma ambulância na saída do Hospital.
“ Uma linda mulher Loira, que muito me era conhecida, eu a vi diante de minha maca e que não sei por que, foi me dizendo:
- Você me disse que ia terminar sua tese de doutorado, precisando se isolar no fim de semana, mas nada fez do que beber, vomitar e dormir trancado no escritório. Bem que eu desconfiei e, atenta, fiquei de olho.
Tivemos que arrombar a porta porque eu cansei de ligar e você nunca atendia. Quando adentramos no escritório, você estava desmaiado no sofá, espumando pela boca, o copo pela metade na mesinha do centro e a garrafa tombada no tapete, já vazia.
“Nada entendi por isso não respondi. Fiquei apenas olhando para aquele rosto familiar, mas que não reconhecia e apenas via-o como ameaçador em seus olhos cheios de ternura.
Como podia ser isso? Eu me sentia amado e odiado ao mesmo tempo. Sim, era essa minha doença, ou seja, a culpa e o perdão estavam à minha mão, mas eu não reconhecia uma e rejeitava a outra.
- Assim não dá, - exclamei e pensei sem falar:
“Ela disse que vai cuidar de mim até que eu morra, em cumprimento a um juramento consagrado no altar, mas como é que sabe que eu morrerei antes dela? Então gritei: Meus Deus, você vai me matar!”
“ Surpreendi-me com minha exclamação e fechei os olhos. “Por que falei se não sei mais o que pensar”?
“Só lembro que tudo se revirou e eu não vi mais nada, a não ser caindo-me para trás.
“ Não sei quanto tempo dormi, ou permaneci em coma, mas quando voltei a mim, deparei-me com duas mulheres ao redor de meu leito.
Uma era loira e de meia idade, estatura mediana, vestida toda chiquérrima e me olhando furiosa com seus olhos esverdeados.
“A outra era morena, alta, com os cabelos presos numa presilha, toda vestida de branco. Era a enfermeira encarregada de me medicar.
Achegou-se a mim, tomou o meu pulso e me perguntou se eu estava bem.
- Sim, com você aqui, nada poderia ser melhor.
“ Ela enrubesceu e me disse: Cuide-se. Qualquer coisa, eu estou aqui. Só me chamar.
Em seguida saiu do quarto.
“Eu acho que tudo isso foi um sonho. Ou um pesadelo. Não tenho certeza de nada. A última coisa que me lembro desse drama todo é que ao virar-me para o lado e tentar esquecer tudo, deparei-me com um rosto enfurecido e dois olhos verdes avermelhados me fustigando.
“ Quando a enfermeira morena saiu do quaro, eu me vi sozinho na companhia da loura suspeita com seu bisturi na mão, ou algo semelhante. Sorrindo aquele riso sarcástico ela veio até mim deitado, de costas na cama e então identifiquei que sua arma era um punhal afiado
“Antes que ela cravasse em meu peito o punhal da vingança, eu vi seu rosto se esquadrinhar, tornando se um quadrado, depois um triângulo, um losango e, enfim, um círculo sem começo e nem fim. Revirando os olhos, sua cabeça tornou-se uma circunferência.
“ Sem saber por que e como, eu me achei no escritório, onde tudo começou. Depois de ligar meu computador, fui até o frigobar procurar uma bebida. Tomei da garrafa de rum e enchi o copo até a metade.
Beberiquei e me sentei diante da tela daquele micro ali brilhando.
O que vi foi o rosto bonito de uma mulher loura, que foi ficando aos poucos morena, tal como um dia que amanhece e se vai esvaindo até o entardecer e se finda no escurecer.
“Enquanto eu contemplava espantado na tela do computador aquela mulher, que me olhava com olhos furibundos e me acusando de ser eu o causador de sua desgraça, eis que de repente aquele rosto conhecido se transformou, ficou quadrado, depois redondo e se alargou numa elipse, na qual duas estrelas se chocaram, provocando um incêndio que terminou em cinzas e se espalhou por todos os cantos, culminando com um trovão que me pareceu um resmungo, ou gemido de tristeza.
“Diante de meu computador ligado, naquela manhã, em que já estava acordado mais de uma hora e meia, eu me achava assentado diante do dever, no dia e horário, que era desde a zero hora, o dia Primeiro de Maio.
Demorei para encontrar as chaves de todas as minhas anotações, mas por fim as encontrei caídas no chão ao lado do sofá e duma garrafa de rum vazia. Minha cabeça doía, mas minha maior preocupação era saber se minha tese de sociologia jurídica estava realmente salva no computador.
Tinha certeza que eu a tinha terminado, mas será que tinha mesmo?
"Minha cabeça estava latejando de dor, mas felizmente, ao acessar meu micro, vi com alegria que minha tese estava lá, escrita e salva.”
Feliz da vida eu me apresentei à banca examinadora minha tese e obtive nota dez com elogios, mas uma semana antes eu tive que sair de meu escritório. Que dificuldade!
Mais uma vez procurei as chaves para sair do meu escritório, mas por fim, com dificuldades, as encontrei caídas no chão ao lado do sofá e as agarrei com alegria.
Diante da Banca examinadora minha tese foi tida como muito bem escrita, sob minha pesquisa e obtive aprovação com nota máxima e exaltação de méritos e sucessos promissores.
Meu computador estava em tela de descanso. Toquei-lhe numa tecla e a tela se iluminou e apareceram duas mulheres se beijando e fazendo amor. Uma era loura de olhos verdes e a outra morena clara, porém eu já as conhecia. Eu as amava. Elas também se amavam, mas eu também as odiava e as temia, e acho que as temerei para sempre.
As duas mulheres lindas, uma loira e outra morena fizeram amor ali em minha frente, com um frenesi entre abraços, mordidas, gritos e gemidos de prazer que até me excitou e não me contive e acabei molhando a cueca e minha dor de cabeça passou.
Mas por fim, meu computador acessou o texto de minha tese sobre o machismo e eu pude constatar que tudo estava bem escrito e salvo para dali a uma semana ser apresentado à banca examinadora, como de fato fora, como já afirmei.
Fiquei feliz.
Desliguei o computador, abri a porta do escritório e saí, sem perceber que uma chuva fria e fininha caía lá fora. Eu estava sem guarda chuvas, mas o bar era ali bem perto. Fui até lá, sentei-me numa mesa, veio o garçom e me apresentou o cardápio. Pedi apenas uma dose de rum.
EPÍLOGO
- Sim, eu vou fazer tudo isso por você. Mas antes eu quero lhe dizer que você não está com toda a razão porquanto não respeitou meus direitos.
Avancei-me e agarrei-me àquela gata, roubei-lhe o seu (meu roupão), deixando-a nua, arrepiada e peladinha e eu, tenso e tonto de excitação, nada fiz. Encabulado, fui até a janela e contemplei a rua, olhando para fora, para o mundo, simplesmente para o nada.
Senti um agarro por trás e umas unhas me aranhando as costas, e, ao me virar, me dei com a boca de uma gata, para dizer, felina, já é demais.
Eu juro, porém, que aquele favo de mel exalava um olor de flores silvestres e sem me dar mais tempo, de uma boca aberta, entre lábios quentes, uma língua fria deu-me uma picada e me anestesiou naquele sofá-cama.
Meu impulso natural foi me desvencilhar-me daquele abraço apertado, mas foi tudo em vão. Fiquei todo cheio de mim e falei:
- Eu nunca tive dúvida do meu amor por ela, - Foi o que eu disse meio com dor na consciência.
- Você se culpa tanto. Relaxe e esqueça seu passado. Ninguém tem culpa de nada. A gente faz o que acha certo e se der errado é porque não tinha que dar certo. A culpa é de ninguém. Você sabia disso?
"Não resisti e me capitulei ao sentir um toque daquela felina, lambendo os meus lábios e enfiando a pontinha da língua na minha boca, me assustando num esgar. Debrucei-me sobre aquela deusa e o que senti foi estar fora de mim, flutuando no espaço, num êxtase que me pareceu durar uma eternidade e justificou minha existência miserável neste mundo caótico.
Não sei se desmaiei ou se me deixei de existir, o fato é que me senti voltando como que de um lugar distante e tive a impressão que estava caindo num abismo sem fim, sendo ao mesmo tempo alçado por dois braços macios, aconchegando-me a um colo quente e que me dava toda segurança naquele sofá-cama de meu frio escritório de advocacia, como se acordasse na cama na qual nasci, parido nas dores de parto de minha mãe querida.
Penso que um ato sexual, ou melhor, um ato de amor, tem tudo a ver com nossa chegada a este mundo, assim como com nosso último repouso, o sono eterno da morte. Início e fim da vida jazem ali,entrelaçados, e a história de um vivente começa, prossegue e termina, dividindo e somando tudo o que há de bom e na conta de tirar deixa o restante a somar.
Quem ousa subtrair, só pensando em si nessa entrega e, sem se doar totalmente, buscando mais receber do que dar, é egoísta e não sabe o que perde. Nada ganha, não se reconhece e se afasta de si mesmo, perdendo-se no próprio caminho aonde irá se encontrar consigo mesmo, talvez gemendo e chorando.
Ah, ia me esquecendo. A última frase que li em meu computador e que ficou registrada em minha mente,foi simplesmente, o Tema de minha tese de doutorado:
MACHISMO QUANDO COMEÇOU E QUADO IRÁ TERMINAR?
“ Aqui findo a trajetória que fiz do meu maior sonho para defender minha tese contra o MACHISMO EM NOSSA CULTURA.
“Em minha Tese Jurídica e Sociológica demonstrei as razões dos fatos, além de questionar culturas prevalecentes, às quais o machismo interessa”. Minha Tese, é que o machismo é o Mal e o atraso do Mundo, exposto neste conto.
MACHISMO QUANDO COMEÇOU E QUADO IRÁ TERMINAR?
“Aqui findo a trajetória que fiz do meu maior sonho para defender minha tese contra o MACHISMO EM NOSSA CULTURA.
“Em minha Tese Jurídica e Sociológica demonstrei as razões dos fatos, além de questionar culturas prevalecentes, às quais o machismo interessa. Minha Tese, é que o machismo é o Mal e o atraso do Mundo, exposto neste conto.
Daí minha TESE: MACHISMO ONDE COMEÇOU E QUANDO TERMINARÁ?